domingo, setembro 30, 2018

SOLO DE JAZZ ...


Cada onda um corpo aberto
Em combustão mordente. E o céu
A derramar-se em azul invertebrado.

E uma litania benigna
A tomar conta
Dos sentidos.

De súbito, um sopro!...
E a beleza firme de uns seios.
Desatados.

Tange o ar nos dedos
Solo de jazz…


Manuel Veiga

sábado, setembro 29, 2018

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 7


Teimava, pois, Manuel Maria na sua teima de saber como se escreve um romance, acorrentado às teclas da sua sujeição, como um condenado se acorrenta às galés, quando se dá conta que antes da narrativa (que se deseja literária) e dos enredos e linhas com que ela se coze e de todos os seus meandros e atalhos e destinos, num tempo anterior a todos os desígnios da escrita e da mão invisível, que lhe molda o barro e talha os movimentos e os tempos, haverá que percorrer outras dores e labores e responder à questão de saber-se como, num discurso que se quer literário, se constrói uma personagem, pois que, sem o suor e sangue e as vísceras das personagens, a narrativa não será mais que pauta sem música, palco deserto, pura forma, Medusa sem cabeça, ou serpente a morder a sua própria cauda, condenada a si própria se dizer, num vazio recorrente.

Haverá, pois, - assim falava Manuel Maria para os seus botões – haverá que saber erguer a galeria de personagens no corpo luminoso da escrita, está certo, mas haverá, sobretudo, que contaminar a narrativa com o húmus da vida vivida, seja ela drama ou tragédia e, assim, a(s) “estória(s)” que aqui hão-de desfilar e os heróis e os vilões, entes singulares, criados à revelia de si próprios, mais do que um jogo ou dança de títeres, haverá que fazer com se ergam testemunho e reflexo da História e a “narrativa” alcançará então, se os deuses lhe concederem essa graça, a glória de se dizer Literatura.

No mais íntimo de si, Manuel Maria ansiava, portanto,  que a servidão a que se amarrara e as palavras que, em tormento, buscava, em si mesmas, inertes e de que, em verdade, mais que sujeito, era apenas médium, se pudessem organizar sedutoras, mas, para além do prazer da leitura, se constituíssem também, as palavras, alegoria e fala de um tempo-outro, para além do tempo literário, recriação um tempo mais amplo e profundo, de tal forma que a narrativa, que se quer literária, bem se sabe, pudesse, sobretudo, dar testemunho do seu tempo social e político e dos liames e veredas com o Futuro se tece.

Assim, em seu diálogo íntimo, ganhava cada vez mais força perante Manuel Maria, a volúpia do novo desafio literário, em vez do confortável dolce fare niente, na administração do atelier de arquitectura, cujas responsabilidades passara para o filho.

É certo que, nesta renovada pulsão pela escrita, se avolumava Flávia e seu sopro de irrealidade, a arrebatar o sangue e a erguer-se protagonista, num desmando de story board, como a sua mal disfarçada competição imaginária com Maria Adelaide, heroína de outros tempos e outras estórias, que para aqui não são chamadas, lhe conferisse legitimidade para fazer valer sua vontade e suas fantasias, ao arrepio do desígnio da escrita, que Manuel Maria desejava linear, segundo os cânones e as melhores práticas de composição literária.

Não, desta vez, não daria rédea solta às personagens, permitindo-lhes seguirem seu capricho, numa escrita sem sujeito, narrativa prisioneira de si própria, como Maria Adelaide, licenciada em Línguas e Literatura Moderna, diria se Maria Adelaide fora e não folha ardida de outros passos, a fazer que anda mas não anda, escrita circular, portanto, qual cavalo amestrado em picadeiro.

Não, desta vez, Manuel Maria há-de assumir, por completo, as dores da escrita e os seus dedos serão então os fios com que se tecem as personagens, como se um jogo de marionetas se trate e. então, sujeito e instrumento da escrita, será demiurgo, que na sombra desenha e manipula o fluxo dos acontecimentos e o destino das palavras que o tomam e o moldam por dentro.

Não, desta vez, Manuel Maria assumir-se-á integralmente como autor e cúmplice das personagens e dos tempos e lugares da escrita, encenando-se a si próprio para melhor se dizer, não em seus traços originais, ou no percurso de sua vida pessoal, que esses, pela sua banalidade, pouco terão a dizer, mas como corpo transfigurado (quase se diria místico) em que se projectam as dores e as esperanças de um tempo vivido e que lhe marcaram o carácter e de que a narrativa, que se quer literária, já se sabe, se fará eco.

