sexta-feira, agosto 31, 2018

POEMA HIPERMODERNO ...



 … Retomo o discurso no ponto em que estávamos!

Nada do que ficou dito merece outro registo
A não ser o vácuo aceso das palavras
Que se entretecem irrestritas.

Na verdade que importa o tempo e o modo
Em que as palavras foram ditas? Depois de escritas nada
Nas palavras ditas permanece noutras palavras
Que fenecem já mortas. Antes de serem escritas…

Desditas as palavras continuam ditas!...

E na verdade inscritas noutras palavras
Que embora ainda não ditas serão logo desditas.
Cacofonia das palavras ditas. Tempo e Modo e o vazio
Das palavras que uma vez ditas serão logo escritas
No som das palavras que embora desditas
Serão sempre ditas…

… Retomo o discurso no ponto em que estávamos!


Manuel Veiga





... E, no entanto, as palavras podem ser tão belas!

terça-feira, agosto 28, 2018

MAGNÂNIMO O VOO DAS AVES...


Magnânimo o freixo e sua sombra
E os braços erguidos, em oração muda.

Magnânima a margem das ribeiras
E as cascatas no silêncio das montanhas.

Magnânimas as pontes que não deslassam
E as pedras que ficam pelos caminhos.

Magnânimo o toque das igrejas e os altares
No olhar compassivo dos incréus.

Magnânimo o voo das aves e a vertigem
E todos os prenúncios extraídos das entranhas

Magnânima a Lua e as noites de Agosto
E a bebedeira dos sentidos assim expostos

Magnânimo o ar que respiramos e o pão
Dos pobres. E a sede de todos os proscritos.

Magnânimas as almas piedosas e o gesto pio
Na forca dos condenados.

Magnânimo o dia de ontem e a gravidez do tempo
No coração dos homens.

Magnânimo o final da tarde e piar do mocho
E rouco cântico do poeta em sua humanidade.


Manuel Veiga

segunda-feira, agosto 27, 2018

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 6



Manuel Maria era agora uma esfera de fogo, a percorrer o Universo de sua vida, relâmpago efémero que, em sua absoluta luminosidade, deglutia, como magma absoluto, todos os resquícios da memória fossem eles a majestosa paisagem do corpo de Flávia, fossem as gargalhadas do amigo Quim Remédios, subindo o Chiado, rumo à Brasileira, saboreando as inarráveis cenas da sua última (a)ventura cómico-erótica, ou até mesmo o registo indelével de todos os outros momentos silentes que, para bem e para o mal, determinam o curso e o percurso dos passos e emergem, no desamparo dos dias, como bálsamo ou ariete, a espicaçar energias e resiliências, ou amaciar os inóspitos caminhos.

Manuel Maria era, assim, nessa evocação dos tempos da Agência, explosão em carne viva, ou abalo telúrico, no confronto sistémico entre a clausura da Instituição a que fora entregue, tenro de anos e minguado de afagos e onde ele, menino, cedo aprendeu que a vida se ganha todos os dias com o suor do rosto, biblicamente falando, está claro, e na renúncia aos prazeres, que amolecem a alma e a vontade, enfim, maquinações do Maligno, desde o início do Tempo, para arrelia e castigo dos homens e sua soberba.

Fustigava-se, pois, mentalmente, Manuel Maria, nesse confronto retrospectivo de tempos e mundos, da austeridade do Colégio e os votos de castidade e as frustradas esperanças da Mãe e daqueles poucos que na aldeia, em que por pecaminosos desígnios, viera ao mundo, acompanhavam, de longe, a sua vida e que gostariam de o ver padre para descargo de suas consciências e o tempo desse agora literário em que ardia, consumido pelo balzaquiano corpo de Dona Ludovina e outras seduções e experiências que estava longe de imaginar na aridez da sua vida, mas que o sopro de liberdade, fora de murros e amarras, precipitava, em pletórica sedução, no seu sangue e na sua viva curiosidade pelas coisas do mundo.

É verdade que essa metamorfose da consciência de si não se fazia sem dor e a realidade da vida e suas seduções que, em girandola festiva, se abriam em sua paisagem de possibilidades, como jardim de delícias, que importava provar, traziam um preço amargo. Valiam-lhe, então nesses lances mais acesos e perturbadores, as longas conversas com o tolerante padre Telmo, fervoroso padre-operário, serralheiro mecânico, numa grande empresa industrial, nos arredores de Lisboa, das quais saía, quase sempre, gratificado e robustecido e mais apto para os embates da vida e das suas escolhas fundamentais.

