domingo, dezembro 16, 2018

PRESENTE DE NATAL..


1 - Como Uma Fera

"Como sempre
A impiedade chega
Sem nos lembrar

Os motivos

Vem como sendo
Uma fera
Tomar conta da luz

Dos corações partidos”

Maria Teresa Horta

ESTRANHEZAS – Publicações D. Quixote - pág. 264
Lisboa 2018


2 - Os Dias de Penélope

"- Fiel?

Desconfiam as deusas
Olhando Penélope
Na aparente tessitura

Dos seus insuspeitados dias

Mas ardilosa, parecendo
Cumprir a imagem perfeita
De feminina essência

Ela urdia para si outro destino
Sabendo disfarçar
A própria ardência".

Maria Teresa Horta

ESTRANHEZAS – Publicações D. Quixote - pág. 196
Lisboa 2018


3 - Reinvenção

"Quero ficar assim
Deitada à espera
Que voltes na pressa

Com tua demora

Enquanto te esqueço
A inventar-te e corro
Em cada pormenor

Que em ti aflora

Quero ficar enquanto
Deitada à tua espera
Tu fores a dúvida

Crescendo na memória

A partir da qual eu te sei
E esqueço
E sem descanso fico

A reinventar-te agora”

Maria Teresa Horta

ESTRANHEZAS – Publicações D. Quixote - pág. 70
Lisboa  2018


sábado, dezembro 15, 2018

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 8


Naquele tempo todo o País fervia. Ninguém desejava ficar fora da torrente. O caudal de energias, que a madrugada redentora do 25 de Abril libertou, fazia acreditar que o Futuro ali estava ao alcance de um sopro. Por todo lado se despoletavam iniciativas em vista resolver as graves carências materiais que afectavam as populações, de norte ao sul do País, designadamente, nos domínios da Educação e Ensino, da Saúde, da Habitação, do Saneamento Básico, dos Transportes, de Estradas e Caminhos etc., etc.

Vencer o atraso económico e social a que o fascismo votara o País, era então desígnio nacional, escorado na febre de participativa das populações e no envolvimento dos militares revolucionários, a que a consigna “Aliança Povo/MFA” conferia fecunda expressão político-revolucionária.

O movimento popular e os militares revolucionários lançavam-se, então, nas tarefas de democratizar as Câmaras e Juntas de Freguesia, afastando os caciques e o pessoal enfeudado ao fascismo e, em amplos plenários populares e acesas discussões, procedia-se então à escolha, de braço no ar, de Comissões Administrativas, numa genuína gestão participada, que, apesar de rudes golpes, ainda se mantém como método estruturante da actividade municipal e dos órgãos de freguesia.

Esse caudal de energias emergiu à superfície e empolgava todos aqueles, que na Revolução encontravam resposta às suas mais instantes e cálidas esperanças, procurando, cada um, sem medir interesses pessoais ou cálculos mesquinhos, ser útil a Revolução, na medida das suas possibilidades e de acordo com os saberes de cada um. Tempos empolgantes, de alegria e festa, em breve “domesticados”, que deixaram, porém, marca indelével no devir da história pátria, constituindo-se os proclamados “os valores de Abril” como a pedra de toque e matriz de qualquer acção governativa genuinamente democrática.

Militante activo da Juventude Operária Católica e iniciado na vida e na política por Padre Operário que lhe apaziguava as dúvidas metafísicas, num tempo-outro de todas as ousadias e deslumbramentos, Manuel Maria colocou-se, desde a primeira hora “ao serviço da Revolução”. Novel arquitecto, com diploma conquistado no Instituto Superior Técnico, com o suor da teimosia e persistência de trabalhador estudante, aprendendo, depressa, na austera instituição religiosa que o acolhera, na meninice, filho enjeitado, de amores espúrios, algures numa aldeia ignorada das Terras do Demo e, mais tarde, após a frequência da escola de artes e ofícios António Arroio, como desenhador na Agência de Publicidade, tempo em que Dona Ludovina, afogueada de amores serôdios, o iniciara em outras práticas bem menos cândidas e místicas, cedo aprendera pois Manuel Maria que nada na vida se colhe sem semear, pelo que o gesto de envolvimento no caudal das energias despertas, decorria nele com a naturalidade da água cristalina no percurso da sede, seguro que a Revolução de Abril permitiria, finalmente, dar expressão prática às teses, que tanto o empolgavam, de uma verdadeira Arquitectura para o Povo.

