quinta-feira, junho 28, 2018

HEI-DE INVENTAR UM RIO...


Um dia, hei-de inventar um rio
E derramar pétalas na boca dos amantes.
E então todas as margens serão
Registo de meus passos.

E todas as águas salivas buliçosas:
Espuma dos dias e sinfónicos cânticos
A ecoarem no palato
E nas línguas…

E hei-de inaugurar um archote de lume
Em cada praça. E em cada esquina
Uma memória altiva.

E cada lago uma fonte.
E cada terreiro será grito
D´um pregão.

E todos os nomes serão o mesmo nome.
E todas as pontes a passagem
De meu corpo.

 E serei piano na escala
De meus dedos. E vadio fado no abismo
De meus olhos…

E oceanos!…


Manuel Veiga

segunda-feira, junho 25, 2018

DO AMOR E DA GUERRA - Biblioteca Ary dos Santos - Sessão Adiada



De acordo com a Editora Modocromia 
e a Direcção da Biblioteca Ary dos Santos
a apresentação foi adiada
para depois do Verão!

(...) "Não, não existe autor. Nem a soberania da palavra. Aquilo que é dito e o interdito confundem-se, sem remissão. De nada serve proferir um nome ou inventar um rosto. Apenas os silêncios são epifania. E, se autor existisse, assumiria então o comando da narrativa, ordenaria os farrapos da memória e o discurso fluiria incessante e cristalino. E o grau zero do inumano ganharia a expressão do absurdo. E a discursividade dos limites e do sofrimento seria uma palavra mordente, declinada em apóstrofe ou blasfémia. Mas não. A palavra fica presa nos liames e nas picadas e nas veredas lodosas e na profusão incessante daquelas águas chocas. O pavor e a raiva e a infinita solidão daquele calvário, as chagas nos pés e todas mazelas e todos os gritos se calcinaram, no rasgar do cansaço sobre os corpos como lâminas de desespero e na sufocante ansiedade de lhe apressar o fim. E embotaram toda energia e resistência. Apenas o cansaço poroso a invadir os sentidos, os olhos moles de sono a fecharem-se, o cachação do camarada que o pior seria adormecer e tombar no lodo, inerte, como morto, fora do tempo e do mundo, numa desistência de absoluto abandono. E a extensa fila de homens, qual centopeia de mil pernas, ligados, derreados, serpenteando a orla da “bolanha” num trilho de indígenas, enquanto a maré sobe e água negra de mil decomposições, fétida, arrastando detritos e todas as sínteses, como o caldo primordial de todos os acasos de vida, esqueletos, carapaças, jacarés apenas olhos seguindo a presa, algas venenosas, insectos, batráquios, vermes, minúsculos seres, quase invisíveis, filando-se na carne dorida, como agulhas finas. Penosos os passos, presos no lodo e o sol derretendo-se no lombo, como bestas. E a água morna a tomar o percurso das pernas e das virilhas, a infiltrar-se no corpo, a dobrar a cintura e atingir as axilas. E os homens de braços erguidos, como numa prece muda, ou castigo, de G3 sobre a cabeça, último reduto de identidade" (...)


sábado, junho 23, 2018

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 2



“Chamo-te Flávia em óbvia evocação da chama em que te agitas e do fervor do meu desejo e, em artifício, soletro teu nome, como sobressalto, em arrepio de pele ou beijo em teu ouvido e a expressão risonha de teu rosto "não me faças isso!"...

Entendamo-nos: estas palavras são urgência tua. São tempo antecipado de um futuro que não será. Tenho a certeza, porém que te queres assim projectada sobre este vazio de nada, ainda que as palavras nos dedos queimem e, reinventando-te, te apague dentro de mim, como que bebendo o último trago e a mesa posta.

