quinta-feira, julho 20, 2017

FRAGMENTOS XLIV


O tempo para organizar a vista do General era escasso. Certo porém que a visita se resumiria a escassas duas horas, mas mesmo assim a requer medidas excepcionais de segurança discreta que iriam alterar rotinas e escalas de serviço e então viriam inquiridoras as perguntas dos camaradas buscando as causas, num jogo perverso de gato e rato, bem se sabendo, ou se não sabido de certeza certa, era sem dúvida geralmente admitido pelos militares da Companhia de Cavalaria que o Alferes nunca se ajeitou muito bem ao colete-de-forças que era ser Adjunto do Comandante da Companhia e, em consequência, ter de sonegar “informações” aos seus camaradas, como agora com a visita do General, mantida como “informação restrita” pelas normas militares e determinação explícita do Capitão Mascarenhas. Certo, porém, de que tais cuidados e segredos, em tese considerados, não passavam a maioria das vezes de segredos de polichinelo, o que permitia dizer-se (e surpreendeu-se o Alferes com a ironia que lhe discorria dos lábios) que a informação militar tinha muitas vezes o mesmíssimo recato de uma honorabilíssima senhora que todo o mundo sabe descair-lhe o pé e o cio para “pistoleira”, mas que toda a gente finge desconhecer tais inclinações e fogosos predicados para assim poder manter-se a “ordem das aparências” e a honra da dita senhora, bem se sabendo, porém, que manter as aparências, constitui porventura a fórmula mais eficaz de preservar o status quo, onde, é sabido, geralmente, campeiam a mediocridade e os aproveitadores. Ámen! 

Em qualquer caso, neste tempo da narrativa, o dever de guardar sigilo impendia sobre todos os militares que, fosse qual fosse seu posto, todos estavam obrigados, sendo porém certo que, em qualquer microcosmo concentracionário, existe sempre uma fissura, um risco, uma ousadia ou uma subversão, mínima que seja, que acaba tresmalhar, fender ou inocular o gérmen, não diremos capaz de desagregar a “ordem militar”, mas pelo menos, causar perturbação dos seus ritos e ritmos.

Em diálogo com seus botões, assim considerava o Alferes, consciente da necessidade de ser muito cuidadoso e atento na realização das diligências e providências em vista a “receber o nosso General o melhor que soubermos e pudermos”, já que, na crista dos acontecimentos, a circunstância de ser Adjunto do Comandante da Companhia de Cavalaria se realizaria nesta “démarche” em toda a sua produtiva e linear expressão e utilidade, ou seja, como biombo das responsabilidades e passa culpas do Comandante da Companhia, o garbosíssimo Capitão Mascarenhas, pois bem se sabe que “quando o mar bate na rocha quem se fode é o mexilhão”, ou seja, qualquer estrutura hierárquica de poder constitui uma pirâmide que inverte o sentido de responsabilidades, pois que aquele que está por baixo tem poder cada vez mais difuso e lasso, na exacta medida em que desce na escala, mas em sentido inverso tem que aguentar todo peso que lhe cai em cima, vindo dos escalões superiores, de tal forma que o Alferes em seu desabafo íntimo se surpreendeu a considerar, um pouco cinicamente, é certo, que a utilidade daqueles que estão por baixo será apenas para servirem de mexilhão aos que estão por cima, sendo que muitos o fazem por gosto, felizes na sua ilusão de poder, com que os de cima lhe acenam e uns quantos, a minoria, bem se sabe, se rebelam e atiram a carga ao mar (cloaca que tudo devora), nem que para tanto tenham que pagar com o seu próprio costado o “desenfianço” e a ousadia.

Que o diga, salvo seja, o senhor Gomes, marinheiro e desterrado, que nos idos anos de 1936, ousou rebelar-se contra as hierarquias do poder fascista por acreditar no sonho de uma Pátria livre e justa, em que todos os homens seriam iguais, quer dizer, sem outras hierarquias que não fossem as estabelecidas pelo mérito de cada um e por ela se bateu e perdeu e, por isso, desterrado para aquele “cú do Mundo”, fez da Tabanca a sua Pátria, que outra não reconhecia, madrasta de seu Povo e fazedora de guerras contra os povos das colónias e que ele, desterrado e colono, teimara em ficar, que sua Pátria era aquela e assim o dissera à insistência do Alferes e à ordem militar que determinara “todos os civis deveriam ser imediatamente evacuados”.

