quarta-feira, fevereiro 27, 2019

Quem Sob Minha Árvore...


Quem sob minha árvore
Se abriga

Minha alma requer.

E nessa entrega
A acolhedora sombra
Se ilumina

E se diz água
E terra.

Manuel Veiga

domingo, fevereiro 24, 2019

MEUS PORTAIS ABERTOS...


Hei-de plantar uma árvore
Em meu Jardim de Prodígios.

E cuidá-la com o melhor
De meus afectos. E até com o sangue
De meus pulsos.

Para que a árvore cresça.
E floresça. Em apetecíveis frutos.

Abrirei então meus
Portais abertos
Ao movimento
Do Mundo…

E rogarei que os ventos lavem
Ofensas, enganos
Ou perfídias.

E afastem
Imposturas.


Manuel Veiga

quinta-feira, fevereiro 21, 2019

POSTAL DE ATENAS ...


Generosos são os deuses que tecem filigranas
No corpo da noite.

Sempre ali estiveram as ilhas.
Meus olhos é que tardaram
Nessa bebedeira do sonho...

O voo é esta reclinação do tempo.
Dispo-me de mim. E mergulho no magma.
Como outrora a cobiça dos impérios
Criava tempestades...

Pepitas luminosas no colar de Athena.
As ilhas sempre ali foram. Homens e impérios
As profanaram no impudor da guerra.

E no delírio das vitórias.

Gargantas bárbaras por onde escorre vinho
Generoso. Subtil veneno que entorpece
Como lento remoer da insubmissa espera...

Sou herdeiro desta miragem. Da infinita doçura
Que sara os golpes. E da mão que vinga.
E do apolíneo gesto que rasga a pedra.

E do bronze da história que clama.
E que reclama. E dos hercúleos pilares
Que sustêm a Europa. Néscia.
.....................................................

Regresso agora. Ítaca reinventada.
Pátria-minha. Ferida aberta...


Manuel Veiga



segunda-feira, fevereiro 18, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 10


Aquele tempo, porém, era ainda tempo de Cantinas Velhas e de borbulhas a formigar revoluções e tigres de papel e correrias à frente da polícia em “Primeiros de Maio Vermelhos”, com o Rossio a abarrotar de revolta e a GNR a espadeirar sem olhar a quem, operários, estudantes, passeantes e turistas, velhos e novos, mulheres e crianças, cabeças a sangrar, quedas e tombos na correria, ferraduras dos cavalos empinados a relincharem e a chisparem na calçada, gritos e aflições, grupos organizados que, em carrossel, se revezavam e apareciam e desapareciam, inesperadamente, por detrás dos cavalos, gritando, amálgama de insultos e palavras de ordem, alguns manifestantes, mais decididos e bem organizados, a esquivarem-se dos bastões e a segurarem as bestas pela brida e a passarem-lhe pó de pimenta pelas narinas dilatadas e o escoicear frenético e equilíbrio instável dos guardas sobre as selas e Manuel Maria acossado, a sangrar e a correr pela Rua do Carmo acima, quase filado pelos cascos do cavalo e pelo bastão do façanhudo guarda, erguido, lá bem alto, na iminência de descer novamente sobre seu frágil e dorido costado. E, naquele vendaval de pancadaria, por entre as dezenas de manifestantes, que, em desespero, buscavam protecção na fuga e nas reentrâncias dos prédios, como uma bênção caída dos céus, sem que nada a fizesse prever, Manuel Maria é puxado para dentro da vedação de um prédio aparentemente em obras, prosseguindo o polícia e o cavalo, com o Manuel Maria a salvo, o afã de perseguição dos manifestantes mais à mão de semear, como soe dizer-se, bem se sabendo que, como em tudo na vida, tantas vezes, o mal de alguns é alívio de outros.

De tal sorte que, também no caso, embora apenas precariamente separado da agitação e dos perigos do exterior, por um frágil tabique, a verdade é que Manuel Maria se sentiu em segurança, com o breve ruído seco da porta a ser trancada e o sorriso irónico do homem, alto e louro, não mais de quarenta anos, uma bela barbicha também loura a enquadrar-lhe o rosto sedutor, impecavelmente vestido, último grito da moda, como se fosse modelo saído de uma vitrina, onde apenas as mãos desmesuradas e os dedos grossos destoavam da elegância do porte, imperturbável e sorridente, como se as dantescas cenas que lá fora, literalmente, a um palmo do nariz, se passavam e de que a cabeça partida e o rosto ensanguentado do jovem eram testemunho dramático, fossem para ele, o imperturbável salvador de Manuel Maria, cenas de teatro de rua ou quadros de uma peça dramática, cuja sequência detinha os fios.