Mergulhava assim Manuel Maria nos seus habituais solilóquios, tomado como estava pela ideia, ao mesmo tempo cálida e receosa de um novo romance e, perante o aguilhão de saber-se como se constrói um personagem, num percurso anárquico da memória, vinha então à tona, com um sorriso de amargura tépida ou finíssima dor, ou descosida auto-ironia, a evocação nostálgica de um tempo de cerejas e borbulhas, como se a vida quisesse a floração de raízes mortas. E, então, nessas dobras da alma, nesse território flutuante, entre os empolgados sonhos de outrora e as inquietas razões de presente, sem nada o fazer prever, agigantava-se no seu espírito a personalidade ímpar do Artur Fontes.

Periodicamente encontravam-se. Sempre que descia a Lisboa nos seus afazeres profissionais, o Artur Fontes telefonava e era pretexto para um almoço em comum e aferir de opiniões sobre a situação do País e do Mundo, amizade caldeada, bem se sabe, naquela época de todas as iniciações e desenfreados sonhos, tempo de gomos e rebeldias a apascentar correrias e ócios e a desenhar revoluções e poemas em guardanapos de papel, em ronda pelas pastelarias da Avenida de Roma, onde o Artur era incontornável, como então os seus maiores prosélitos acentuavam, carregando as sílabas.

Seja como for, a verdade é que o Artur Fontes exercia sobre todo o grupo inegável fascínio, decorrente da sua forte personalidade, a raiar a teimosia, mas sobretudo pelo seu percurso de vida, ponteado pelo exercício da coerência e pela volúpia da acção política, que o levou a algumas invejáveis peripécias e algumas imprudências.

Terminada licenciatura em Direito, o Artur Fontes rumou às suas raízes na Beira Alta, onde organizou camponeses em luta por direitos ancestrais sobre os baldios, contra os serviços florestais e os esbirros do fascismo, numa saga digna de Aquilino Ribeiro e de seu célebre romance “Quando os lobos uivam...”

Com a Revolução de Abril”, o Artur Fontes, foi assim chamado a desempenhar funções de relevo na Administração Pública na área da agricultura e da reforma agrária, que exerceu com mérito, mas por escassos meses. Como bem se sabe a “revolução devora (quase sempre) os seus melhores filhos”, pelo que a curto prazo o Artur Fontes foi afastado das funções, num contexto, assaz divertido, mas que, de momento, não vem para o caso relatar.

A partir daí, refugiou-se o Artur Fontes numa advocacia honrada, colocando o seu saber e o seu talento ao serviço das causas em que acredita, longe dos holofotes das grandes causas e grandes interesses...

Manuel Maria, em seu itinerário de memórias e afectos, recordava a última que estivera com o Artur Fontes, numa tarde cálida de fim de Verão, ao encontro do meu amigo Quim Remédios, que por um qualquer motivo, decidira proporcionar uma noitada de convívio aos velhos amigos da juventude, na convicção de que o prazer do encontro, com umas larachas sobre política, zurzindo a "tróica" e quejandos, temperadas com umas garrafas de bom tinto do Douro e umas incursões no futebol e as “desgraças” da equipa de todos nós, seria o melhor tónico para reagir à depressão que se abatera sobre o País e que, de uma forma ou outra, a todos afectava.

Fora o Manuel Maria, que levara o Artur, ocasionalmente em Lisboa, para o encontro, pois bem conhecia a particular estima e admiração, a rasar a devoção, que o Quim Remédios nutria pelo amigo comum, mas que as contingências da vida raro lhes permitia verem-se.

Assim, pois , também nessa ocorrência o encontro entre ambos foi especialmente efusivo e grato. O Quim Remédios, abrasivo, caiu  do alto do seu metro e noventa, literalmente, nos braços do Artur: “Ó pá, ó Fontes, nem imaginas o prazer que me dá a tua presença!”:- balbuciava o Quim, num abraço arrebatado, acompanhado de dois sonoros e inesperados beijos, na face escalavrada do atónito Artur Fontes.

