quinta-feira, agosto 01, 2019

TRÊS POETAS PORTUGUESES DA ACTUALIDADE


1 - Os Rituais à Mesa
(Para o Fernando Assis Pacheco, em dia aziago)

“À mesa
Morre-se ritualmente
A salada
O cozido
O puré
As maneiras
E o pavão que no jardim passeia o esplendor duma fuga de Bach
O pó-de-arroz seguindo o rastro das sopeiras

É em ti que me venço e justifico
Nos labirintos de néon  no fumo viúvo da cozinha
No azedo do ranço  do grão de bico
Nos corredores do guisado
No ocre da saliva e do caldo entornado

Os nervos derretem os artelhos da manhã o tempo aquece
E o meu amor por ti tropeça e arrefece

À mesa
Contraem-se os instintos do dia
A digestão é grave
O suicídio breve
E o beijo que te dou arde em melancolia

É sentados na sala que morremos
Prisioneiros num casulo de raiva e solidão
Suspensos da mais alta-fidelidade já sabemos
Que fomos sepultados num buraco sem chão

É no sofá onde os ossos cochilam
Que os nossos guarda-costas
Nos fuzilam

DOMINGOS LOBO
In “Para Guardar o Fogo – Epitáfios” – Pág. 77
Edição “Página a Página”
Lisboa 2012

2 – Ao Acordar

“E não é que esqueça ou não me pesem
Os erros. Mas de que vale quando acordo
Estar em desacordo? Ainda guardo
A luz de um pretérito imperfeito e sinto
Abertas as veias ao que vier injectar-me
Mágoa no sangue e sei decerto
O lado secreto do coração
Lugar obtuso estreito e singular”

2.1 – Mar Explosivo

“A terra arde por fim
No azul de um céu de pedra
Um mar explosivo rebentou
Com tudo. Teria de acontecer disse
No mapa assinalou lugares antigos
Um templo a essa deusa
Mnemósine. Venham ver a nova
Realidade absoluta. Não há palavras
... só a praia sem margens neste oceano
Caótico das imagens virtuais
Vagas informáticas
Ferindo secando os olhos”

ANTÓNIO CARLOS CORTEZ
“Animais Feridos” – págs. 74 e 75
Publicações D. Quixote
Lisboa 2017

3 – O Livro das Horas 7.

Nada me é inacessível neste íntimo culto
Ouvir a música, viver com a matéria aberta do corpo
Mudar as coordenadas da alma.
Imprimir o sangue das feridas na superfície da força.

A minha sede, sei-o agora, tem infinitos que não existem
E por muito que beba e escreva
Haverá sempre esta inexistência formal que me separa dos outros”.

TIAGO NENÉ
“Este Obscuro Objecto do Desejo” – pág. 63
Edição “Guerra e Paz”
Lisboa 2017





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