E, então, a voz do homem, alargando o sorriso acolhedor “Guerra é guerra! ... Tiveste um belo baptismo de fogo, não haja dúvida!... Vai, corre! Lavas o rosto na torneira que encontras lá ao fundo, saltas o muro, corres pelo logradouro, segues pela cave do prédio em frente e estás a salvo”…

Manuel Maria, ainda a titubear de surpresa e emoção, agradeceu e quis conhecer o nome de seu salvador. “Que nada! vai, foge! – exclama  com firmeza, o desconhecido – conhecerás o meu nome um dia, se tiver de ser…”. E Manuel Maria jurou para os seus botões que jamais iria esquecer aquele rosto e o tamanho daquelas mãos, que apenas outras assim vira em tempos esvoaçantes da infância, numa aldeia longínqua das Terras do Demo, onde pela primeira vez vira a luz do dia, filho incógnito de amores espúrios de criada de servir, em vetusta Casa Senhorial.

Rapidamente, porém, Manuel Maria varreu lembranças antigas (que a hora era de outras dores) e se escapuliu, através do logradoiro dos prédios, seguindo as instruções de seu salvador, indo desembocar a meio da Rua do Ouro. Afogueado pelas emoções e pelas correrias, Manuel Maria disfarçou como pode os hematomas e os resquícios de sangue nos cabelos, enfiando uma larga boina basca e, afoito, caminhou, em passada larga, rumo ao Rossio, apto a prosseguir a luta e a candidatar-se a umas novas bordoadas. O ambiente, porém, mudara, em poucos minutos. Tal como se desencadearam, sem nada o fazer prever, qual cenário em ópera bufa que, inesperadamente, se altera ou, dito com mais propriedade, como se, após forte trovoada, a atmosfera se abrisse em bonança, ainda porém sob o efeito da tensão eléctrica, assim também a agitação e os gritos e as correrias e os polícias e os cavalos e as imprecações e as palavras de ordem e os desmandos e as chanfalhadas e as costelas partidas e as cabeças abertas e os incautos e pacíficos transeuntes apanhados, sem dó nem piedade, na onda da bestealidade policial se haviam calado e a larga praça do Rossio, orgulho de lisboetas e encanto de turistas, retomava gradualmente a sua pachorrenta rotina, com caixeiros e lojistas abrindo novamente portas e vitrinas, um grupo ou outro a comentar os acontecimentos, prontamente desfeito pelos polícias de giro e os esparsos gritos das sirenes a riscar os ares e um pelotão da polícia de choque acantonado nas traseiras do Teatro D. Maria não vá o Diabo tecê-las e a onda levantar-se de novo e o os cavalos da Guarda Nacional Republicana recuados na Praça da Figueira e rasgão na cabeça do Manuel Maria a doer c´mo caraças, e a estação do Metro do Restauradores rumo à Residência de Estudantes e a remoer sozinho os acontecimentos da tarde, que não se alcançava pelas redondezas nenhum dos amigos que a brutalidade da carga policial havia separado e tal fora combinado que, em caso de dispersão, cada um regressaria por seus meios.

E assim também agora, por seus próprios meios, em tempo literário outro, já não tempo de borbulhas a formigar revoluções e 1º de Maios vermelhos e proibidos e manifestações reprimidas e cabeças partidas, que esse tempo é tempo passado e em todas as laudas da história pátria jurado tempo de fascismo nunca mais, mas neste tempo agora, tempo de cerejas e grávido de promessas e de revoluções ao vivo, tempo de sonhos e de quimeras e canções que alguma coisa há-de sobrar delas, das canções e das quimeras e dos sonhos e desse tempo e desse povo também, a tomar em suas mãos o seu destino e o novel arquitecto Manuel Maria a acreditar genuinamente numa Arquitectura para o Povo e, neste ínterim, a subir aos Paços do Concelho, determinado a colocar os seus conhecimentos urbanísticos ao serviço da Revolução e oferecer a sua colaboração a José Augusto Esquerdino, recém-eleito em amplo plenário da população, Presidente da Comissão Administrativa da Câmara Municipal.