E o Artur, procurando libertar-se, num sorriso pleno:- “Já chega, pá!... Estás a ficar piegas com a idade!...” E, perante a gargalhada geral:- “E essa dos beijos não tem perdão. Que assédio é este? Queres levar-me ao altar, ou quê?!”

Assim o Artur, de uma ironia, por vezes cáustica, em que disfarça uma generosidade e uma sensibilidade sem mácula. Sem nunca virar a cara a uma boa refrega pelas causas em que acredita. Assim, desde sempre. Quando jovens, alguns de nós fazíamos a “revolução de café”. Porém, o nosso amigo abalançava-se na aventura de “passador de fronteiras”, na tentativa de livrar muitos jovens, carne para canhão na guerra colonial.

A iniciação do Artur nessas lides teve, porém, o seu quê atribulado. Beirão de gema, daquela estirpe (cada vez mais rara) de “antes quebrar que torcer”, voluntarioso quanto baste, movido pela mais genuína amizade, o Artur prontificou-se, em certa ocasião, a colocar em França um amigo, que gemia, pelas esquinas e cadeiras de café, o pavor de embarcar para África, cuja mobilização estava iminente...

E foi assim que, no dia aprazado, os dois rumaram à fronteira, algures no norte do País. A noite de breu gelava. A chuva fustigava o rosto. As urzes rasgavam a roupa e a carne e os silvos do vento, ecoando nos penhascos, ganhavam dimensão apocalíptica. Em cada ruído inesperado, que a noite ampliava, passador e fugitivo viam a aproximação da polícia. Desconhecedores do local, perderam o rumo, às voltas em círculo, mal se afastando 10 km do local da partida.

Até que por fim, de madrugada, apavorados e rendidos, tiveram um rasgo de bom senso e desistiram. O fugitivo foi entregue, no Porto, a “quem devia ser entregue”, isto é, a quem estava preparado para a missão, que então sim, mais tarde, pelos circuitos da clandestinidade, acabou por se refugiar em França.

Mas o desaire não afectou a determinação do Artur Fontes, Pelo contrário, serviu-lhe de aguilhão e estímulo. Hoje, confessa, com uma pontinha de orgulho a brilhar nos olhos, que passado algum tempo, conhecia, como ninguém, todas as veredas, caminhos e atalhos, ao longo de toda a fronteira com Espanha, que lhe permitiam ludibriar a vigilância fronteiriça e os esbirros da PIDE.

Para a aquisição de tão valoroso “know how”, nas suas múltiplas deslocações a Espanha permitia-se correr riscos e passar a salto, estudando a topografia do terreno e memorizando pormenores, de forma a que, no dia em que fosse necessário, não haver hesitações ou dúvidas. Aliás, o método tinha tanto de simples, como de eficaz. Munido da respectiva carta topográfica da área geográfica em causa, encenava uma viagem turística a Espanha e seguia com a família de automóvel até a proximidade da fronteira.

Resguardada que fosse alguma distância de segurança, apeava-se e os acompanhantes prosseguiam normalmente submetendo-se aos respectivos controlos fronteiriços. Entretanto, o Artur avançava a pé, a corta mato, de carta topográfica em punho, registando mentalmente qualquer acidente de terreno, qualquer marca ou sinal, memorizando uma espécie de “abecedário do território”, que lhe permitiria mais tarde decifrá-lo, mesmo de noite, quando fosse necessário.

Do outro lado da raia, no local previamente combinado, os acompanhantes aguardavam, simulando, no caso de aproximação da Guarda Civil, uma avaria ou outro qualquer expediente, que despistasse a vigilância policial, até o Artur chegar e poderem prosseguir viagem. No regresso, o mesmo percurso para cimentar o itinerário no registo da memória.

Foi, aliás, a propósito de uma dessas viagens de reconhecimento da fronteira, que o Artur Fontes contou, naquela noite de confraternização de amigos, quando os vapores do álcool se acendiam nas mentes e nas conversas, uma cena digna das melhores anedotas a que, por vezes, no negrume daqueles tempos, serventuários do fascismo e o miserabilismo do regime se prestavam.

O episódio conta-se aliás em poucas linhas. Já em fins do regime, algures na fronteira do Alentejo, de regresso de Espanha, o Artur, acorrentando ao seu destino de mapear na memória os percursos da evasão, vindo de Espanha, deparou, em sentido contrário, na vereda onde seguia, já no lado português, um soldado da GNR, que à distância lhe pareceu acenar...

