segunda-feira, julho 24, 2017

FRAGMENTOS XLV

(...) para ele Alferes, Adjunto do Comandante de Companhia, por acaso de graduação militar, daí em diante, não haveria mais não dúvidas, nem angústias – o General, Comandante em Chefe da Guarnição Militar da Guiné, vinha à Tabanca para de viva voz instigar a Companhia de Cavalaria a passar a fronteira e atacar a guerrilha na sua base, na Guiné Conackri, a escassos três quilómetros da linha fronteiriça.  

FRAGMENTOS XLV

Sei, Maria Adelaide, quanto te é penoso suportar esta descosida escrita que apenas a tua curiosidade aguenta. Queima-te nos lábios a pergunta que não irás formular, pois ambos sabemos não ser necessário, tão certos estamos um do outro, mas em qualquer caso a urgência da pergunta, isto é, a curiosidade em saberes como “descalcei a bota”, salvo seja, com a visita relâmpago do General à Tabanca te obriga à maçada desta prosa, circular e arrebicada de sentidos, tu minha querida Maria Adelaide, para quem, em tua verve analítico-literária, apenas a poesia (ah, os Poetas e seu canto!) merece a dignidade de verdadeira literatura, pois prosa todos a fazemos, muitos sem o saberem, é certo, tal como “monsieur Jourdan”, quando pede os chinelos, ou aqueles que não têm o privilégio de uma Nicole para lhe chegar os chinelos, mesmo assim fazem prosa, (sem o saberem), nem que seja quando da declaração de impostos, a que todos somos obrigados.

Compreendo, por isso, muito bem essa tua incontida aversão por esta prosa em que te digo, pois tu mereces ser cantada em verso, não sei se Beatriz ou Laura, assim Petrarca eu fora, em vez de este “prosador” a arrastar os pés, já que, no mundo assaz selecto da literatura, teus olhos apenas “vêem poesia” como, em tempo outro, no intervalo de outras refregas que para aqui não são chamadas, me fizeste saber, num assomo de vulgaridade chique, que “o melhor poema eu o trazia pendurado entre as pernas”. E assim o dizias, solta, numa lasciva gargalhada, soletrando, silaba a sílaba, as estrofes do celebrado e ufano “poema”. Que viva, então a Poesia, pois estás cheia de razão, Maria Adelaide – nada, de facto, que se pareça em fulgor a uma metáfora! E para aplacar tuas comichões, as tuas e as de outros, ou de outras, que em ti se coçam, garanto que depois desta teima, apenas poesia! Meus olhos não irão ver mais nada, que não sejam metáforas, prometo! Quem sabe se não serei graduado “Mestre em Metáforas”, pela Universidade de Cacilhas, está bom de ver! Mas até lá, minha querida Maria Adelaide, não posso evitar-te a contrariedade – escreverei esta “prosa enrolada”, bem sabendo eu, conscientemente, que faço Literatura – e isso me basta!

Atalho-te. E calo teu protesto num beijo, sabendo, tu e eu, que nunca nossas palavras, falaram mais alto que nossa cumplicidade e que as tempestades, que artificialmente desencadeamos, mais não são que pretexto um pouco perverso, reconheça-se, para espraiada e bonançosa entrega que tão fundo nos une.

Voltemos, pois, à Tabanca, Maria Adelaide. Cada um de nós com suas razões – tu, Maria Adelaide, por curiosidade, eu por que ansioso para “descalçar esta bota”.

O capitão Mascarenhas, andava mais macio nos seus rompantes militaristas. A acidez das palavras e o álcool a que moderadamente se entregava mais não eram que sinais exteriores de uma mudança de carácter, fomentada, bem vistas as coisas, mais que a dura experiência de combate e os horrores da guerra, que nisso o capitão não tinha dúvidas, a guerra não passava de um jogo de vida ou morte e, enquanto preso a esse jogo, mais valia matar que morrer e se houvesse que cometer excessos, havia que assumi-los com coragem e sem hesitações, pois que a tibieza de comando era o primeiro passo para o desastre, de forma que, na referida metamorfose da personalidade, pesava no capitão, sobretudo, o esboroar de certezas em que fora educado e, especialmente, o ruir do ideal militar em que mergulhara e tinha as Forças Armadas e, em particular, o Exército e, dentro dele, a Arma de Cavalaria, como esteio de virtudes cívicas e escola de formação de elites.

Na realidade, durante o ano e meio, em que a Companhia de Cavalaria, antes de aboletar na Tabanca, estivera às ordens do General Comandante em Chefe, como força de intervenção, por todo o teatro de guerra, foram frequentes os conflitos com os oficiais do Estado-maior que, quando as operações militares corriam mal, era certo e sabido nunca eles assumirem as responsabilidades pelo mau planeamento das operações, talhadas à medida dos seus relatórios auto elogiosos e endossavam para os militares no terreno todo o ónus dos desaires - “uns filhos da puta que se estão a foder para a guerra e para quem arrisca o pêlo - apenas pensam nas respectivas carreiras!”- clamava, o Capitão Mascarenhas, para quem o queria ouvir, pelos corredores do Estado-maior, sempre que, terminada uma operação militar era convocado para avaliação dos resultados e a elaboração dos respectivos relatórios.