Resguarda-se, por isso, Flávia e seu encanto de flor selvagem, pois que, no frémito criador da escrita e no fascínio que exerce sobre o autor, manifestamente, se prevê que, a seu tempo, se erga como nuclear nas atribulações da escrita e nos entre-cruzados fios da narrativa. Mas, por enquanto, não. Não antecipemos seus mistérios, nem o peso de seus dramas e deixemos que, por agora, por aí flua, em sua inocência perversa, como libélula em desafio da chama, sem queimar as asas.

Outras urgências são prenhes e outras personagens estão aptas a desatar os fios com que a narrativa se tece e acontece.

Manuel Veiga  


quarta-feira, setembro 26, 2018

A MORDER AS CINZAS ...


No lastro das coisas ardidas
Uma flor rubra no mar
De meus enganos.

E mergulho – nas mãos
Uma estátua
De sal…

E nessa metamorfose líquida
A lucidez dos sentidos
Palmo a palmo.

E a decomposição
Dos espelhos …

E a babugem das pétalas
A morder as cinzas …


Manuel Veiga


domingo, setembro 23, 2018

PARA MEUS AMIGOS/AS - Tentando Um Soneto...


Sou assim hoje em festa vestido para vós
Na alegria de ler-vos de quando em vez …
Como se viessem todas juntas de viés
As palavras, em que partilhamos nossa voz…

Não cuido de jardins, mas amo as flores!
Cada uma em seu perfume diverso
Como letras batidas de um qualquer verso
Que, todas juntas, me cobrem de favores…

E do poema construído em cada sílaba
Da amizade fugaz (sei lá se p´ra sempre)
Fique a harmonia e a emoção bem quente…

E em cada gesto de beleza murmurada
Desse “bouquet” de amizade, em suma
Colha eu poemas e rosas. E pétalas uma a uma...

Lisboa 2008  – Poema Reeditado


 Manuel Veiga




domingo, setembro 16, 2018

SEM METAFÍSICA(S) ...


Mudas as esferas em seu percurso
De gelo. Apenas o rasto de luz efémera
E trajectórias interditas
Sobre o eixo do Acaso.

Nada de novo. Apenas a Eternidade
Fria. E as desconcertantes rotas
A dissolver colapsos
E ancestrais ritos
E pavores antigos.

E a incendiar Templos.
E a povoar Bibliotecas.

Sábios são os homens sem metafísicas.
Que se cumprem no silêncio dos desertos.
Sem cartografias.
Nem cálculos.

E atravessam as tempestades
Dos tempos.

Pagãos e puros.


Manuel Veiga



quinta-feira, setembro 13, 2018

SEM GRAMÁTICA....


Tomba a palavra como gota
Na inocência da escrita.
E alastra liquefeita
Água ainda…

Agora feita narrativa
A dizer-se plana e alagar-se
Sílaba a sílaba

E a desdobrar-se
Métrica. E sem gramática
A desenhar-se
Gráfica.

E a erguer-se
Fecunda. E a diluir-se
Golpe de asa.

No azul desmedido
Do poema…

Manuel Veiga


terça-feira, setembro 11, 2018

11 de Setembro - Golpe Militar no Chile - 45 Anos Depois




Santiago, Chile - As feridas deixadas pelo golpe militar no Chile, que completa 45 anos nesta terça-feira (11/9), continuam abertas. As Forças Armadas resistem a abrir seus arquivos, e o poder Económico e político dos defensores da ditadura seguem presentes, enquanto as vítimas pedem justiça.

Fonte - "Correio Brasiliense"

POEMA-PAISAGEM...


 Amaciam os dedos a carícia
Cativos os olhos. Horizonte
As colinas a escorrer
Declives.

E a desbravar paisagens…

E sedes. Frémito
As planícies
E o tumulto
Fervilhante
Das águas.

Emanação das fontes…


Manuel Veiga


quarta-feira, setembro 05, 2018

"NÃO HÁ FESTA COMO ESTA" - A Festa do Avante


A Festa do Avante, promovida pelo jornal do Partido Comunista Português, celebra-se, anualmente, na Quinta da Atalaia, no Seixal, com a participação de milhares e milhares de pessoas, de todas as idades e condições sociais, vindas de todos os cantos do país (e muitas do estrangeiro) para três dias de encontro e confraternização (7, 8 e 9 de Setembro).