Manuel Veiga





domingo, fevereiro 17, 2019

TÃO POR DENTRO ...


Hiperbólica curva na voz
Do cello

Luz de nevoeiro
A acender
A noite

E o Tejo a deslassar-se
Ao longe

E a música - tão ávida!...
A lamber as cordas
E a diluir-se

Tão por dentro!...


Manuel Veiga



sexta-feira, fevereiro 15, 2019

DA IMPORTÂNCIA DO NOME ...


A Revolução liberal de 1789, como se sabe, aboliu os privilégios pessoais. E, na sua pulsão libertadora, fundou uma nova ordem social e proclamou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão para a qual “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser baseadas senão na utilidade comum.”


Em consequência, a partir daí, o direito ao nome, no conjunto dos direitos de cidadania, não será mais objecto de outorga, isto é, imposição ou dádiva, mas antes considerado como direito natural, inerente a todos os indivíduos.

Sinal imprescindível da personalidade, o nome pessoal extravasa, porém, a palavra que o enuncia. Representa, sobretudo, aquilo que somos; ou seja, o nome é o símbolo que reveste o seu titular e unifica o indivíduo: estrutura corpórea, mas também a dimensão psíquica e conjunto de valores éticos, políticos, intelectuais e morais, que definem o carácter.

Por outras palavras, o nome constitui o sinal mediante a qual a sociedade nos interpela, a evocação pelo qual somos reconhecidos durante toda a vida e, de alguma forma, nos propaga no tempo, pois que, como símbolo da identificação e da individuação pessoal, nos vincula à nossa vivência e ao mérito (ou demérito) da nossa participação colectiva.

Na sua dimensão simbólica, o nome pessoal é também expressão de uma ideologia: de classe, de grupo ou de uma família. Os nomes pessoais falam para além das pessoas que designam. Revelam mais do que afirmam. Desde logo porque, hoje em dia, para as grandes massas aculturadas pela ideologia dominante são um fenómeno de moda. (“Maria Albertina porque foste nessa/ de chamar Vanessa/ à tua menina?”).

Noutros casos, sobretudo, nas classes dominantes, o nome pessoal é a projecção social de um futuro que proclama, por isso, no nome de baptismo se inscrevem as referências familiares dos antepassados mais distintos, num processo que (dir-se-ia) da mesma natureza com que os primitivos usurpavam o nome dos animais ou fenómenos naturais que os seduziam. Em boa medida, é verdadeira a expressão “diz-me como te chamas, dir-te-ei quem desejam que sejas...”

Este fenómeno é replicado nos processos democráticos ou revolucionários, em que os nomes de líderes e de vultos destacados são assumidos pelas massas e os inscrevem no registo dominante dos nomes próprios em determinado momento histórico. Por exemplo, na geração do post 25 de Abril, são frequentes os nomes de “Vasco” e de “Catarina”, como homenagem a dois vultos maiores da revolução – Vasco Gonçalves e Catarina Eufémia.

Acontece que, na sua expressão simbólica, os nomes podem ser manipulados como instrumento de luta ideológica. De facto, como se referiu, o nome é direito natural de que todos homens, sem distinção, são sujeitos. Quer dizer, portanto, que o nome igualiza todos os homens, colocando-os, ao menos no plano formal (deixando por agora de fora as desigualdades derivadas da situação concreta de cada um no sistema de produção), em lugar idêntico perante o direito e a sociedade.

Mas se o direito igualiza, a ideologia distingue.

Vejamos. Os nomes produzem um efeito especular, unificador das características pessoais de cada um, que no seu conjunto definem a sua individualidade própria, como ficou dito.

É mediante esse efeito que os indivíduos em concreto se reconhecem e a sociedade os interpela como homens e cidadãos. Eliminar ou elidir alguma das características individuais expressas simbolicamente no nome, será diminuir a personalidade do indivíduo. Ignorar deliberadamente, truncar, substituir, abjurar, diminuir o nome de uma pessoa é, de alguma forma, decretar a sua “morte civil”...
 (…)

Manuel Veiga

NOTÍCIAS DE BABILÓNIA e Outras Metáforas
Modocromia – Lisboa 2015



terça-feira, fevereiro 12, 2019

MEU NOME, MINHA GUARIDA


Meu nome é minha guarida
E o lar de meus afectos – e de alguns escolhos!
E o lugar donde espreito o Mundo.