Andava, pois, o capitão Mascarenhas mais macio. E os dias na Tabanca, isolados naquele fim do mundo, abriram nele, por outro lado, um certo instinto de camaradagem gregária, que gradualmente se foi sobrepondo aos preconceitos e o levou a deslassar algumas rígidas regras para encontrar, na convivência descontraída com os jovens oficiais do seu comando, algum lenitivo para a sua gradual perda de ilusões, sem contudo perder a “panache” de oficial e cavaleiro.

Era pois este o clima na messe dos oficiais, quando o Alferes, após o bridge e o conhaque, foi convocado pelo capitão Mascarenhas para se apresentar na sala de operações e gabinete de Comandante da Companhia de Cavalaria, espaço que antes fora leito e “boudoir” de D. Rosalinda e campo de outros lances em que a anafada senhora era expedita, em vista o jovem oficial, Adjunto do Comandante de Companhia, por acaso de graduação militar, tomar conhecimento directo da informação restrita que anunciava a visita relâmpago do General Comandante em Chefe e intimado pelo capitão que não gosta de ser apanhado com as calças nas mãos, a “pensar nisso” perante a angustiante pergunta “o que viria o general cá fazer?”.

Quando na véspera da chegada do General, depois do brigde e do conhaque, o capitão Mascarenhas “democratizou” a informação restrita, quer dizer, derrogando regras de segurança, que a si próprio se impusera, abriu ao conhecimento ao corpo de oficiais da Companhia a informação sobre a visita relâmpago do general, que apenas era suposto ser conhecida do “cabo da cifra”, por dever de oficio, mensageiro cego, surdo e mudo de todas as mensagens cifradas, pelo próprio capitão e pelo Alferes, intimado a encontrar resposta para a obsidiante questão que viria o general “cá fazer”, já que, bem se sabe, o capitão não gosta de “ser apanhado de calças na mão” pairou, por momentos, na sala, um silêncio denso, cortado pelo impulsivo desabafo do Valentim, “vamos ter merda!” E o capitão, a carregar o sobrolho, azedo, “merda já temos nós todos os dias e não precisamos do General, mas se não sabe o que ele cá vem fazer, mais valia estar calado!”.

Era assim o Valentim, explosivo à primeira provocação, coração ao pé da boca, generosidade sem limites e osso duro de roer para quem não lhe caísse em graça, mantinha, vá lá saber-se por que razão ou teima, uma tensão permanente com o capitão Mascarenhas, que vinha desde os primeiros tempos da recruta e, desde esses tempos outros, tão próximos e tão distantes, com 10 contos na algibeira e todas as espeluncas e putas de Lisboa para frequentar, unha com carne, numa amizade impoluta e breve com o “herói” a contragosto desta narrativa tosca, - como tu, Maria Adelaide, gostaria de nos ver, brilhantes de solarina e panache, subindo a Calçada da Ajuda, a cavalgar impetuosos alazões, rumo a Monsanto, em exercícios de equitação militar” – razão e, mais que razão, urgência, para o Alferes cortar cerce o temperamento sanguíneo do amigo Valentim e, oferecendo-se às balas, que é como quem diz, ao humor azedo do capitão, declarar, solene “o que o alferes Valentim quis dizer, meu capitão, é que a visita do nosso General se destina a incitar-nos a atacar a base da guerrilha, no outro lado da fronteira, numa operação de “nossa iniciativa” que naturalmente ficará secreta”.

Fiat lux!...” Os rostos dos jovens oficiais milicianos abriram-se em luminosa revelação. O Valentim interrogava o amigo com olhar inquiridor. E o capitão Mascarenhas, depois de uns momentos de reflexão e silêncio, deixou que a evidência falasse e, qual Colombo ante a revelação do ovo, abanou a cabeça, entre a incredulidade e o sorriso agora distendido “pois é bem capaz de ter razão, nosso Alferes! Mas onde foi você a desencantar essa ideia tão óbvia?” …
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Diz-me, tu, Maria Adelaide. Tu que tudo sabes e que tudo buscas saber do herói desta narrativa em que te digo e, dizendo-te, se revela o autor (se autor houvesse) corpo e sangue, deste fingimento de escrita, diz-me, tu, Maria Adelaide onde “desencantar ideia tão óbvia”, sendo que os caminhos da vida são o que deles fazemos, deserção ou percurso de glória, coluna erguida ou submissão, mas sempre a permanente ascensão e queda de que são feitos os trilhos da liberdade.

Manuel Veiga


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