sexta-feira, julho 07, 2017

FRAGMENTOS XLIII

(...)

Meu caro, apressa-te. Diz ao que vens, na escorreita escrita de que és capaz e deixa-te de gorjeios de pássaro na gaiola, prisioneiro do próprio cântico, qual narciso espelhando-se no lago. Já não há paciência para tantos rodriguinhos e rodeios!...  Apressa-te e, numa prosa enxuta e lisa, conta a tua história, para teu gozo pessoal, que não faltam por aí “estórias” bem contadas à procura de leitores”.

Assim falou Maria Adelaide, licenciada em Letras e Línguas Modernas, qual pitonisa do templo de Calíope, agastada e docemente suspensa de um beijo, lá atrás, numa livraria de Lisboa, com o capricho e o frémito de um livro roubado.

 FRAGMENTOS XLIII

Apressemo-nos, então, na urgência que Maria Adelaide requer, não certamente pelas razões de erudição literária que a consomem e doutamente nos concede como favor dos deuses fora, deixando tombar o bago de sabedoria, que solícitos dedos haverão de recolher. E saborear, está bom de ver.

Apressemo-nos pois, que o tempo vai definhando neste entrecruzamento de tempos vários de que a narrativa se constrói, pois que um tempo maior tudo arrasta e nivela, seja o turbilhão de coisas vividas em fingimento ou outras tão fingidas que vida são, mais vida que a vida vivida, certos de que a vida, assim em fingimento, é livre escolha de afectos e não predestinação de passos, aqueles que damos e aqueles outros, que não sendo dados, iluminam os passos dados e percurso dos dias vividos. Apressemos então por urgências múltiplas e razão maior aquele beijo, lá atrás, expectante nos lábios carmins de Maria Adelaide, licenciadas em Línguas e Literatura Modernas, ao tempo ainda não inflamada de erudição literária, que a chama então era outra, percorrida pelo frémito de sabores clandestinos a alagar por dentro a pele e dos sentidos, certos de que nada do que na Tabanca foi ou era, tem expressão que possa sobrepor-se à indeclinável urgência de um beijo apaixonado. Ou ao capricho e ao arrepio na pele de um livro roubado numa chique livraria de Baixa de Lisboa, como solicitação de urgente prova de amor.

Há pois que reconhecer razão a Maria Adelaide e desfazer o nó desta escrita atascada na Tabanca, como passos mal calculados na bolanha, e prosseguir para alívio do Alferes e do seu penoso e ziguezagueante percurso de emoções, agora, neste tempo da narrativa, solicitado pelo Comandante da Companhia de Cavalaria, Capitão Mascarenhas, para reunião urgente, não alcançando o Alferes, da rotina dos dias, razões de natureza sanitária ou intendência, sendo certo serem esses os domínios de intervenção directa do Adjunto do Comandante de Companhia, para tal reunião e tamanha urgência, sabendo-se que as patrulhas militares tinham escala conhecida e assumida por cada grupo de combate.

Entrou, pois, o Alferes na Sala de Operações e Gabinete do Comandante, que antes fora campo de outras refregas que para aqui não são chamadas, com uma vaga apreensão a formigar-lhe a mente e os sentidos, pois bem sabia ele, de ciência certa, que, no balanço do seu percurso militar, sempre lhe calharam para roer os piores ossos, que é como quem diz, as mais chatas e arriscadas tarefas e missões militares.