Compreendo que viesses em esforço de ti. Vieste por mim, está claro. Mas Maria Adelaide seduziu-te. Quiseste vê-la de perto. Mais do isso, no fundo de ti quiseste os seus momentos e a sua vida. Devo dizer-te que se não fora crueldade eu te daria a Maria Adelaide - tenho por vezes essa vertigem. Seria delicioso pressentir o vosso fogo, a gentileza suave do vosso encontro, a tensão do meu desejo, e o brilho cintilante de vosso olhar em meu sorriso. Irias gostar da Maria Adelaide, estou certo, e ela iria apreciar a ousadia. Mas estás em vantagem, Flávia. És o presente e ela, Maria Adelaide, é passado que não mais nos pertence. E, este jogo de transgressão e desejo, teria que ser jogado com as armas iguais. Fica por isso calma e serena teu sangue - daqui não passaremos. E deixa que te diga que na galeria de afectos, em que sou apenas a moldura, não ficarás mal, de corpo inteiro, a seu lado, não apenas flash fotográfico, mas retracto (embora incompleto) pintado a óleo, que exige maturação e talento”.

Assim Manuel Maria desafiava os deuses a conceder-lhe a primeira página para o seu novo livro, pois se os deuses concedem aos poetas, em cada poema, o primeiro verso, porque não os deuses não haverão conceder a primeira página aos escritores, descontada, porém a magma distância, pois que prosa é coisa banal, todos nós a exercemos, mesmo que alguns a pratiquem e não o saibam e a poesia (ah, os poetas!) é o néctar, o perfume, a infinitude, o almíscar e a ambrósia a derramarem-se no corpo e na boca dos deuses, quiçá o unguento e o afrodisíaco caprichando em leito de metáforas, qual pétalas de flores raras.

Desafiava, pois, Manuel Maria, os deuses a concederem-lhe para este seu segundo livro, se não a protecção, pelo menos a tolerância e, se não a tolerância, ao menos a indiferença, pois que, bastas vezes, caprichosos como são os deuses, vale mais tê-los distantes que próximos, sendo certo, porém, que Manuel Maria hesitava ainda entre a volúpia de novo desafio e a confortável apascentação dos dias na administração do atelier de arquitectura, cujas responsabilidades gradualmente passara para o filho, a quem reconhecia capacidade e maior vocação.

Fizera parte do pequeno grupo de arquitectos que, anos atrás, havia projectado e a reconversão urbanística da zona oriental de Lisboa, decorrente da edificação da Exposição Mundial de 1998, o que lhe permitiu granjear um apreciável portefólio de contactos profissionais e de clientes, condição primeira para se afirmar na profissão, honrando seu múnus, embora sem rasgo ou a pontinha de génio ou a luzinha da sorte que o projectasse para prémios e as paragonas dos jornais. Assim, numa mediania recompensadora, Manuel Maria se considerava realizado como arquitecto, profissão que, aliás, a vida lhe impusera, mais que deliberada escolha pessoal, pois se liberdade de escolha houvera e o destino dos homens fosse livre arbítrio. em vez de arquitecto, debruçado sobre desenhos e mapas, a conceber imóveis e edifícios, talhando cérceas e delineando frontarias, para os quais, depois, um qualquer “pato bravo” se estará solenemente borrifar, outro seria o espaço da sua pródiga criatividade, como realizador de cinema ou encenador de teatro, pois sempre se sentira atraído pela sábia manipulação de linhas, tempos, palavras, imagens e sons e, em cada uma das suas específicas linguagens extrair os significantes para, num passe de mágica, os fazer eclodir e extrair deles novos espaços de comunicabilidade, como se de “arquitectura viva”, se tratasse.

Mas a vida é aquilo que é, sem apelo, nem agravo e bem sabemos serem a maioria das vezes, as circunstâncias a determinarem os passos dos homens e os homens comuns a ajeitarem-se às circunstâncias com que se deparam, sendo porém que o equilíbrio das coisas e dos factos e dos tempos, se repõe, por vezes, com a magnitude de acções, gestos e gestas tão prenhes de Futuro, que, em tais casos, bem pode afirmar-se, que são os homens a determinarem o fulgor das suas próprias circunstâncias.

E, assim, alguns homens inscrevem a sua pegada no curso dos dias. Não era o caso de Manuel Maria, conforme já se percebeu. Estava, pois, disponível, mas não para cortes radicais e não é com a sua idade que se dá uma volta de 180 graus à vida. Fora de causa, por isso, a ideia do cinema e ou do teatro, que aliás exigem recursos e equipa que não possuía. Seria uma aventura enorme e risco de fracasso tão óbvio, que não estava disposto a correr. Mas talvez, sim, manter esta bem-sucedida incursão no universo da literatura, que lhe permitia a recreação da vida e da realidade do cinema e do teatro, sem lhe assumir as dores e escrever um novo romance, mais não seja para calar murmúrios e invejas e provar, definitivamente, a si próprio e seus detractores que o seu talento e que o sucesso do seu livro recente não fora obra do acaso.

