Que estranho mistério, ou coincidência, ou que
linhas invisíveis no acaso de suas vidas ligava, pois, aqueles dois homens,
Manuel Maria e José Augusto, tão diferentes e tão diversos, para além do acaso
do seu nascimento, ambos na mesma aldeia ignorada, algures em Terras do Demo, José Augusto, marcado
pela rebeldia e nascido uma boa meia dúzia de anos antes, filho primogénito de um
tal Zé Canhoto, que um dia, chegou aquele lugar, vindo, como as águas, de norte para sul, sabe-se lá donde, para
se fazer meeiro da Casa Grande, por decisão e favor de seu amo, Federico Amásio
Jacinto Silvestre Campelo do Rego, caldeado em forte carácter pelas agruras da vida o dito José Augusto, de ora em
diante também “Esquerdino”, pois que,
na piedosa cerimónia baptismal, que o ungiu, o anátema de “canhoto”, que seu pai
carregava, zé-ninguém que àquelas
paragens chegara sem ter onde cair morto, tal anátema, dizíamos, por desígnio
dos poderes terrenos e inspiração do Espírito Santo foi gloriosamente "transubstanciado" em sibilante “esquerdino”,
sem que, para tanto, houvesse necessidade de consulta ou diligência suplementar, pois
que esse era desígnio de Deus e vontade
dos homens e neófito exibia distintos e poderosos padrinhos, marcado pois, José
Augusto pelas circunstâncias de, não apenas de seu nascimento, mas também de baptismo
e caldeado nas agruras e na
heroicidade de uma vida de luta contra o poder fascista e, neste tempo
literário, em que a narrativa decorre, Presidente da Comissão Administrativa de
um grande Município da Área Metropolitana de Lisboa, por vontade da população
do Concelho o elegeu, por braço no ar, em amplos e democráticos plenários da
população, que desígnios da vida, portanto, ou que capricho da sorte lançariam,
pois, aqueles dois homens tão diversos, José Augusto Esquerdino e Manuel Maria,
este, porém, neste tempo narrado, ainda sem apelidos conhecidos, nascido,
contudo, no mesmíssimo lugar distante de Terras
do Demo, e criado e educado, numa instituição religiosa, que, para acolher
jovens, em contramão com a vida, tais instituições são criadas, protegido por
um jovem Padre Operário, que lhe domou as angústias metafísicas e o incitou nos
seus juvenis ardores políticos e intelectuais e, neste tempo da narrativa, no
auge da Revolução de Abril, empenhado em dar corpo ou expressão prática a uma
Arquitectura para o Povo e, para isso, ali estava, naquele amplo salão, decorado,
em toda a volta, por retractos e símbolos republicanos, raízes fundas que nem o
fascismo conseguiu arrancar, salão nobre de reuniões solenes e agora também espaço
de diversas utilidades e local de permanentes reuniões com múltiplas comissões
de trabalhadores, comissões de moradores e outros organismos populares de base,
que por todo o concelho germinavam e conquistavam o direito à palavra e ali vinham, aos Paços do Concelho, apresentar
seus problemas e preocupações e a exigir dos seus eleitos apoio, meios e
instrumentos para os resolverem, pois que não se concebe revolução, que se
queira democrática, se os reais interesses e anseios do Povo não estiverem na vanguarda
da acção política.
Tão diversos, portanto, aqueles dois homens, com
vidas tão distantes e tão distintas e, no entanto, haveriam de unir-se nos
mesmos ideais, forjando fecundos laços, em que a amizade seria não mais que
latência, qual leito de rio, percorrido por frondosas águas e se alarga aos
percursos da corrente, sem do leito se procurar saber, assim, também, a amizade
daqueles dois homens que, estando presente, a envolver suas vidas, dela não se
davam conta, tão tomados estavam, um e outro, pelo desígnio maior de dar corpo
e gesta aos nobres ideais da Revolução de Abril, a que dedicavam toda energia,
não havendo lugar a outras vivências, cálidas que fossem, a não ser a generosa
entrega à causa da emancipação do Povo do Concelho, estimulando e apoiando
participação das populações resolução dos seus problemas concretos e na
afirmação dos seus direitos e, nesse desígnio revolucionário “tirar o fascismo da cabeça das pessoas”,
bem sabendo, um e outro, o proletário José
Augusto Esquerdino e o intelectual Manuel
Maria, quão limitadas as suas forças e frágeis as suas capacidades, perante a
magnitude da tarefa, se não fossem escoradas na vontade colectiva, “aprendendo, aprendendo sempre” , como
se a voz do poeta, fosse palavra de ordem
(…)
“Pra
aqueles cujo tempo chegou
Nunca é
tarde de mais!
Aprende o
abc, não chega, mas
Aprende-o!
E não te
enfades!
Começa!
Tens de saber tudo!
Tens de
tomar a chefia!”
É pois exigência de
entendimento e da ordem das coisas narradas que se persigam os fios desatados
para que se possam desvendar finalmente os laços e veios e, para além deles e
do acaso de suas vidas, podem determinar seu carácter e unir homens tão
diversos, em diversas pontas do tempo, como sejam José Augusto Esquerdino e Manuel
Maria e que fatais razões do destino ou determinação da escrita poderão levar a
que estes dois homens vão entroncar, como em águas matriciais, naquele local
ignorado, algures em Terras do Demo.
E, nesta servidão da escrita,
como escravo agarrado ao remo, e barco a rodopiar, entregue à força das
correntes, sem contudo perder o rumo, teimando agora o escrevente em galgar o espaço e tempo, em larga passada, bem maior
que a perna, extrair da oculta vibração das coisas e do (dis)curso dos
acontecimentos matriciais, a matéria ígnea e as diversas linhas com que cozem
ou se descosem os personagens.
Regressemos, pois a Terras do Demo, dir-se-ia em viagem “de sul para norte” ou, como penitência
da escrita, em busca de sentido que a redima.