Que fazer?! Recuar não podia, pois seria denunciar-se; prosseguir era cair na boca do lobo, que é como quem diz na ferocidade da polícia portuguesa. O dilema, porém, demorou uns escassos segundos: - “P´ra frente é que é o caminho e seja o for!...” , animou-se o Artur, apelando ao melhor do seu sangue frio...

Meteu a mão na algibeira das calças, onde por cautela trazia engatilhada, para qualquer emergência, uma pequena pistola e desabafou para os seus botões: “De homem para homem, neste ermo, não me apanhas! No primeiro gesto hostil ficas estendido no chão com um tiro na testa!...”

E prosseguiu caminho, com os nervos e músculos retesados, de encontro ao inevitável guarda. Ao cruzarem-se na estreita vereda, o guarda correspondeu à saudação e seguiu como se nada fora, o que o levou o Artur a presumir que “daquela já estaria safo”... Eis senão quando, uns metros andados, o guarda se voltou, gritando:

- “O senhor aí, faça favor!...” Gelou o sangue nas veias do Artur Fontes e a mão acariciou a coronha da arma. Voltou-se, calmamente, como se nada fosse: “Que se passa, senhor guarda!...

E o agente da autoridade, a quem a Nação confiara a vigilância e a guarda das fronteiras e, quiçá, a honra da Pátria, que uns desnaturados, a soldo do comunismo internacional, abastardavam, num sorriso comprometido, indagou timidamente: “Será que por este caminho chego a Espanha sem ninguém me ver?! Sabe como é - a minha mulher faz anos e gostava de lhe poder oferecer uns caramelos!...

Respirou fundo o Artur Fontes. E, na sua melhor bonomia, respondeu, sorrindo: “Sem dúvida, senhor guarda! Quer melhor prova? Aqui me tem – acabei agora de fazer o mesmo!...”

E, cada um, ao seu destino...

Nesta altura, a rebolar-se de gozo, o Quim Remédios, com uma formidável gargalhada e soberba palmada nas costas do Artur, apanhado em contra fé: “Que grande nabo me saíste! Se em devido tempo, em lugar da política te tens dedicado ao contrabando de café, hoje bem poderias ser um grande nababo. E rematou, acentuando a gargalhada e a amistosa provocação: “Porventura, Comendador com medalha ao peito!...”

E o Artur, sempre tão austero e arredio a modas, num sorriso tolerante, socorreu-se de um obsessivo slogan, instalado nas noites televisivas, para afirmar:  “Lá poder, podia!... Mas não era a mesma coisa!...”

Assim os homens. Alguns homens...


Manuel Veiga

quinta-feira, dezembro 13, 2018

RUMO À CIDADE INVICTA




Rumo à Cidade Invicta! 

Não certamente ao "Assalto dos Céus"...
Mas decididamente à "Conquista dos Macaréus" ! ...

Bem Vindo Quem Vier Por Bem !





terça-feira, dezembro 11, 2018

"PAS DE DEUX" ...


Fusão de corpos. Simetria alada
Em movimento.

Transgressão furtiva.
E serenidade flutuante
De gestos.

Apenas o olhar
Se molda.

Espaço eco de leveza
E murmúrio. E frémito.

Deslumbre. E comedida espera.
E chama. Engalanada.

“Pas de Deux” a derreter-se. Livre
E o céu a derramar-se.
Imaculado.


Manuel Veiga

sexta-feira, dezembro 07, 2018

MACIOS MOSTOS ...


Abre-se a paisagem ao horizonte
Em delírio de olhos desmedidos. Memórias recidivas
Como se foram ainda açucenas colhidas
E o regaço. E o joelho incauto desguarnecido.
E viesses com a leveza de águas
Em mandil de coado tempo
A desalinhar orla
Dos sentidos.

Ergo-me e declino o nome.
Caminheiro de devoções pagãs que me visitam
Tão faceiras, que nelas me reinvento
Em néscio alvoroço.

Música que irrompe no declive do corpo. E do tempo.
E nos ecos recolhidos. Toada de abismos.
Coleante percurso dos veios
E profundos rios.

Águas bravias
Cascata de enleios
E macios mostos …


Manuel Veiga

sábado, dezembro 01, 2018

UMA PÁLPEBRA DESCIDA ...