Mas hesitava ainda Manuel Maria, calculando intimamente os prós e os contra de prosseguir a sujeição da escrita, se não valeria mais entregar-se ao prazer de viajar, buscando atmosferas e sensações desconhecidas, por esse Mundo fora, ou pura e simplesmente regressar à sua região, alimentar o bichinho da política, que nunca o abandonou, envolver-se nos problemas locais e, quem sabe, se até candidatar-se à Presidência da Câmara Municipal.

Mas tudo isto pressupunha cortar com rotinas e pequenos prazeres “sair da zona de conforto”, como, hoje em dia, a ideologia dominante designa a resiliência de cada um e não é, sem fundadas razões que, depois de dobrados os sessenta anos, se muda de “estilo de vida”, sem decisivas razões.

A literatura, portanto, impunha-se, assim, como exclusão de partes. E nesse universo de ficção e fingimento, Flávia, que um dia Manuel Maria quisera actriz e vedeta de cinema, colheria o esplendor e a grandeza de heroína de ficção literária.

Manuel Veiga
  

terça-feira, junho 19, 2018

ANTI COCEIRA - Cenas De Uma Peça Burlesca ...



1ª Cena: A Dama, o Cão, o Cego... e a coceira do Cego

Um cego lazarento e empertigado, coçando-se:

Maldito cão, que está cheio de pulgas – vou mudar de cão!”…

A Dama, abrindo a caixa das esmolas. Vazia…

“Vou mudar de vida – estou farta de ser bordão de cego sem “guito”! …

O Cão, alçando a perna e “marcando o território” nas calças do cego:

“ Vou mudar de patrão – este cego não vê um palmo à frente do nariz! …”

E uma pulga, sabida, saltando do cego para o pêlo do cão:

“Vou mudar de poiso – este cego está acabado!...”

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2ª Cena: A esquina da praça, o mesmo cego e um poeta cínico

O cego em sua ladainha, na esquina da praça, estendendo a mão:

Uma moedinha, uma moedinha, dê uma moedinha, por favor!...”

Os transeuntes não ligam – apressados!
E um poeta vagamente cínico, em maré de generosidade, coloca na mão do cego 10 cêntimos:

“Toma lá e vai-te coçar! É para mandares cantar um cego!...”

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Manuel Veiga

sábado, junho 16, 2018

Todos os Rios São a Mesma Sede



Para a minha amiga Suzete Brainer
distinta Poetisa brasileira

(Evocando o seu recente Poema "Sem Palavras")


São os deuses traiçoeiros em seu delírio
E das pátrias decidem as bandeiras
Como destino dos homens.

Em cada dor, porém, uma tempestade
E um rasgo de mãos acesas
Sem fronteiras.

Nada do que é humano respira sozinho
E os Povos não reconhecem oceanos
E todos os rios são a mesma sede
E crestados lábios.

E todas as fomes se somam
E todas as angústias são látego colectivo.

E em cada luta há sempre um afago indefinido
E em cada muro um grito subterrâneo
Que explode em cada gesto
De dizê-lo.

Nada os deuses nos devem
Mas são os homens que se inventam
Em cada dádiva de amor rebelde
E liberdade

E quando um Povo sofre (ou se liberta)
É toda a Humanidade!…

Manuel Veiga




quarta-feira, junho 13, 2018

AZUL MORDENTE...


Mordente azul e espiral acesa
Lume dos olhos e vertigem no tecer dos dedos.
Mágicas são as distâncias e os socalcos do tempo
A escorarem velados sonhos.

O corpo é dorso ofegante de quimeras
E o cavalgar indómito dos mostos
Frutos na extensão das margens
E lábios murmúrio de água.

Dias de espera no latejar do sangue
E prece muda.

E vorazes são os percursos
Na modulação das formas. E no registo
Pendular dos dias.

E na língua. E no palato das palavras
Deglutidas. E nos murmúrios.


Manuel Veiga

sábado, junho 09, 2018

FLÁVIA ...