E, em tempo outro, desta escrita a fazer que anda, mas não anda, Maria Adelaide dixit, “qual cavalo amestrado em picadeiro, fazendo cortesias vazias de aplausos”, o odor acre da pólvora, dantesca coluna de fumo e chamas a erguerem-se e, por entre elas, o Alferes, obedecendo sabe-se lá a que ordem ou instinto, irrompeu do interior do espectáculo de fogo e labaredas, com o corpo do senhor Gomes, marinheiro revolucionário e desterrado, archote aceso agora nos braços do jovem oficial miliciano, por acaso de graduação militar, Adjunto do Comandante da Companhia de Cavalaria e, nesse tempo descrito, arder ele em dúvidas existenciais sobre o seu lugar certo naquela guerra e o velho caturra a negar-se a partir, conforme a ordem militar de todos os civis deverem ser evacuados e que, na Tabanca, teimou em ficar, que ”sua Pátria era aquela, que outra não tinha”, a cortar-lhe cerce as veleidades de deserção, em conselho nunca pedido, “e tu, meu rapaz, deixa essa fantasia de desertares – e não negues que para mim basta-me a febre de teus olhos – a Revolução aqui em África é deles; tu se amas a Revolução terás tua oportunidade em Portugal”. Assim o dissera o senhor Gomes, fixando com o penetrante olhar azul-marinho, o atordoado Alferes momentos antes, contados por escassas horas, quando a Tabanca fora alvo das morteiradas e a vivenda do velho caturra, “que se Pátria era aquela”, explodiu em féerie de chamas e fumo e o Alferes, agora, protegido das chamas e acarinhado pelos seus camaradas de armas, se deixou tombar de joelhos com os restos mortais do “senhor Gomes” carbonizados nos braços.

Discorria assim o Alferes, em seu discurso íntimo, agora em primeiro plano do seu pensamento as diligências e tarefas em vista a que o General Comandante em Chefe da Guarnição Militar da Guiné fosse recebido o “melhor que soubermos e pudermos” naquele chão fula, a dois passos da fronteira, espaço de quadrícula, sujeito à jurisdição militar da Companhia de Cavalaria, até então apenas pastoreio de remansosas patrulhas, mas que em tal chão fula agora se haviam soltado, em furor, todos os diabos da guerra, com tal ímpeto que destaparam a debilidade das previsões do Estado-maior quanto ao avanço da guerrilha naquela zona e desencadearam atenção do próprio General Comandante em Chefe. “Que veria cá fazer?” angustiava-se o Capitão Mascarenhas, que não gostava de “ser apanhado com as calças na mão” e, por isso, intimara o Alferes, seu Oficial Adjunto, por capricho da vida e acaso de graduação militar, a “pensar nisso”, isto é, procurar discernir, a razão escondida ou motivação verosímil, que por entre o crivo apertado de possibilidades, fosse a mais conforme com aquela insólita visita relâmpago do General, apenas acompanhado pelo seu Ajudante de Campo, passando por cima do escalão de comando do Batalhão de Cavalaria, sendo certo e sabido e óbvio para o mais básico soldado, que o súbito agravamento da situação militar seria a causa imediata de tão estranha visita.

“Que viria, pois, cá fazer, o General?” - interrogava-se também o Alferes, não pela circunstância de não gostar de ser “apanhado de calças na mão” , mas pela singela razão de permanecer vivo e se interrogar e ser de sua natureza procurar sempre desfiar o entendimento de si próprio e dos outros e percorrer os liames que determinam a acção dos homens, ele Alferes, por um acaso de graduação militar, Adjunto do Comandante da Companhia de Cavalaria, a debater-se, no agora desta “escrita circular”, numa espécie de limbo, nem cá, nem lá, balançando-se entre o voluntarismo romântico da deserção e a palavra venerada do “senhor Gomes”, marinheiro revolucionário desterrado, com seu penetrante olhar azul-marinho a traspassar-lhe a alma e a sua voz serena e honrada a “meter em sentido” as verduras revolucionárias do jovem oficial miliciano, estudante de Direito em Coimbra, por pedalada larga de seus pais, e a esfriar-lhe todas as veleidades de deserção e a empolgada ambição de se colocar no lugar certo da História, ao serviço da guerrilha: “a Revolução aqui em África é deles; tu se amas a Revolução terás tua oportunidade em Portugal”.

E, assim, tal qual uma partitura de falas cruzadas, o Alferes passava, sem disso se dar conta, de uns timbres para os outros, quer dizer, cada uma das vozes interiores, que o habitavam, vinha à superfície, conforme a profundidade e intensidade da incisão na respectiva corrente de consciência, sendo que, neste agora da escrita, a insistente pergunta “que virá o General cá fazer?” se sobrepunha a todos os outros registos e emergia à tona desse magma de pensamento e sensibilidade, em que o Alferes se agitava, depois da reunião com o Capitão Mascarenhas.

E, então, subitamente, vá la saber-se de que alfurja do pensamento ou que predeterminação das células nervosas, no espírito do jovem oficial, abre-se, clara e transparente, como se de uma “iluminação” se tratasse, a resposta à obsidiante pergunta “quem vem o General cá fazer?” Por uns segundos o Alferes se deteve, a calar a emoção da descoberta e a rever, agora toda a sua energia mental concentrada, os pressupostos lógicos do “ovo de Colombo” que lhe tombara nos passos. E nas angústias do Capitão Mascarenhas que “que não gostava de ser apanhado com as calças na mão”! 

Mas ainda não lhe diria! Deixaria para mais tarde a partilha de seu prazer da descoberta. Mas, para ele Alferes, Adjunto do Comandante de Companhia por acaso de graduação militar, não havia mais dúvidas, nem angústias – o General, Comandante em Chefe da Guarnição Militar da Guiné, vinha à Tabanca para, de viva voz, instigar a Companhia de Cavalaria a invadir um País estrangeiro e atacar a guerrilha na sua base, localizada do outro lado da fronteira, a escassos três quilómetros da Tabanca.  


Manuel Veiga 



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