segunda-feira, fevereiro 05, 2018

FRAGMENTOS - Epílogo


Com a morte de Maria Adelaide, julgava-se o narrador definitivamente liberto das grilhetas da escrita, arrumadas que foram, no céu das coisas ardidas, todas as palavras ditas, pois todas aquelas que não foram, podendo ser, ficarão para sempre recolhidas no limbo eterno das meras possibilidades. Mas eis que lhe batem à porta, uma a uma, as personagens dispersas ao longo da narrativa, desde o soldado Assobio e o grupelho de reguilas alfacinhas, capitaneado pelo cabo Bonanza, passando pelo capitão Mascarenhas, Dona Rosalinda e tutti quanti, reclamando para si próprios, um destino, que seja ele qual for, mas não as deixe ficar, assim, desgarradas e suspensas, quais mortos-vivos a arrostar, ad eternum, as inclemências de personagens mal delineadas. E tudo para brilho e glória de Maria Adelaide -  enfatizam – o alfa e o ómega desta narrativa, que ela diz não ter ponta por onde se pegue.

Em suma, vê-se o narrador, “devorado” pelas próprias personagens, que exigem para si próprias um final em beleza, quer dizer, preenchida a respectiva função na arquitectura da narrativa, requerem, a final,  não serem descartadas como mera quinquilharia literária, sem préstimo.

Qual a escapatória, digam-me? Tanto mais que assumidamente o autor não existe e o narrador é apenas mera escora dos filamentos da escrita, que a torna possível, mas na qual ele próprio, narrador, se molda e metamorfoseia ,em função das exigências narrativa.