Levantaram-se e saíram. Manuel Maria desejou que para o automóvel, no parque da esplanada, sobre o oceano, na zona indefinida em que o Tejo se faz Mar e onde desembocam todas as viagens, aquelas que foram, “cravo e canela” de outrora e guerras de África e agora “europa connosco”, que assim novos tempos nos requerem e viagens outras, “circuito dos tristes”, de turistas ricos e migalhas, quem poderá dizer nunca, em fim-de-semana rotineiro, com o Bugio ao fundo, a respirar sonhos e a remoer vidas, crianças agitadas, no banco traseiro, fatos domingueiros a espartilhar os corpos, lábios rubros e olhos alongados, belezas frustres replicadas e olhares postiços e seduções colhidas em deferido nas páginas das revistas femininas, filas intermináveis e o futebol aos gritos, as unhas roídas e golo que tarda e o “Benfica que não ganha” e o stress e a janela aberta e os dedos em riste a fuzilar o “chico esperto” e a réplica e o insulto “filho da puta és tu, ó cabrão” e o pé no acelerador em contramão “ala que se faz tarde” e o apito da patrulha a soar estopinhas e o deslassar dos corpos na mornice e a sonolência agora e o despiste mais à frente e a cabeça de fora e o palpite e a mulher cala-te homem! estou farta de te ouvir e morta por chegar a casa e os afazeres ainda que segunda feira se aproxima e o banho das crianças e o dia seguinte e as queijadas a fazerem azia e o enjoo ao pensar no corpo mole entre suas pernas abertas, assim a vida de mulher e uns dias seguidos aos outros, todos iguais e quando não, antes fossem iguais, sempre.

Roteiro obrigatório de suburbanos passeios e glória maior de todos os circuitos turísticos, ora escapatória de amores clandestinos em maré alta, ora refúgio de apátridas quem poderá resistir ao sortilégio e encanto da paisagem da “linha do Estoril”? Não Manuel Maria que na sua obsessão por Flávia considerou o cenário ideal para desfazer resistências da sua jovem amiga, naquele encontro tão longamente maturado.


Desejou pois o automóvel, mas mais uma vez Flávia trocou-lhe as voltas. Em vez da intimidade do espaço fechado, onde as mãos poderiam circular e o diálogo da pele dar sequência ao diálogo ainda quente das palavras e olhares, ela saiu para a extensão da areia deserta e o horizonte infinito da tarde do outono.

Seguia-a. Deslaçou o nó da gravata e, com o casaco atirado sobre o ombro, seguiu-a, contrariado. Sentia-se um pouco ridículo na praia de fato e gravata, bem sabendo que o almoço demorara, as horas passavam e algures, na cidade, a sua ausência seria comentada. Porém, seguiu-a...

 “- Que se lixem, não quero saber da reunião para nada!” – observou, entre dentes, detendo-se por momentos nos compromissos profissionais da tarde. E desligou o telemóvel...

Tentou passar-lhe o braço pelos ombros de Flávia, aconchegando-a, mas ela desfez a carícia. Soltou os cabelos em cascata, sacudiu a cabeça fulva e rebelde (ela nunca se penteia) e seguiu, cadenciada, acentuado o donaire. A maresia inundava as narinas dilatadas…

O sol, ainda quente, queimava os poros. Uns passos atrás. Manuel Maria seguia-a, sempre. Dominado o impulso. Serenando o sangue. Tecendo caprichos no bambolear das suas ancas. Os passos deixavam a marca da passagem de um homem e de ma mulher na solidão tarde, que caía...

- “ Gostava de te saber nua!..” disse, num murmúrio, saído do âmago do desejo, que ela tão bem adivinhava.

Voltou-se Flávia, num sorriso. E, sem nada o fazer prever, deixou cair as sandálias, soltou as alças do vestido e a nudez soberba de seu corpo explodiu na serenidade plena da tarde. Um homem perplexo, uma mulher nua e a paisagem, apenas. Sem outra glória, nem crime. Apenas o crepitar do momento único, na mente do homem.

Correu, como corça acossada, desejando o fogo predador. Manuel Maria agora sorria Dobrou-se, alcançou as peças de roupa abandonada e seguiu-a. A passo, antecipando o momento. Saboreando o prazer pagão de dádiva da vida.