Um quase-nada, uma pálpebra descida
Uma luz inesperada. E o poeta
Se incendeia. E vibra...

E a imaculada pele
Agora é devassa do olhar
Que assim prolonga o frémito
Da pálpebra recolhida…

Empolgante a entrega nessa dádiva
E a flor do dia. E a luminosa
Lágrima…

Manuel Veiga


sexta-feira, novembro 30, 2018

"DO AMOR E DA GUERRA" - Na Cidade do PORTO


“(...) O que aí vai, Maria Adelaide. Cada vez mais acutilante esta queda para comigo implicares e que tão bem cultivas, mas que a mim não engana, pois esse teu jeito, que terás que reconhecer, por vezes, um pouco excessivo, outra coisa não é, senão uma forma de chamares a atenção, como criança o regaço materno, requerendo, uma carícia ou um beijo, que noutros tempos seria acendalha do fogo que nos consumia que agora é cinza que nos aquece.
(…)
Porém, se te desses ao trabalho de escavar “o ruído da escrita”, bem se sabendo que “o autor não existe” e, assim, também não o sujeito de um qualquer discurso moral, em que te possas apoiar e estivesses um pouco mais atenta à linguagem das coisas e ao sentido dos comportamentos, compreenderias então que o corpo físico da escrita, em que o Alferes se desenha, no espaço mítico da Tabanca, é expressiva enunciação de um “discurso de poder”, cujo sentido faz explodir o mero jogo das aparências. O que o discurso revela é que do “outro lado” do Alferes, tal como é apresentado, permanece uma realidade outra, possibilidade apenas, que fica oculta no limbo da escrita e, no limite de um frágil acaso, estabelece a diferenciação entre o “herói” e a vítima. Qual deles te mereceria mais cuidado?

Mas bem intuiu o Alferes a subtil diferença e as ocultas “determinações” da sua acção, ou as fundas razões das suas escolhas que, podendo a Tabanca marcá-lo com o anátema da “negatividade” o afirmou como “fiat lux” promissor na saga em que se joga seu destino e que outra coisa não é senão a clarividência de ter compreendido, antes de verdadeiramente o saber, que “não existe poder, sem exercício do poder” e que todo o poder, seja qual for a sua natureza, sobretudo o poder militar, se reveste de sinais, ritos e símbolos, numa liturgia cujo exercício é a marca visível de “autoridade” e de domínio. Porque, minha querida, as relações sociais, sejam elas expressão do microcosmos da Tabanca ou do vasto Mundo, são relações de poder, em que uns quantos (poucos) o exercem e os restantes (muitos) são sujeitos e que alguns, bem conhecendo a tramóia em que o(s) poder(es) se desenrola(m), lhe(s) resistem e, ao resistir-lhes, os liames de um poder-outro vão tecendo.

De que serviriam ao Alferes os seus doirados galões de oficial do Exército se não fora a sabedoria e a oportunidade de colocar “em sentido”, no sentido literal do termo, o Sargento Fernandes, em manifesta abjuração, pelo desleixo, da ideologia militar de que era enformado? E sem resistência, obviamente, que a ideologia militar é “totalitária”, quer dizer, não admite, sobretudo, em teatro de guerra, linhas de transigência, nem fissuras de dissidência. Ao “vigiar e punir” um comportamento desviante, o Alferes redimiu o poder militar de que provisoriamente era e, por momentos, precários que fossem, foi sumo-sacerdote da sua (dele, poder militar) ideologia. Ámen!…”

Manuel Veiga

“DO AMOR E DA GUERRA – Fragmentos” - Pág. 52
Edição MODOCROMIA – Lisboa 2018



quinta-feira, novembro 29, 2018

VIVÓ FADO, OH!...