Assim o narrador nesta emergência e neste sonho, meio tresloucado, neste agora de um tempo sem tempo, a abrir-se, nas alturas, sobre as águas fétidas de uma qualquer bolanha da Guiné, toda a majestade do Céu e o esplendor da Santíssima Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, incarnados no profano Corpo de Dona Rosalinda, Maria Adelaide e a Dulcíssima Lia, como se fora Aparição inscrita em retábulo, ou pintura, ou fresco medieval e o Valentim, escudeiro mor do Reino dos Céus, qual centurião romano a capitanear brioso esquadrão de amazonas e a desbaratar as arremetidas dos exércitos infernais, vindos das profundezas da bolanha a arder em chamas ácidas e a extensa fila dos condenados, qual centopeia de mil pernas, ligados, derreados, chicoteados pelo chefe da Pide na Tabanca, o agente de 1ª Classe, Antunes e o “kamenino” Gaspar, “alma negra” do Armando, que assombraram a vida de Dona Rosalinda e que, caídos nas entranhas do Inferno, são os fogueiros e servos e “homens de mão”, em rigor, “almas à mão” dos Diabos maiores, o General Comandante-chefe de todos os Diabos, Demónios e Mafarricos, na sua máxima dignidade de Diabo, corpo peludo, patas, rabo e chifres de bode, a chispar enxofre pela boca e os seus lugar-tenente, o coronel “cuequinhas de renda”, também com figura de chibo, mas que, pelo avantajado cú, sempre a rebolar, se distingue do Bode Maior e bem assim o João, marido de Maria Adelaide e árvore do mesmo chão e amigo de infância do Alferes, herói a contragosto da narrativa, em palpos de aranha para chegar a bom porto, também ele, o dito João, caído no eterno fogo do Inferno, a distinguir-se das restantes classes de diabos maiores pelo tamanho do par de cornos e o capitão Mascarenhas, suspenso da forca, com a língua fora, a balançar com o sopro das chamas e um dístico dependurado ao pescoço “deixai toda a esperança, vós que entrais” e o Alferes Berros da Selva, diabo menor, com figura de mastim negro e grande coleira, sempre a rosnar, guarda das portas do Inferno, como se Cérbero fora, com três cabeças e filar as almas dos condenados pelo pescoço, mediante um simples gesto do Diabo, Comandante em Chefe, de todos os diabos, demónios e mafarricos e o Alferes Barbas, sempre de bem com todos, servindo no mesmo lance Deus e o Diabo, alma penada agora, a gemer pelo espaço a sua eterna solidão, pois que nem o Inferno o quer, nem o Céu o deseja e a extensa fila de almas, fora do tempo e do espaço, a agitarem-se e a protestarem o seu lugar na fila, e o Soldado Assobio, misto de Arcanjo S. Miguel e de bobo, saído de qualquer página de Gil Vicente, sem mãos a medir, a registar e a pesar a almas e gritar “ó da barca!”  e a encaminhá-las, as almas, para a barca do Céu ou para a barca do Inferno, conforme o respectivo peso, e agora neste tempo fora do tempo, o glorioso Padre Manuel, tio e padrinho de Lia, por sua santidade nomeado Prior-mor do Reino dos Céus a chegar à porta para serenar o chinfrim do dito Manoel Caetano avô paterno do Alferes de Cavalaria, que alferes foi, oficial adjunto do Comandante de Companhia, por acaso de graduação militar e seu padrinho de baptismo, algures numa aldeia ignorada no norte do País, bem como o Padre Casimiro, que de padre tinha o direito de rezar missa, mas ele a rezava quando muito bem entendia, que outros afazeres e prazeres o corpo lhe pedia, unha com carne, Padre Casimiro e Manoel Caetano, que ambos se negavam a entrar no Céu sem as pipas de vinho e os presuntos que com eles traziam, pois Céu não concebiam sem boa pinga e uma boa lasca, mais a mais o Assobio descobrira na nesga do registo de almas, serem ambos putanheiros e brigões, de tal forma que o Arcanjo Assobio lhes negava a entrada no Céu, não fossem eles, brigões e putanheiros, a desfazer o equilíbrio perfeito da Santíssima Trindade, o que seria o verdadeiro Caos, com o Céu e o Inferno a confundirem-se e misturarem-se e, daí então, a alma piedosa do Padre Manuel, Prior-mor do Reino dos Céus, a garantir ao atarantado Arcanjo Assobio que conhecia aquelas almas há mais de uma Eternidade e que eram, apesar dos seus exageros, almas generosas e pias e que aquilo escrito nas laudas do registo de serem brigões e putanheiros eram calúnias levantadas pelos “talassas” do Paiva Couceiro, que nos tempos idos da “traulitada monárquica” no norte do País, apenas os dois, Padre Casimiro e Manoel Caetano, valentes e feros, à força de bordoada, correram com  a secção” de “talassas”, aboletados na sede do Concelho e arriaram a bandeira monárquica do edifício da Câmara Municipal  e, em seu lugar, como era devido, colocaram a bandeira da República, removendo assim um inesperado obstáculo ao livre curso dos desígnios da Divina Providência, sendo de levar também a julgamento, como atenuante dos dois amigos, brigões e putanheiros, a circunstância do Padre Casimiro, com a sua imensa sabedoria das coisas do Mundo, ter salvo o jovem Aspirante a oficial miliciano, tenro ainda em primeira recruta, que aliás exibe o nome honrado de seu avô, Manoel Caetano, das garras e da cobiça da menina Gertrudes, mais conhecida por “Papa alferes” e de sua tia Dona Miquelina, que a imensa Misericórdia e Bondade de Deus as levou para o seu Santo Regaço e fez delas as faxineiras do Céu  e, assim, disse, ao atarantado Arcanjo Assobio, a alma do santo e piedoso Padre Manuel, que morreu, como bom pastor, no exercício de seu múnus sacerdotal, rodeado de suas ovelhas, que nunca lhe faltaram com a côngrua e, louvado seja Deus, nem com a assistência à missa, roído por uma ferida ruim que lhe corroeu a garganta e agora por mercê de Deus, Todo Poderoso, Prior-mor do Reino dos Céus e, assim dito, se aprestou, ainda que contrariado, o atarantado Arcanjo Assobio, que apoucalhado fora e agora, neste tempo sem tempo, zeloso pesador de almas, a deixar passar para a Glória dos Céus os dois amigos brigões e putanheiros, as pipas de vinho e os presuntos, sem que S. Pedro, em breve (ou propositada) soneca, tivesse dado por conta.

