terça-feira, março 19, 2019

O MEU ESPÓLIO


O dia, em que um poeta for enterrar
Entregar-te-ei o espólio de meus sonhos.
Talvez recebas apenas
Minhas cãs em desalinho. Ou as cinzas pela antiga casa
E as maças emolduradas. E a sala de visitas 
Deserta e o silêncio dos passos. 
E o chocolate fervido e o vinho quente
A atapetar o palato
E as narinas.
Ou talvez a brusca debandada de meus olhos
Tordos acesos a riscar o ar e agora baços.
Ou o espúrio cio dos gomos.
Ou o calor íntimo das amoras
Mel silvestre a tingir as bocas
Ante o incêndio 
Das salivas.
E encontrarás, estou certo, um ramo de lírios
Desbotados, acabados de colher, e o regaço
Da Mãe e a criança solitária e o fio de água
De meus olhos agora secos.
Talvez a bênção do dia e missa dos sentidos
Encontres nessa caixa de abandonos.
Ou aquele poema amarrotado
De que me faço distância e eco
A martelar nos ouvidos
Como remorso
Ou destino:
Que mais nada tenho! 
Manuel Veiga
(poema editado)


6 comentários:

Tais Luso de Carvalho disse...

Nossa...! Esse poema 'toca' bastante, tão triste e tão real. Assim o senti. Certos fatos na vida nos comovem, outros nos alegram ou nos maltratam.
Porém, certas coisas que brotam com muita sinceridade e certa dor, lá do fundo de nossa alma, essas comovem.
Assim interpretei seu poema, posso até tê-lo interpretado mal, mas foi à minha primeira sensação. Tentei vê-lo diferente em mais outra leitura, mas em nada modificou.
Muitas vezes interpretamos coisas não com a razão, mas com a emoção. E as coisas que emocionam são bem mais belas. Seria como ver uma mãe rindo com o filho saudável ou chorando e agoniada junto ao filho doente.
Aplausos, poeta!
Beijo, uma ótima semana!

José Carlos Sant Anna disse...

Já dizia o outro o homem carece de poesia. As ideias carecem de poesia. E o espólio... É a consciência também... O poeta nos coloca em estado de suspensão diante diante de nós mesmos e de sua linguagem...
Um forte abraço, poeta!

Olinda Melo disse...


Olá, Manuel Veiga

Penso que o poeta não poderia deixar melhor legado, essa emoção de alma limpa com palavras que se nos entranham no coração.

E diria como Gilbert Bécaud, nesta canção de que gosto muito (Peço desculpas se não se adaptar ao que é dito acima):

Quand il est mort le poète
Tous ses amis pleuraient
Quand il est mort le poète
le monde entier pleurait
On enterra son étoile
Dans un grand champ de blé.
Et c'est pour ça que l'on trouve,
Dans ce grand champ, des bleuets.

Abraço

Olinda

Teresa Almeida disse...

O legado do poeta é uma pródiga sementeira que no húmus do silêncio gerrminará.

Teus poemas, Manuel Veiga, têm marca imperecível.

Beijo.

Beijo.

Jaime Portela disse...

Todos deixamos um legado qualquer, mais ou menos rico. Mas, neste excelente poema, o espólio é riquíssimo.
Parabéns, gostei imenso.
Caro Veiga, um bom fim de semana.
Abraço.

Agostinho disse...

O Poeta parte ao encontro. Sempre parte
pelo menos enquanto houver palavras,
por dizer. E, ao dizer, di-las por si
próprio, que os preparos primeiros carecem
de seu próprio preparo.

Excelente, MV, parabéns.
E abraço.

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