Com um gesto brusco o Capitão Mascarenhas, dispensando formalidades militares, indicou a cadeira frente à secretária e estendeu ao Alferes um papel com o timbre do Estado Maior do Comando Militar na Província da Guiné – “leia”, intimou! - O papel bailava das mãos para olhos do Alferes que leu, uma, duas, três vezes, sem que, de seu conteúdo, vislumbrasse razão aparente ou motivo urgente para a agitação e a ansiedade do Comandante da Companhia, Capitão Mascarenhas, conhecido entre os oficiais do Batalhão, pelo gélido sangue frio no bridge e no poker e que, no teatro de operações, mesmo debaixo de fogo, mantinha uma invulgar fleuma e capacidade de tomar decisões, por vezes, de grande delicadeza, sem a mínima perturbação do rosto. E na memória vivaz do jovem Alferes, enquanto discorria sobre o papel timbrado do Estado Maior, perpassa então o inesperado exemplo de pronta decisão e crueldade naquele funesto tiro de uma pistola Walter, paralisando o Céu e a Terra e as portas do Inverno e todos os raios e todas as maldições, num estampido seco que esfacelou o crânio de um bebé de meses, choro lancinante e agónico, agarrado ao corpo da jovem mãe negra, ainda fumegante, com o rosto carbonizado e o ventre aberto pelas chamas. E num arrepio, o Alferes revê, num flash momentâneo, o capitão, hirto e pálido e arma ainda fora do coldre, ombros caídos, como o anjo negro da Tragédia e todo o pelotão, todos os homens, um a um, aproximando-se, rodeando a cena, alguns benzendo-se, outros enxugando a mal disfarçada lágrima, outros ainda virando a cara e evitando o macabro espectáculo e o capitão Mascarenhas, perante o rosto incrédulo do Alferes e a indignação calada e a muda acusação dos homens sob seu comando: “Que esperavam vocês, seus merdas! Que a criança ficasse para aí abandonada, a servir de pasto às hienas? Era um bicho. Acabou-se!... ”

Nestes lances se definia o Capitão Mascarenhas. Frio nas decisões, seco nas ordens e militarão na messe e na parada, entretanto de crista abatida pelas múltiplas agruras e desilusões militares que, pouco a pouco, lhe acentuavam o pendor cínico e lhe abalavam as certezas nacionalistas, bebidas na tradição de seus apelidos e na preparação ideológica ministrada pela Academia Militar, como futuro “condestável” da Pátria, una e indivisível na sua extensão territorial do Minho a Timor e que uns quantos serventuários do comunismo internacional, às ordens de Moscovo, desejariam amputar.
Entretanto, como o tempo que tudo desbasta, o álcool e o bridge serviam-lhe de lenitivo, sintoma discreto de que o castelo de suas certezas começava a abrir delicadas fissuras. Mantinha porém exacerbada a penache militar, qual cidadela acossada ou, porventura, último reduto de suas graníticas certezas.

Assim discorria o Alferes, entre o aguilhão de vivências recentes e o clownesco embaraço das mãos a exibir um papel com o timbre do Estado Maior do Comando Militar da Província que, em três escassas linhas, anunciava, para daí a dois dias, a visita do General Comandante em Chefe, acompanhado apenas do Oficial de Campo e manifestava a vontade Sua Excelência almoçar com o corpo de oficiais do daquele destacamento.

Que me diz a isto?” - disparou o capitão Mascarenhas perante o Alferes emudecido, devolvendo o papel e fazendo tempo para a mais óbvia resposta que pudesse quebrar a impaciência e a visível incomodidade do comandante da Companhia. “Naturalmente, receber o nosso General o melhor soubermos e pudermos” – procurando o Alferes ler nos olhos do capitão o momento de distensão tão ansiado. “Sim, sim, claro! Mas se a visita do nosso General não lhe merece comentário mais produtivo para que raio eu quero um Adjunto? Pense!” – e agitou-se na cadeira o capitão. E no habitual sarcasmo com que fuzilava universitários e intelectuais: - “ou será que na Faculdade de Direito que é pressuposto frequentar não o ensinam a pensar? E agora largando o papel sobre a secretária batendo os dedos em irritação: “ou julga que o General larga o ar condicionado e vem a este cú de judas pelos nossos bonitos olhos? Há-de trazer alguma fisgada e não quero ser apanhado de calças na mão”. E como se para si próprio falasse “Por isso pense! E diga-me o que o nosso General vem aqui fazer!...”      

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