Assim se abriram as portas do Céus, aos dois amigos, feros e brigões, mas capazes de darem a camisa, a quem, dos seus, dela precisasse e, em cortejo celeste, guiados pela alma tísica do Padre Francisco, a quem as humaníssimas dores e o amor de Lia haviam resgatado das chamas do Inferno, era agora, neste tempo fora do tempo, Auxiliar dos Serviços Gerais da Corte Celestial e, à passagem, ia fazendo notar aos dois novos comensais da Graça Divina, os amigos brigões e putanheiros, as divinas figuras a povoarem o incorpóreo Reino de Deus, que bem se sabe ser Eterno e assim, de passagem, à esquerda ou à direita, não se sabe bem, pois tudo no Reino de Deus não tem distância, nem forma e tudo se passa num Momento, em qualquer caso a voar no espaço celestial, em harmoniosa formação de “Ordem Unida”, um coro de magníficas vozes, dirigido pelo Prof. Eduardo Filomeno, que a remissão de seus pecados e a sua enorme paciência e tolerância com um “bando de reguilas estudantes”, antecipando um “bando de reguilas alfacinhas”, capitaneados pelo “cabo da Cifra” “Bonanza”, tipógrafo da Imprensa Nacional, que cabo da cifra já não era, a pinchar clandestinamente os muros de Lisboa “Viva a Liberdade!”, assim o anteciparam os reguilas estudantes de um Liceu, algures no norte do País, a escrever no quadro negro com giz vermelho “Viva Humberto Delgado, o general sem Medo!” para pânico e o desespero do Prof. Filomeno, que estudantes, imprudentes, lhe estragavam a vida, e agora, neste tempo sem tempo, a harmonizar e fundir, no mesmo amplexo divino da música de Bach, os dois grupos de reguilas, estudantes e operários, irmanados no mesmo desígnio redentor da Pátria profanada pela injustiça e pela guerra, ambas filhas do Diabo.

E o Alferes Cartuchadas, médico e pediatra, nomeado Responsável-mor da Secção Infantil do Reino dos Céus e, como bom alentejano. a ir ao vinho e ao presunto dos abençoados transmontanos, pois bem se sabe que, no Céu, aquilo que é de um é de todos, deslumbrados que estavam os transmontanos com o Coro Celeste, agora a ensaiar “Cante Alentejano”-
……………………………………………………………………………….

Naquele tempo sem tempo, em que os sonhos residem, a bolanha acesa era, então, água negra de mil decomposições, fétida, arrastando detritos e todas as sínteses, como o caldo primordial de todos os acasos de vida, esqueletos, carapaças, jacarés apenas olhos seguindo a presa, algas venenosas, insectos, batráquios, vermes, minúsculos seres, quase invisíveis, filando-se na carne dorida de homens inocentes. E sobre eles o Céu a abrir-se em esplendor de Luz e Cor, qual La Nave, de Fellini (ou seria o Uíge?) e toda a Paródia da Vida, em metamorfose rodopiante pelo espaço!

Acordou. Sobre a cidade, um dia de sol primaveril. Era um dia claro e límpido!  Floriam cravos vermelhos no cano das espingardas…
……………………………………………………………………………..

E este pobre narrador, que não é um homem justo e que, por vezes, tem a pretensão de jogar aos dados com a vida, declara que ateia fogo, em praça pública, às palavras e cenas atrás escritas, em expiação, não de seus pecados ou culpas, mas de seus exageros...

Manuel Veiga

Lisboa 05/02/2018

Fim


9 comentários:

Mariazita disse...

