Deixara pois de haver
razão ou motivo aparente para as calças do capitão Mascarenhas ficarem
desguarnecidas e, eventualmente, ser
apanhado com as ditas calças na mão e, oficial de Cavalaria, ficar assim
exposto à indignidade paisana de um qualquer desleixo. De facto, fazendo fé na argúcia
do Alferes, sempre duvidosa, é verdade, que ser miliciano é congénita impossibilidade de percepção das subtilezas
militares, mas acreditando que a unanimidade formal recolhida sobre os
desígnios do General Comandante em Chefe na sua visita relâmpago à Tabanca,
pese embora a circunstância de o Alferes não ter ainda aberto o livro de suas
razões sobre a adventícia questão “onde
foi desencantar ideia tão óbvia”, questão aliás que perdera fervura face ao
alcance de descoberta da um novo “ovo de
Colombo”, concluiu o concílio ser doutrina assente, face às razões
longamente elaboradas, pois em qualquer questão, quanto
mais óbvia a resposta mais elaboradas teses e profundas análises, concluiu pois
o concílio de oficiais da Companhia de Cavalaria, após o bridge e o conhaque, que a
ideia do General só poderia ser o incitamento à destruição da base da
guerrilha, no outro lado da fronteira, “passando a bola” da iniciativa para o
Comando da Companhia de Cavalaria.
E não poderá dizer-se
que a maquinação do General Comandante em Chefe e dos seus conselheiros mais
próximos, a ser confirmada pelos factos, pois como se sabe, os factos giram de
narrativa em narrativa, quer dizer, cada qual escolhe os factos que melhor lhe
servem, poderá pois dizer-se, no tempo desta prosa a marcar passo, que a
maquinação do General Comandante em Chefe fora mal engendrada, não senhor, pois
que os generais para isto mesmo se fizeram, para engendrarem soluções de último
recurso, ou seja, desfazerem os “nós
górdios” desta vida, sejam eles tecidos por capricho dos deuses ou maldade
dos homens e, se é certo, que o general Alexandre, o Grande, se fez grande e
dominou a Ásia Menor pelo gesto ousado de, na impossibilidade de
lhe encontrar as pontas, desfazer à espadeirada o nó górdio da época e assim fazer
saltar a “gerigonça” (da História), presa
ao fatalismo das profecias e, bem se sabendo, por outro lado, que a solução
eficaz de velhos problemas, exige tantas vezes a subversão de regras e dos métodos
antigos, deverá reconhecer-se ao General Comandante em Chefe do Comando
Territorial da Guiné exemplar engenho na urdidura do destino da guerra, sem a
bravura, é certo, do General Alexandre, o Grande mas, em qualquer caso, brilhante
na manha, digno de fazer inveja ao próprio Manholas.
Como os factos até
agora vistos e aqueles outros que por aí hão-de vir no fio escrita, pese embora
o fastio de Maria Adelaide, heroína a contra gosto desta prosaica narrativa,
ela cujos olhos apenas vêem poesia e que tem demonstrado apuradíssimo tacto na
busca do “melhor poema”, comprovam
pois tais factos, conhecidos e a conhecer, que a base militar da guerrilha,
instalada do outro lado da fronteira, a escassos quilómetros da Tabanca não poderia
deixar de constituir espinho cravado na garganta dos Altos Comandos Militares,
pois como suportar que um bando de “turras” maltrapilhos e apátridas, ao
serviço de Moscovo e da expansão do comunismo internacional, “pusessem em sentido”, salvo seja, e
controlassem os passos de uma unidade militar do Exército Português, tendo o
Santo Condestável seu patrono, garante da protecção divina na defesa da Nação
Una e Indizível do Minho a Timor e dos valores da Civilização Ocidental?