E é espelho- mágico
Onde me revejo.

Por vezes, poderá mesmo ser capricho
De alagados mostos. Ou até flibusteiro.
Ou palhaço.

Meu nome é quase tudo. E no mesmo lance
Meu nome é nada.

Porém - garantido está! - jamais
Será passadiço. Leilão. Ou servo.
E muito menos
Faz-de-Conta.

Ou jogo! ...


Manuel Veiga


segunda-feira, fevereiro 11, 2019

Uma Pequena Homenagem e Uma (In)desculpável Vaidade


Conceição Lima é produtora e apresentadora do programa de divulgação de Poesia da Radio Vizela – “Uma Hora de Poesia”. O programa tem, segundo julgo, cerca de meia dúzia de anos e, apesar de se tratar de uma Rádio Local, tem verdadeira expressão nacional, tantos são os poetas e qualidade da poesia apresentada no programa.

Tempos atrás, Conceição Lima entendeu fazer um programa à volta da minha poesia,  com uma pequena entrevista, análise e leitura de poemas, pela própria e por um grupo de amigos, seus habituais colaboradores que, com sua voz e o seu enorme talento dão expressão aos poemas, no decurso de cada programa.

Entretanto, aconteceu a publicação do romance “Do Amor e da Guerra”. Conceição Lima apaixonou-se pelo livro e anunciou-me, peremptória, que apesar de sua motivação ser apenas falar de poesia e não de literatura de ficção, queria muito, depois de reler, poder falar sobre “Do Amor e Da Guerra”.

Foi assim que surgiu a apresentação do livro na Associação Macaréu, na cidade do Porto, no passado 15 de Dezembro. Conceição Lima cultiva a boa prática de se jogar sem rede naquilo que gosta de fazer, seja na apresentação do seu programa, seja na apresentação de livros. Quer dizer, prepara meticulosamente as suas apresentações, mas nega-se a falar com suporte escrito. Fiquei a saber quando lhe falei em deixar-me cópia das notas e apontamentos sobre as quais assentava a sua brilhante apresentação. Que não havia nada escrito, mas que escreveria umas anotações sobre Maria Adelaide (a heroína), que momentos antes havia sido objecto de ligeira controvérsia entre nós os dois.

Aqui fica, pois, em traços bem vincados, embora breve, o perfil de Maria Adelaide, personagem nuclear “Do Amor e Da Guerra”, mediado pelo olhar arguto de Conceição Lima, a quem agradeço com o maior apreço pelo seu trabalho inestimável de divulgação literária, em nome de uma amizade que, sendo recente, se deseja perseverante e sólida.


“Ao leitor não importa a verdade dos factos. Interessa, sim, a “verdade” da narrativa, a capacidade que o autor (“se autor houvesse…”) nos oferece de nos confrontarmos com “ alguém” de corpo e alma, permitindo que consiga emergir das suas palavras, alguém de corpo inteiro…

Assim foi com Maria Adelaide!

Maria Adelaide é uma das muitas personagens que tecem esta narrativa…É ELA, porém, o “ veio” que a alimenta. Ela é a seiva que percorre o enredo. Imperial, irreverente, excessiva, de olhar felino, ei-la que irrompe, que salta para o palco, que exige holofotes com a luz bem direcionada…

Ela exigiu e o narrador deu-lhe luz própria, fê-la “estrela”!

Maria Adelaide é, no fundo, “a pedra angular” de toda a diegese. Sim, pedra…Rocha! Cristal em bruto…Até ao fim, vibrará, retinirá e o seu eco perdurará…

Será “a incisão e o ariete” desta tatuagem!..."




sexta-feira, fevereiro 08, 2019

MÚSICA E FLOR ...


Flor é uma flor, é sempre flor…
Música é música - é outra música…
Música e flor em MI maior
Perfume de dor, na dor de meu amor...