Bom dia, Manuel
Como leitora recente dos seus escritos devo confessar que as vezes (duas?) que por aqui passei ative-me com particular atenção à sua poesia, que considero de grande qualidade.~
Desconhecia os seus dotes como prosador, aliás, pensava, erradamente, que o Manuel apenas escrevi poesia.
Pois fiquei agradavelmente surpreendida!
Este texto/excertos é muitíssimo bom.
Gostei imenso.

E, já que aqui estou, aproveito para fazer um convite:

Como não possuo o seu email venho aqui dizer que gostaria de partilhar consigo a postagem que publiquei no dia 01/02/18, no meu blog A CASA DA MARIQUINHAS/
Desde já o meu “Bem haja!”
Beijinhos
MARIAZITA / A CASA DA MARIQUINHAS

PS – Desculpe o “copy & paste”

Larissa Santos disse...

Fabuloso e poderoso texto.

Bjos
Feliz Terça-Feira

Odete Ferreira disse...

Não tenho podido seguir os teus "Fragmentos", com a atenção que requerem, por isso não faço qualquer comentário ao conteúdo, à trama narrativa.
Da forma, no que respeita a todos os parâmetros textuais, reafirmo o que já disse em outros momentos: muitíssimo completa, pois que o modo de narração, a riqueza lexical, a literariedade são, por ti, manuseados com o saber fazer de um grande prosador e que, nestes aspetos, não podes desculpar com o narrador.
Aplausos, Manuel. Bjinho

Teresa Almeida disse...


E o narrador, que gosta de "jogar aos dados com a vida", não resistiu a queimar os pesadelos em público. Ao fechar "Fragmentos", talvez suados a cada página, escancara a janela do dia esperado e limpo.
Apesar de tantos desacertos, Portugal escreveu, na história mundial, a revolução dos cravos. E a guerra em África teve, assim, o seu epílogo.

Parabéns, Manuel, por este perfume de liberdade.
Beijinho.

Olinda Melo disse...

Olá, Manuel Veiga

Muito bem visto.Os personagens tinham todo o direito a um fim para as suas vidas, embora aqueles a quem coube o inferno como última morada não terão ficado muito satisfeitos.
Mas, este capítulo que põe fim a esta narrativa é um desfilar de cultura. Temos aqui um encontro imediato com deliciosos fragmentos de muita sabedoria ligada à História, à Literatura. E tudo muito bem urdido.
Um narrador de Qualidade.

Abraço.

Olinda

Suzete Brainer disse...

Parabéns pelo projeto literário, um livro de excelência, originalidade
e cultura.
A narração é outro ponto do autor, que domina muito bem a arte da
escrita. Vai muito além de um contador de história, é um criador
de personagens com alma, devido a competência da estruturação do
perfil psicológico e descritivo de cada personagem.
Outro ponto de rara beleza neste livro, é que o escritor é um
Poeta e isto nos encanta com vários momentos de prosa poética
a ficar impregnada na nossa alma!...
Fui uma leitora desde do começo da tua generosidade das
publicações aqui no teu blog, me dando a oportunidade das
leituras preciosas.
Meus votos de muito sucesso com o livro, caro amigo Manuel.
Bjo.

Ana Freire disse...

Um final apoteótico, Manuel, onde se passa em retrospectiva todas as personagens incorporadas nestes Fragmentos... um texto de uma riqueza literária e descritiva, absolutamente geniais!
Muitos parabéns, Manuel, por este projecto, que não deixa cair Abril no esquecimento... antes vem relembrar, porque se tornou necessário...
Beijinho! Feliz semana, e um óptimo feriado!
Ana

José Carlos Sant Anna disse...

Caro amigo,

Acabou o recesso carnavalesco. Retomo as "passadas" aqui aonde elas foram interrompidas e aproveito para dizer-lhe que incorporei este final ao meu conjunto.
Espero dar conta em breve da leitura deste livro.
Forte abraço, "espirituoso" amigo!

Agostinho disse...

Deu-se vir ler.

Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...