Metros adiante, oculta por uma rocha milenar, com as ondas lambendo-lhe os pés, estendida no acolchoado de areia fina, ali estava Flávia, expectante, em sua impudicícia.

- “Ofereço-te o livro do meu corpo, saberás ler as suas letras?... “ – exclamou, em convite sorridente.

(À distância, o realizador feliz, como se Eric Rommer fora, filmava e sorria, rodeado pela sua equipa...).

Manuel Veiga






sexta-feira, junho 08, 2018

Na Metamorfose Dos Ecos.


 Catedrais de pedra e silêncios íntimos
Na metamorfose dos ecos…

Lábios-beijo na orla das cambraias
E dos linhos. Devoções que se elevam
Na febre dos olhos…

Tecem ogivas e capitéis os dedos
E altares no rosto das ausências

E o lusco-fusco da tarde. Dolente
Arde, chama azul, o círio. E devotos anjos
Descem dos altares

E derramam incensos na maceração
Do tempo. Corpo inaugural das horas
Na fermentação de quimeras
E dos mitos.


Manuel Veiga



quarta-feira, junho 06, 2018

"Meta-lhe Esporas, Senhor Zezinho..."


No espaço social-rural da minha infância, o lugar que cada individuo nas hierarquias sociais era, em grande medida, estabelecido pelo meio de transporte individual. Da base ao topo, os meios de transporte, eram assim, "escatologicamente" distribuídos:

“À pata”, quer dizer, a pé, naturalmente, para o pé-descalço, que se arrastava, de terra em terra, em busca do favor de um trabalho, por rude que fosse.

De burro, animal resistente, de escassa comida e poucos protestos, para os rendeiros pobres, com uma ranchada de filhos, que nas ladeiras íngremes cultivavam uns alqueires de centeio, sustento da família e que, mal chegado o Inverno, já escasseava.

De macho ou de mula, animal estéril, híbrido das espécies burro e cavalo, encorpado e possante – utilizado por almocreves ou um ou outro agricultor de menores posses.

De égua, animal nobre e distinto, liberto do opróbrio dos trabalhos pesados, entregues a pachorrentas juntas de bovinos; era o meio utilizado pelos agricultores mais ricos e de melhores terras - a égua acrescentava, à elegância do porte, uma outra vantagem: ser género feminino, logo parideira e o consequente ganho das crias.

Finalmente - topo de gama - o garboso cavalo, símbolo da ostentação e dos resquícios de uma fidalguia de fundilhos gastos e poluídos que, arruinada, teimava em (mal) subsistir num mundo inexoravelmente em mudança.

Após esta breve resenha, estarão agora, porventura, os meus leitores, mais aptos e melhor apetrechados para a compreensão da “estória” que me propus contar-vos.

Passou-se assim...

Montado em sua fogosa égua que, em escassas horas o levava à sede do concelho, o brioso agricultor, herói desta “estória”, depois de distribuir ordens a familiares e serviçais, rumou cedo à vila, em vista satisfazer afazeres que administração do casal exigia e, naturalmente, para “desenferrujar” os sentidos, desfrutando o bulício “urbano” da feira concelhia.

Ponto obrigatório era o Grémio da Lavoura, no centro da vila, lugar de ajuntamento dos lavradores, provenientes das diversas aldeias, das mais distantes às mais próximas, que depois de fazerem o “manifesto” (registo obrigatório) do trigo ou do vinho, ou uma compra ou outra de uma qualquer alfaia ou utensílio agrícola, por ali se ficavam, arredondando conversas, sabendo novidades, falando do estado do tempo e das colheitas, ou empertigando-se, na sua importância social, ditada pelos haveres e fazenda de cada um.

Mas todos fazendo parte da mesma “elite rural”, pois que, naquele clube de “patrícios”, como mutuamente se designavam, não havia lugar para qualquer um que não se medisse numas boas jeiras de terra, lavradas por uma, duas ou três juntas de bois. E, naturalmente, quem não pudesse sustentar uma esmerada, vistosa égua, um must de prestígio, como, por certo, neste momento da narrativa, os meus leitores já se deram conta.