Este, portanto, “ o drama de Manuel Maria”, quase émulo de “Jean Barrois”, personagem de Roger Martin du Gard, no conhecido romance “O Drama de Jean Barrois”, quando Dona Ludovina, paralelamente à iniciação sexual, levou também muito a sério o robustecimento do seu espírito e o introduziu, numa “selecta tertúlia”, com rasgados encómios ao seu, dele, Manuel Maria, talento, não apenas artista plástico, mas também poeta, cuja qualidade ela, Ludovina, estava apta a garantir.

Acontece que pontificava no grupinho um casal, recentemente regressado de Paris, onde no rescaldo de todos os Maios, proclamava, em beatitude, que a História estivera ali mesmo, na polpa de seus dedos... Era um homenzinho enfezado, a rondar os cinquenta anos, de luzidia careca e pêlos indiscretos no nariz e nas orelhas. A barriga empinada e as pernas curtas emprestavam-lhe um ar de aranhiço prestes a armar a teia. O olhar líquido e redondo, por detrás de uns óculos de tartaruga, acentuavam-lhe a famélica postura da aranha à espera da presa.

O homem, porém, quando a cerveja escorria, de tudo falava. Nem era necessária plateia. Conhecia todos os argumentos. Entre os existencialistas e marxistas (peleja fora de moda, dixit...) tomava naturalmente partido pelos primeiros. Discorria com ardor sobre o “nouvau roman”. O cinema e a “nouvelle vague” não tinham segredos. E também os estruturalismos de todos os matizes: tratava por tu Althusser, Lacan, Foucault,  Derrida e tutti quanti!...

O homem era nitidamente um “semiótico”!...

A rapariga, - Cléo para os amigos - bastante mais nova, vivia em permanente devoção. Acendia-lhe os cigarros. Colocava o açúcar no café. Mexia e remexia. Carregava os jornais. Assinalava os artigos de interesse. Sacudia-lhe a caspa dos ombros. Enfim, sabe-se lá o que mais não lhe faria... A moça, era engraçadota, mas fisicamente desleixada, como era chic na sua condição de intelectual. Num caderno, de folhas azuis e linhas, escrevia seus poemas, onde quase sempre “a alma se rebelava contra as torpezas do poder”.

Aconteceu que um dia, passado algum tempo, já com as agruras metafísicas apaziguadas, Manuel Maria, depois da Agência, na sua passagem pela Leitaria, deparou com a Cléo sozinha, na mesa habitual. Explicadas as razões e, depois de minutos de conversa, palavra puxa palavra, olhar pede olhar, a ocasião faz o ladrão e estavam os dois falando de sexo!... E ela categórica “não me importava de fazer amor contigo, mas não te vale a pena, não presto na cama” e ele a dar-lhe, num arroubo desenfreado, próprio dos tímidos e das noites recalcadas, “não há como experimentar”, patati...patati...patatá e ela a não se fazer mais rogada e ele que havia semanas que não pensava noutra coisa e meu dito meu feito, passados escassos minutos estavam os dois na cama.

Manuel Maria, que passara com distinção no estágio de Dona Ludovina, usou de todo arsenal de recursos aprendidos e inventou outros. A Cléo, porém, nada!... Nem um gemido, nem um movimento, nem uma carícia, nem um esgar, nem uma palavra de estímulo, nem um fingimento... Nada, literalmente nada!... Um corpo inerte, amorfo. Apenas os olhos se reviravam nas pálpebras, em cada assalto. Naturalmente, frustrado...

Digam-me lá, se por mais esforçado, alguém naquela situação poderia resistir e completar a função!... Pois bem, o Manuel Maria desistiu. Desistiu e nunca mais apareceu na Leitaria e naquele cenáculo de cultura...

Apenas soube da Cléo, tempos mais tarde, no fervor da Revolução, Manuel Maria, novel arquitecto, embrenhado e empenhado no projecto SAAL e no propósito revolucionário de resolver os problemas habitacionais da área metropolitana, acabando com a vergonha das “barracas”, à entrada de Lisboa e que tanto desfeavam a cidade. Nessa emergência, a boa e disponível Cléo, aparecia enfileirada num barulhento grupelho esquerdista, exigindo, aguerrida, o socialismo “Já!...” e a resolução dos complexos problemas da habitação para o dia seguinte. Nem a velha amizade com o jovem arquitecto Manuel Maria, que insistentemente evocava, lhe domava a urgência revolucionária.