Evoca o escriba o favor de um verso
Saem-lhe ao caminho as dores do Universo…

Ergue-se então o poetastro lesto
Silaba a silaba e aí vai disto
A despejar o verbo chato…

E arrulhar cânticos festivos´
No esguicho tardio…

E lá no alto o periquito
A depenicar as bordas
Do vaso

E arder no espasmo …

Vivó  fado, oh! …

Manuel Veiga

terça-feira, novembro 27, 2018

COMPREENDER O FASCISMO - Hoje


Tal como no Século XX, o actual ascenso da extrema-direita é expressão da profunda crise do sistema capitalista, que procura afirmar o seu poder e garantir a sua sobrevivência. O combate ao perigo do fascismo, com velhas e novas características, exige a compreensão da sua essência. Exige que não se ignorem as lições da História, ao mesmo tempo que se identificam características novas que o fascismo assume nos nossos dias.
(…)
O fascismo surgiu das entranhas da grande crise do sistema capitalista mundial, com a catástrofe da I Guerra Mundial e, após 1929, a profundíssima crise económica que, com epicentro nos EUA, rapidamente se espalhara a outros países do centro imperialista. A Guerra dera lugar, em 1917, à primeira grande Revolução Socialista na História da Humanidade, inspirando trabalhadores e povos de todo o mundo, mostrando a alternativa ao belicismo, miséria, exploração e opressão do capitalismo. O grande capital receava perder o controlo.
(…)
O fascismo sempre foi uma arma de arremesso contra o movimento operário e contra o perigo de que o descontentamento de largas massas com os efeitos da crise do capitalismo se dirigisse para uma via revolucionária, colocando em causa o próprio sistema.

A natureza do fascismo não foi de início clara para todos. Se era evidente a sua extrema violência contra o movimento operário, a sua natureza era dissimulada pela mentira e uma demagogia social mistificadora, supostamente ‘revolucionária’, ‘anti-liberal’ e nacionalista, que visava esconder a sua real essência, permitindo assim capitalizar o descontentamento de largas massas, vítimas do capitalismo.

No VII Congresso da Internacional Comunista (1935), Dimitrov dizia: «o fascismo chega ao poder como partido de ataque ao movimento revolucionário do proletariado, às massas populares que estão em estado de agitação; e no entanto apresenta a sua ascensão ao poder como um movimento ‘revolucionário’ contra a burguesia, em nome de ‘toda a Nação’ e pela ‘salvação’ da Nação. Lembremo-nos da ‘marcha sobre Roma’ de Mussolini, da ‘marcha’ sobre Varsóvia de Pilsudski, da ‘revolução’ nacional-socialista de Hitler na Alemanha».

E acrescentava: «O fascismo não é (apenas) uma forma de poder de Estado que se coloca acima das classes – do proletariado e da burguesia como diz, por exemplo, Otto Bauer (dirigente social-democrata austríaco). Não é a ‘revolta da pequena burguesia que capturou a máquina do Estado’, como declara o socialista britânico Brailsford. [...] O fascismo é o poder do próprio capital financeiro».

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domingo, novembro 25, 2018

HORIZONTE LÍQUIDO DO TEJO


Vicejam espinhos nas ruínas do tempo
E os rios medem as margens no sobressalto das árvores...

Em seu pudor - ou resguardo - a palavra lateja. Mítica.

Clandestina embora atiça o fervor que germina
Nos rostos calcinados e na amargura dos homens.
E o alvoroço ganha então asas nas veredas do sangue.
E no percurso inóspito dos passos...

As mulheres revestem-se de sibilinos gestos
E soletram a boca das crianças
Nas migalhas...

E erguem o olhar pleno. Antigas ânforas
Que repletas extravasam. E minguadas se aprestam
A todas as sedes e a todas as urgências.
E que de mão em mão passam. Gloriosas...

Fecundos são os dias assim pressentidos
Que amadurecem como crisálidas. E se soltam serenos
Na arribação das aves. E nos ritos da memória...

E se advinham no pulsar expectante da cidade
Ainda agora cais. A erguer promessas.

E a desenhar velas
No horizonte líquido do Tejo...


Manuel Veiga
25/11/2018

quarta-feira, novembro 21, 2018

DULCÍSSIMAS ÁGUAS


Serenos correm os rios e com eles
As tumultuosas águas se enternecem e se dobram
Na plácida hora. Nada neste estio
Se agita para além do sonho
E do sobressalto do sangue
Em louvor dos afluentes:
Sons que distantes
Celebram os percursos
Da memória
Incendiada…

Sou este percurso de sílabas
De um alfabeto inventado
Em que me digo.

Vertigem
E inaudíveis sons
Que respiro no alvoroço
Das margens…

E esta torrente de plenas emoções
E dulcíssimas águas…

Manuel Veiga
(Poema editado)

segunda-feira, novembro 19, 2018

JOGO DE SOMBRAS


Côncavo movimento
E prenúncio
E decantação
Das horas
Expeditas.