“Não há festa como esta” dizem, com razão, os seus promotores e militantes. E não apenas pelos seus eventos culturais (com o melhor que se produz no domínio da música – para todos os gostos - das artes plásticas ou da literatura), ou por esse mosaico de gostos e paladares que são a culinária e os vinhos nacionais, ou pela multifacetada expressão do artesanato regional, ou pelos exaltantes momentos de participação política.

Claro que haverá sempre diversos olhares sobre a Festa. É natural que haja. Apenas a engrandecem aqueles que por preconceito, ou por função e missão, dela desdenham. Mas para quem, com olhar límpido, quiser ver não poderá ignorar o imenso sortilégio que a Festa do Avante exerce sobre quem a frequenta, independentemente, das opiniões políticas.

E é caso para nos interrogarmos sobre as razões de semelhante sucesso, numa sociedade eivada de um anticomunismo larvar, permanentemente instigado pelos aparelhos de dominação ideológica – na comunicação social, nos modelos de sociais, nos padrões de consumo, na política, na profusão das imagens que encharcam o nosso quotidiano.

Por que razão o “efeito” Festa do Avante excede o horizonte da mera militância política e seduz tanta gente? Digam-me. Tenho, porém, claro que a Festa do Avante é antítese perfeita da chamada “sociedade do espectáculo”, em que andamos mergulhados. Dai as razões do seu sucesso...

Deixem que tente explicar-me. Como sustenta Guy Debord, as modernas condições de produção apresentam-se como uma imensa acumulação de espectáculos, onde “tudo o que até então era directamente vivido se afastou numa representação”.

Assim, o espectáculo será, no dizer deste autor, “ao mesmo tempo o resultado e o projecto do modo de produção existente”. Sob todas as suas formas particulares - informação ou propaganda, publicidade ou consumo, ou divertimentos - o espectáculo constitui o modelo da vida socialmente dominante, numa “afirmação omnipresente da escolha já feita na produção e no consumo”.

Forma e conteúdo do espectáculo são, assim, a justificação total das condições e dos fins do sistema de produção existente. Numa frase lapidar, “o espectáculo será o discurso ininterrupto que a ordem dominante faz sobre si própria, ou seja, o seu monólogo elogioso” .

O processo de alienação será permanente: quanto mais o espectador contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes, menos ele compreende a sua própria existência e o seu próprio desejo. “A exterioridade do espectáculo em relação ao homem concreto revela-se nisto - os seus próprios gestos já não são seus, mas de um outro que lhos apresenta”.

Pois bem, a Festa do Avante escapa a tal lógica. A Festa do Avante pertence literalmente dos seus construtores. É trabalho voluntário que ergue os seus pilares. Trabalho livre, sem salário. Com o tempo e a forma que cada um escolha, motivado apenas pelo desejo de “fazer” a festa. Trabalho desalienado, portanto. Que subverte do sistema de produção dominante, pois é demonstração prática (precária que seja) de que outro modo de produção é possível.

Por outro lado, a Festa do Avante pode ser usufruída sem mediação, nem filtros, por todos aqueles que nela participem. O espectáculo, (que Festa do Avante também é) e as imagens que projecta na sociedade portuguesa e, em especial, em que têm o privilégio de nela participar e compreender, correspondem à vivência real dos homens concretos, como “discurso” alternativo à ordem social alienante.

Por momentos, nos três dias da festa, será a libertação do Desejo e do Sonho, (“de focinho pontiagudo”), sondando os dias do Futuro. E a vida real de milhares pessoas, alargando o horizonte da consciência social de cada um e o caudal da consciência colectiva de que é possível uma vida melhor.

Gosto, sim, da Festa do Avante. Muito. Como paradigma de uma sociedade diferente. Mais justa, solidária e fraterna. Como lampejo da Utopia, que as mãos, a luta e o suor dos homens, libertos das contingências de modo de produção dominante, um dia poderão erguer...

Manuel Veiga

“NOTÍCIAS DE BABILÓNIA e Outras Metáforas”
Edição MODOCROMIA – Abril 2015





domingo, setembro 02, 2018

A MATURAR VERBENAS...


Esquivas as palavras 
O tempo fugidio
E os olhos
Mágoas.

Intensos os ventos
E as águas. E o fervor
Dos enleios…

E a vibração dos gestos
A maturar verbenas
E a perseguir rimas
E métricas…

E a tecer caligrafias!


Manuel Veiga


Para Um Novo Teorema da Fisica Moderna

  dizem expeditos cientistas que o leve bater das asas de uma borboleta à distância de milhares de quilómetros pode causar uma catás...