Assim, nessa tarde em fim de Verão, distendidos os corpos das tensões do dia e animados os espíritos com uns copos de vinho a celebrar reencontros e amizades antigas, quando o nosso herói, com a égua pela brida, se preparava já para regressar a penates (que a distância não era peca e de um momento para o outro a noite caía), surgiu no grupo mais um empertigado conviva, alargando-se assim a roda.

O protagonista da estória que, desde tenra idade, frequentava feiras e mercados e, por todas as aldeias do concelho, tinha amigos e conhecidos - como era de sua condição. Muitas vezes, aliás, por ocasião das celebrações festivas, era hóspede e conviva em cada lar, por mais distantes que fossem os festejos e os convites. Era, por isso, quase um escândalo não “frequentar”, num processo de mútuo reconhecimento, quem, na área de todo o concelho, “merecesse a pena” conhecer. Quer dizer, não havia, por toda a área do concelho “patrício” com quem não se medisse!

Mas a verdade é que não conhecia o novo intruso...

O “escândalo” e a angústia existencial eram tanto maiores quanto é certo que o retardatário estava a ser nomeado, por um ou outro dos circunstantes, como “senhor Zezinho”, suprema glória de distinção o tratamento em “inho”, ele que nunca fora “antoninho”, mas apenas António, a que muitos acrescentavam, com alguma velhacaria, não o apelido da família, mas a “alcunha” que herdara do honrado nome de seu pai e que, alcunha essa, haveria de prolongar-se por filhos e netos.

“Quem seria, pois, o figurão?”, interrogava-se, intimamente, espiando adames e trejeito, sorvendo-lhe a verve desenvolta, admirando-lhe os lustrosos polainitos de cabedal, a prender-lhe, por cima das botas, a perna das calças.

E, sobretudo, o luxo de duas reluzentes esporas afiveladas, uma em cada pé, ele a quem uma única espora bastava para meter a trote a garbosa égua, lustrosa de bom trato e de um azeviche negro de causar inveja ao mais pintado. “Quem seria, pois, o finório”? ...

E, neste diálogo com seus botões, jurou para si o herói da nossa estória que não acabaria o dia “sem lhe conhecer a montada”, pois que todo aquele aparato lhe soava um pouco a falso... Dito e feito. Simulando compras de última hora, despediu-se do grupo de “patrícios”, recomendando-se a amigos e familiares distantes e, de égua pela trela, deu mais uma volta pela feira já prestes a levantar ferro. Sempre, naturalmente, atento ao desmanchar do grupo.

Quando percebeu que o grupo se desfizera e que o regresso a casa se iniciara, também o nosso herói montou e, medindo tempo e distância, meteu a égua em trote acelerado, bem sabendo ele que, antes os caminhos bifurcassem, ele para oeste, em direcção à ladeira do rio e o intrigante “senhor Zezinho” forçosamente sempre em frente pelo planalto, haveria de alcançar a ranchada que, pelos caminhos sempre se junta, trocando chistes e gargalhadas e, certamente, no meio dela, diferenciando-se, o sujeito, objecto de suas inquirições íntimas. E a respectiva montada, está claro...

Desesperava, no entanto, o herói desta fita. Passara, em trote firme, um e outro grupo barulhento, que saudara como lhe cumpria, moderando a passada, mas “onde diacho se metera o homem”? Não havia maneira de o descobrir por muito que acelerasse ou moderasse o trote...

Até que, quase a desistir, depois de vencer uma curva que, por momentos, encobria o seguimento do caminho, lobrigou a umas dezenas de metros de distância, despernado do grupo que mais à frente se distanciava, um vulto que se diria quixotesco. Imaginem assim os meus leitores o porte garboso e altivo do “cavaleiro da triste figura”, firme e hirto, a montar, não o estimável e brioso cavalo Rocinante, mas o burro lazarento e mirrado que servia de montada e apresto ao seu fiel escudeiro, companheiro de aventuras.

Pois, assim, o “senhor Zezinho” para espanto e gozo do protagonista desta estória. Montando, em pêlo, a lazarenta criatura, com dois sacos presos um no outro, servindo de alforges, as pernas compridas do cavaleiro atravessavam-se por baixo da barriga da besta, com o reluzente par de esporas, a bater uma na outra, num tilintar obsessivo, salvando-se assim a azémola das ferroadas dos espigões que, bem lhe bastavam as picadelas de moscas e zangões.