Sopro de flor - aquela dor na minha dor
Perfume de música em Dó maior.
Música e flor em redor - na dor da flor.
Música e dor de meu amor.

Sopro de música - flor de amor!
Perfume de flor em LA menor
Na dor da flor. Música e flor
Canto de musa a meu favor.

A mesma música – a mesma flor…
Timbre de flor em SOL maior
Música e flor na dor da minha dor
Em vão, a flor na música da dor!...

Guardo música e flor na dor maior.
A meu favor – canto, musa e flor.
Perfume e dor de amor maior
No canto e na dor de um trovador ...


Manuel Veiga



quinta-feira, fevereiro 07, 2019

QUE SE SOLTEM OS VENTOS...


Em oceano de sargaços solto
Meus presságios. E inverto o sentido
De meus passos.

Meu relógio (de badalo)
Marca apenas as horas faustas
Que, outras, não quero.

Nem meu nome
É coito de insídias, nem pasto
De perfídias. Nem meu corpo é cacilheiro.

Porém, navio de corsário…

Parto. E passo
De alto – que nada renego.
Nem dou trocado. Nem vendo.

Que se soltem pois os ventos. Que ventos
Não temo. Nem as Fúrias
Que os dizem.

Sei que passo – e parto aliviado.
Pois bem sei de meus passos
Que, sem metáforas, cultivo.


Manuel Veiga

terça-feira, fevereiro 05, 2019

"A VELOCIDADE DA LUZ" - Manuel Gusmão


“Há uma rotação do teu corpo –
Andas pela casa: és um leve rumor sob o silêncio
Um rumor que alumia a sombra silenciosa;
Na sala, o homem quase surdo quase cego
Ouve-te, julga reconhecer-te: vens aí.
Estás aqui. O intervalo de tempo já começou:
Há uma rotação no teu corpo
Que me exclui do mundo e
Entretanto é feita para mim; atinge-me
À velocidade da luz.
E eu o homem quase surdo quase cego
Sou tomado pelo vento do fogo que me consome
Até ser apenas a última brasa: pequenas ravinas de luz
O incêndio restante sob a exausta crosta da terra
Estavas, estiveste ali.
O tempo recomeça.
Apareces e desapareces.
Como a luz do farol disparando no céu sobre as casas
Ou como o anúncio luminoso do prédio em frente
Que varre intermitente a obscuridade do quarto no filme.
Quando voltará?
É como se soubesses
Que voltará, sim, e que não, não poderá voltar.
Quando, e se voltar, serei eu talvez
Quem já lá não está. Quando
É quando?
Quanto tempo ainda poderá o mundo voltar
À possibilidade dessa forma?

Manuel Gusmão
In: Teatros do Tempo, Editorial Caminho, 2001


sábado, fevereiro 02, 2019

METAMORFOSE(S)


Açucena aberta
A render-se em festa
E olhar-mágoa.

Sorriso e lágrima
A desfazer em água

E o poeta. Espera pura
A arder na palavra nua
E a beber o fel e o mel
Nessa a metamorfose
Líquida.

Já não lágrima. Apenas
Febre e dádiva.


Manuel Veiga

"PERFIL dos DIAS" 
Edição MODOCROMIA - No Prelo


sexta-feira, fevereiro 01, 2019

DESUMANA ESPERA.


Nada é começo na contabilidade das horas
Nem águas moles são destino de barcos
Nem a alienação dos passos
Devoção dos dias.

E, no entanto, administramos silêncios.
Cabisbaixos. E os dedos são compasso
De um círculo que se ferra
No pescoço dos náufragos
E asfixia o grito.

E devora por dentro em fervor negro
Como bolor em pão ázimo
De porta em porta
Negado...

Somos leilão de condenados.
E nem sequer o sabemos.
Que nem, ao menos, o preço nos distingue
Na volúpia do deve e do haver.

Libertos, talvez, pela palavra clandestina.
Ou na bruxuleante luz da candeia
A iluminar a gruta. E a inverter
A ilusão da Claridade.

Ou apenas na granítica esperança
Fogo e água profundos a soletrarem a sede
E a (des)humana espera.

Manuel Veiga

Orquestração de Hinos

  Polpa dos lábios. E a interdita palavra Freme… E se acolhe Em fervor mudo E sílaba-a-sílaba Se inaugura… Percurso De euf...