Comprime-se
O leito das águas
E as margens…

Grasna o corvo
Branco o bailado
Dos sinais…

Jogo de sombras
A ditar regras
E a contabilizar
As perdas…

Manuel Veiga


quarta-feira, novembro 14, 2018

ARGILA DO SONHO


Na pele dos dias um arrepio da Memória.
Afluentes a percorrer por dentro os veios
E a argila do sonho. E o destino da água.
E o sortilégio. E a imensidão do lago...

Há neste arfar dos homens um destino mudo.
Suspenso. Como as labaredas de um incêndio
Pressentido apenas no voo inesperado
Dos insectos. E no delírio do restolho.

Somos a massa que fecunda. Elos de um percurso
Que os ventos traçam.

E de que os deuses zombam...

E, no entanto, nesta ardência da vontade (que se expande) 
Perdura uma febre e uma surda espera.
Como se a Festa de outrora
Mais que festa fosse Aurora...

Ou palavra nova
A despontar no léxico
E na gramática do Mundo...


Manuel Veiga


sábado, novembro 10, 2018

O MEU ESPÓLIO...


O dia em que um poeta for enterrar
Entregar-te-ei o espólio de meus sonhos.

Talvez recebas apenas
Minhas cãs em desalinho.
Ou as cinzas pela antiga casa
E as maças emolduradas.
E a sala de visitas deserta
E o silêncio dos passos.

E o chocolate fervido e o vinho quente
A atapetarem o palato
E as narinas.

Ou talvez a brusca debandada de meus olhos
Tordos acesos a riscar o ar e agora baços.
Ou o espúrio cio dos gomos.
Ou o calor íntimo das amoras
Mel silvestre a tingir as bocas
Ante o incêndio
Das salivas.

E encontrarás, estou certo, um ramo de lírios
Desbotados, acabados de colher, e o regaço
Da Mãe e a criança solitária e o fio de água
De meus olhos agora secos.

Talvez a bênção do dia e missa dos sentidos
Encontres nessa caixa de abandonos.

Ou aquele poema amarrotado
De que me faço distância e eco
A martelar nos ouvidos
Como remorso
Ou destino:

Que mais nada tenho! …


Manuel Veiga


quarta-feira, novembro 07, 2018

NÃO CABE AO POETA....


Poema é pura forma – sem regra
E sem guarida…

O poeta é de outra instância
É torre que assinala. E o húmus.
E a substância.

E é o parto que fomenta. E é a gravidez do mundo.
E o gesto inaugural
E o xisto que detona
E o fogo sagrado
E a ara em que se imola. E a febre.
Verbo sem mácula negando-se à captura
Da Forma...

Não cabe ao poeta o curso do poema.

Manuel Veiga


domingo, novembro 04, 2018

NA GRANDE FARRA DAS LETRAS...


Um destes dias um poeta, com banca na praça,
Meio por graça disse que minha poética caligrafia
Era escrita à mão ainda e, se por acaso, eu sabia
Que a poesia, toda ela, hoje em dia, salta
Das entranhas do computador e se derrama
Pelas ruas citadinas em gigantes placards
E montras, não de chocolates, mas de iguarias
Bem recicladas, como noticias esventradas,
Ou bombas por explodir algures em qualquer lugar
Ou esquina do mundo. E se consome sem sal
Em fulgor hiper-realista. E se ilumina consumista
Nas escórias do luxo. E do lixo.

Eu não sabia, por isso, saí da refrega com
O rabo entalado qual cachorro de feira enxotado
Pela cozinheira, a polvilhar a mistela do dia.

Mas fiquei a matutar na minha. E como no fado
Dedilhado em que o fadista se esganiça, fingindo
Que chora, o que então não disse, vou pois
Dizer-lhe agora que prefiro a poesia me venha
À mão como “dobrada fria” em vez do arrepio
Fervilhante dos bits a formigar nas teclas
Dos computadores. E que dispenso o incenso
E contorcionismos do hip-hop. E a borbulha tardia.
E que a culinária literária me faz azia a derreter-se
Nas bocas hipermodernistas. Ou nas tretas
Da grande farra das letras.

Manuel Veiga

(Poema Editado)

Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...