Em abono da verdade,
deve esclarecer-se, que a Companhia de Cavalaria, desgastada por ano e meio de
intervenção nas zonas mais activas da guerrilha, como Companhia “à ordem” do
Comando-Chefe da Província e colocada agora na Tabanca para apascentar os
restantes meses da comissão de serviço militar, em patrulhas de mera rotina, numa
zona territorial de dominância Fula,
onde até então não havia registo de guerra, aguentava estoicamente as
morteiradas e ataques vindos da base militar dos guerrilheiros, no outro lado
da fronteira, que, sabia-se pelas informações militares, que os boatos em
circulação empolavam, pois bem se sabe que informação militar tem muitas vezes
o mesmíssimo recato de uma honorabilíssima senhora que todo o mundo sabe descair-lhe
o pé e gosto para “pistoleira”, mas
que toda a gente finge desconhecer para assim poder manter-se a honra da dita
senhora, sabia pois toda a Companhia de Cavalaria e, por maioria de razão, toda
a Tabanca que a base da guerrilha fora reforçada em homens e material, mas
ninguém falava no assunto para assim salvar a “ordem das aparências”. É certo que, por enquanto a guerrilha ainda
não atravessara a fronteira, mas eram constantes e inesperadas as flagelações e
os bombardeamentos com armas pesadas, criando permanente desgaste psicológico dos
militares e das populações, de tal forma que, gradualmente, quase sem dar
conta, em poucos dias, a Tabanca ficara praticamente deserta, apenas povoada
pelos elementos da Milícia indígena e
seus familiares, sustentados e pagos
pelas autoridades coloniais. No entanto, o estradão, em terra batida, vindo do
interior leste da Província, que outrora fora o principal eixo de penetração
comercial, através do Senegal, rumo à Gâmbia e ao Mali, encontrava-se, do lado
de cá da fronteira, por enquanto, sob o controle das tropas do Exército Português.
Assim, a situação da Companhia de Cavalaria, embora desgastante, em termos
estritamente militares, não era particularmente desesperada, pois, enquanto
pudesse ser municiada por terra resistiria aos ataques da guerrilha sem
dificuldades de maior. E, em hipotético caso, de ataque massivo da guerrilha
que a Companhia de Cavalaria não pudesse suportar sempre estaria aberta uma
linha de recuo e apoio terrestre. O busílis da questão, ou seja o “nó górdio” que apertava a garganta do
General Comandante em Chefe e embaraçava as calças do Capitão Mascarenhas, que
não gostava de ser apanhado com as ditas na mão, era a singela circunstância de
a Companhia de Cavalaria não se encontrar propriamente cercada pela guerrilha,
mas bloqueada pelos “ventos da História”
e pela peculiar localização em cima da fronteira.
Quem em seu juízo, fora os
casos de cego fanatismo nacionalista ou furor de brio militar, em verdade nunca
de excluir, ousaria dar ordem de fogo eficaz de armas pesadas em direcção à
fronteira, numa clara violação da soberania de um Estado Independente,
reconhecido pela comunidade internacional e com posições militantes contra o
colonialismo português no quadro da ONU e na imprensa internacional?
Esta era, portanto, a
convicção do Alferes, fundada no conhecimento dos homens e das coisas e da
circunstância delas, de que o Capitão Mascarenhas, comandante da Companhia de
Cavalaria jamais mexeria uma palha que fosse do outro lado da fronteira, muito
menos ordenar um comprometedor bombardeamento, ainda que para aliviar a pressão
da guerrilha sobre os homens e o território colocados, em termos militares, sob
seu comando e protecção. E se não o faria o Capitão Mascarenhas por estritas
razões militares de auto defesa, muito menos se arriscaria para o outro lado da
fronteira em perseguição de um desertor, nem que fosse Alferes e seu Adjunto,
em razão de acaso de graduação militar.
Assim concluía o
Alferes, sem que para tal fosse intimado, num tempo outro, ainda na flor dos
dias, quando, balançando-se entre o voluntarismo romântico da deserção e a
palavra venerada do “senhor Gomes”, o velho marinheiro, desterrado e revolucionário, “meteu
na ordem” as suas verduras revolucionárias e lhe esfriou as veleidades de
deserção e a empolgada ambição de se colocar no lugar certo da História, ao
serviço da guerrilha.
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