Passado anos, já no refluxo do sangue e da Revolução, com a Cléo, novamente, fora de circuito, em França, Manuel Maria é surpreendido pelo Quim Remédios exibindo um exemplar da revista “Cahiers du Cinema” a apontar a foto de capa “esta não é tua amiga Cléo?” – indagava. Pelos vistos, a Cléo triunfava no cinema em França. E, perante a surpresa e genuíno prazer de Manuel Maria, o Quim Remédios, com um sorriso matreiro, rematou “imagino as “cambalhotas” que a Cléo teve que dar para conseguir esta foto”. E Manuel Maria, num sorriso irónico “não sejas maldoso, o triunfo da Cléo deve ser mesmo talento, porque, nas “cambalhotas”, a Cléo é um desastre…”

E, então, Manuel Maria contou ao amigo, expert em mulherio e cambalhotas, a cena da sua despedida da Leitaria e da “selecta tertúlia”, em que, ao tempo, a Cléo e seu amigo semiótico pontoavam. Foi muito bem feito! Quem te manda andares com intelectuais?!” - soltou numa gargalhada, o Quim Remédios e sentenciou: “Nunca ouviste dizer que as mulheres burrinhas são as melhores na cama”?

Manuel Maria embatocou. Mas passados momentos, já recomposto, meio a sério, meio a rir: - “E se forem intelectuais e burras?”

-  “Então é a desgraça completa. Não te invejo a sorte!...” – rebolou-se Quim Remédios, babando-se de gozo... Digam lá se não é reconfortante ter um amigo assim conhecedor das subtilezas da alma feminina e de seus mistérios!...

Manuel Veiga

sábado, agosto 25, 2018

Coisa de Nada...


 Expectante a hora. Cálida! …
Como se a chegada fora pétala
No vaivém da palavra
Aguardada …

Sombra que se agita.
E se inquieta. Gota de água
Translúcida a ferver
Alvoroçada…

Vibração de poeta
A morder a tarde que tarda!

Coisa de nada!…


Manuel Veiga

quarta-feira, agosto 22, 2018

A MEMÓRIA É IMENSO LAGO...

A memória é imenso lago que nos devolve o rosto
Transfigurado. Pedra a desfazer-se
Depois das casas morrerem ...
Itinerário de cinza
A despenhar-se
Por dentro ...
Garganta apinhada e celeiro talvez
A explodir em pio de ave
Ou fissura por onde
O fogo arde
Ainda ..
.
Manuel Veiga
"CALIGRAFIA ÍNTIMA" - Poética Edições - 2017


sexta-feira, agosto 17, 2018

SEI DAS FONTES ...


Sei das fontes e das festivas águas.
E sei das lendas. E de moiras a bailar
E dos fios do luar.
E sei das noites
Cálidas.

E sei de ledas fantasias.
E de harpejos murmurados
E das folias.

E sei da minha sede
A crestar-me os lábios. E da água
Bebida pelos dedos. E sei de furtivos beijos.
E da cascata dos cabelos
Negros. Já passados.

E sei do colear das ancas.
E das ânforas.

E sei daqueles olhos. Estouvados.
A arder em chamas.Vivas.

E sei das pálpebras descidas.
E dos enleios. E dos seios. E dos dedos.
E sei dos medos –“se faz tarde”!
E sei da lua a espreitar -
Linguareira.

E sei desta subterrânea corrente.
A soltar-se em lava. E sei deste cântico.
E desta dor funda. Derradeira.
E deste deslassar dos ecos
Pelas margens da ribeira.

E sei da música do tempo
E desta memória em flor. A teimar
Alvoroçada.

Manuel Veiga

Antologia de Autores Transmontanos e Durienses"
 Edição da Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro
Lisboa 2018





segunda-feira, agosto 13, 2018

POSTAL DE FÉRIAS...


No âmago da palavra
Uma tensão muda. Que se liberta
Flor e pétalas
De sol

Solstício. Ou talvez um ensaio de cores
Rebeldes que se esquivam
Na fluência da paisagem
E se inaugura

Timbre de harpa
Nas salivas. Cântico
De maduras uvas a desfazer-se
E peregrinas
Bocas…

Pagãos os dedos
Rubor os sulcos...

E os corpos!


Manuel Veiga



segunda-feira, agosto 06, 2018

DULCÍSSIMAS ÁGUAS


Serenos correm os rios e com eles
As tumultuosas águas se enternecem e se dobram
Na plácida hora. Nada neste estio
Se agita para além do sonho
E do sobressalto do sangue
Em louvor dos afluentes:
Sons que distantes
Celebram os percursos
Da memória
Incendiada…

Sou este percurso de sílabas
De um alfabeto inventado
Em que me digo nesta vertigem
E nos inaudíveis sons
Que respiro no alvoroço
Das margens…

E nesta torrente de serenas emoções
E dulcíssimas águas…


Manuel Veiga


quarta-feira, agosto 01, 2018

FLOR DE MEL...


Cálidos os afectos perdidos
E seu roteiro de ausência
Nada os prende e apenas
A alma os colhe.

E quando chegam como nuvem
Iluminada ao sol poente
São ténue carícia, breve
Agitação da brisa

A esvoaçar. Ferida que se abre
E mede a nostálgica alegria
De ser e não ser. Ardor
Que desmaia e flor de mel.


Manuel Veiga

CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...