Contido o riso e o gozo, o nosso herói não resistiu à picardia: “Meta-lhe esporas, senhor Zezinho, olhe que se faz tarde. E se a noite chega ainda tem que levar a montada ao colo...”

E, apertando a égua, abalou em galope, por entre a poeirada dos cascos, que os últimos raios de sol davam tonalidades doiradas...

Manuel Veiga


"NOTÍCIAS DE BABILÓNIA e Outras Metáforas" - pág. 141
MODOCROMIA  Edições  - Abril 2015

segunda-feira, junho 04, 2018

MAIO 68 - "Tous ensemble, dix ans, ça suffit! ..."



"Ao Maio de 68, a todos os acontecimentos desse ano em todo o mundo, ninguém ficou indiferente. Gostasse ou não deles. Passar do sonho e da utopia à realidade deu força a outros movimentos, mesmo os da intimidade, dos costumes, da igualdade de sexos e da «revolução sexual», que não ficando concluídos, contribuíram para novos comportamentos, ideias, para o carácter do ensino e a atitude dos professores, para a confiança na força da contestação do que parecia imutável e da sua capacidade de transformar."
Mas os media dominantes também criaram mitos, uma interpretação própria das causas e consequências, valorizaram aspectos marginais, desprezando o essencial do que se passou.
Houve os que agiram com uma agenda própria de retirar do movimento operário e da população em geral a influência de organizações políticas e sindicais, que lhes tinham sido essenciais no confronto com o patronato e a direita – o Partido Comunista Francês (PCF) e a Confederação Geral do Trabalho (CGT)..."
(...)  
António Abreu - in AbrilAbril

sábado, junho 02, 2018

Todas As Ausências São Lugar de Mágoa


Todas as ausências são o lugar abstracto
Das dores e das mágoas que em círculo
Celebram o estertor da palavra.

E prenunciam a euforia
Dos silêncios.

De nada vale queixar-nos: nem as palavras,
Nem as coisas, em sua linguagem muda,
Sobrevivem ao colapso das formas.

Nem ao surdo rumor das esferas
A desenharem o perfil invisível dos dias.
…………………………………………………..

Todas as magnas coisas fluem sem cessar.
Sem nada pedirem. Ou deverem.

E em sua inocência,
Abrem-se e fecham-se, tricotando, mudas,
A caligrafia do Mundo.

E  o ritmo dos caminhos.


Manuel Veiga


sexta-feira, junho 01, 2018

FEIRA DO LIVRO - "Do Amor e Da Guerra - Fragmentos"



(…) “A par, naturalmente, de uma contextualização autobiográfica do conflito e da vida (os amores, o medo, as vivências, as memórias geracionais que Manuel Veiga, com hábil contenção narrativa, introduz no corpo discursivo): uma dimensão pedagógica e pragmática; a assunção da verdade como método estruturante do narrado, o estigma da culpa e da responsabilidade, a determinante intervenção no discurso do narrador/protagonista, do autor/personagem, uma dextra capacidade de ficcionar os factos, de reflectir sobre os elementos do vivido entrelaçando-o com a reflexão do tempo social, afectivo e histórico – e o sujeito como interlocutor privilegiado entre o narrador omnipresente e o leitor”
(…)

Domingos Lobo


(…) “O livro inicia-se, assumindo-se de forma desafiante como se não houvesse um narrador humano, e onde o próprio livro ganha essa especialidade. É assim que a obra ganha vida e forma no palco da imaginação e vive das emoções criadas pelo enredo.
 E o enredo é fantástico, tanto pela remanescência das memórias de um escritor que se revela, mesmo não existindo autor, mas também por se afirmar um livro maduro e enredado nos saberes da vida, que fala por si num espaço temporal de memória, no espaço que lhe couber, para acolher personagens, com liberdade plena para serem moldados e caracterizados pelo leitor, deixando à sua mais ímpia imaginação, as feições, gestos e anatomias, sem que isso altere o rumo da história”
(…)

Raúl Ferrão




Orquestração de Hinos

  Polpa dos lábios. E a interdita palavra Freme… E se acolhe Em fervor mudo E sílaba-a-sílaba Se inaugura… Percurso De euf...