segunda-feira, setembro 30, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 20

Como constelação de destinos improváveis, que antes das trajectórias se amalgamam na mesma tensão criadora, na procura, ainda indefinida, de um “rosto”, uma forma ou um itinerário que lhes confira “anima”, ou sopro que as molde e as projecte no mundo das coisas reais, ou vivas, já não possibilidade apenas, mas pulsar de escrita, ela própria, tensão criativa e simulacro de um pulsar outro – o pulsar da vida – em que a narrativa literária se joga e imita e que, dizem-me outros, porventura, mais fecundos, ser o próprio latejar da História esteio, onde a literatura se funda e de cuja seiva se alimenta, assim, nesta oscilação ociosa, a presente narrativa, a ousar dizer-se literária, se vai desenhando, qual nebulosa de improváveis destinos, que se buscam e encenam, em seus múltiplos impulsos e retroacções, a procurarem erguer-se nas dores da escrita e, neste tempo de agora, a forjarem as personagens, que à Casa Grande são chegadas, vindas de norte para sul, ao sabor das águas, como é o caso de um tal Zé Ninguém ali desaguado e logo nomeado Zé Canhoto, por quem, sendo senhor e dono, tem poder de nomear e que o sabemos a ajeitar-se à vida, na maneira que melhor pode e sabe, isto é, com o suor de seu rosto e suas fortes e longas mãos, tão longas e grandes mãos que, na mente de uma criança nervosa e sensível, hão-de ir da Terra ao Céu, como, a seu tempo se verá, neste amálgama, em que a narrativa se despenha, a granjear, pois, o dito Zé Canhoto umas terras improdutivas, com sua mulher, que outro nome não tem, a não ser a circunstância de ser sua mulher, graças a Deus, mãe de seus filhos, dada por vezes a uns incompreensíveis abatimentos e, ultimamente, a acicatá-lo contra seu amo e senhor, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, “és um banana” solta, azeda, “o Federico Amásio abusa de ti e não és capaz de te impor”, mas como pode um homem impor-se, se tudo aquilo que é e tem, até mesmo a mulher que Deus lhe deu, a seu amo e senhor o está devendo, verdade, verdadinha, porém, que, por vezes, é obrigado a dar razão à mulher, conhecida apenas como a mulher do Zé Canhoto, pois, na realidade como pode um homem guiar-se por outro homem, que falta à sua palavra e não paga o que foi prometido na hora perturbada do perigo e da vida salva, que, se não fora a determinação de um Zé Ninguém, aquelas terras chegado, seria, é bem certo, não somente a hora de perigo, mas funesta hora da morte,  sendo, por isso, pela tão evidente ingratidão e quebra de promessas, forçoso reconhecer que a mansidão de carácter de um pobre zé ninguém é bem pior que a mansidão de um burro de carga, pois que, aquele a si próprio coloca a albarda e, assim o acreditava, a remoer pensamentos, o tal Zé Canhoto, que então, canhoto,  ainda não era, mas tão somente Zé ninguém sem ter onde cair morto, chegado à Casa Grande, ao sabor das águas, dois dias depois do faustoso casamento de seu amo e senhor, Federico Amásio Jacinto Silvestre Campelo do Rego, com uma senhora de alta estirpe, vinda de sul para norte, ao arrepio das águas, Dona Camila Simone de Bernardette e Malafaya, senhora frágil e delicada, qual flor de estufa, educada em colégio de freiras, em Coimbra, em regime de internato, filha dilecta de uma família distinta e de nobres pergaminhos, prestes, a distinta família e os nobres pergaminhos, a naufragarem na ignomínia da insolvência, mas que o casamento salvador com herdeiro abastado, de uma não menos distinta família, um pouco boçal e rústico, é certo, o noivo, haveria, na fusão das duas nobres Casas e das duas distintas famílias, haveria – dizia-se – de salvar-se, a primeira das familias, do opróbrio.

Assim, pois, Dona Camila Simone de Bernardette e Malafaya, ali chegada, à Casa Grande, em luzidio cortejo, que o senhor, seu augusto Pai, visconde de Malafaya, apesar de ruído pelas dívidas e pela sífilis, que o jogo e a putaria não perdoam, fez o questão de comandar, já que filho varão não tinha para, em seu nome, acompanhar a sua Camilinha ao altar e dela fazer entrega ao noivo que, boçal e rústico que seja tal noivo, consumada a cerimónia do santo sacramento do matrimónio, a tomará como esposa e serva e, na santificada missão de conceber filho barão, haverá depois, tal rebento, fundir numa única descendência as duas Casas e, respaldado no prestígio e nas melhores tradições das duas fidalgas famílias e na militância aguerrida na fileiras do Estado Novo e nas hordas da União Nacional e da Legião Portuguesa há-de alargar o património, o poder e a influência, projectando, a âmbito nacional, como deputado ou ministro, o prestígio da decrépita e provinciana família.

Assim, pois, a inocente e dócil Camilinha, ali chegada à Casa Grande, ao arrepio das águas e ao arrepio de sua própria vontade, cúmplice involuntária das maquinações e projectos urdidos por quem, na Família, como na vida, detêm o poder de tudo decidir, até mesmo o destino, quando necessário, daqueles sob sua alçada, vivem e, assim, que pode uma frágil mulher, pouco mais que adolescente, fazer que não seja obedecer, pois bem se sabe a mulher tem a obrigação de servir e aceitar a vontade de Deus, que assim o quer, e a vontade dos homens, que assim o reclama, cm fundadas razões, dado que as mulheres são frágeis e, por vezes, bem tresloucadas, a exigirem pulso firme, seja pai, irmão ou marido, para as manter, a elas, mulheres, no bom e são caminho da obediência e da humildade, qualidades intemporais que a sabedoria divina inscreveu no âmago da natureza humana e da organização do Mundo, pois que a mulher foi feita da costela do homem e não o contrário, portanto, o homem é forte e sábio e a mulher fraca e gentil, dotada da suprema ventura da maternidade.

E como bem se sabe, porque tal em devido tempo foi dito, nesta narrativa que, sem rebuço, se diz literária a Camilinha, que, em breve, novo e mais áspero petit nom merecerá por parte de quem é dono e senhor e, portanto tem o poder de nomear, a Camilinha ou a Machorra, que em breve será, para suavizar suas agruras, fez-se acompanhar, como dama de companhia e confidente, pela jovem e crepitosa Violante, companheira e cúmplice das brincadeiras de infância e dos jogos da adolescência, ali chegada a Violante, qual peça do enxoval, montada de pernas abertas, como briosa amazona, sobre o lombo da poderosa azémola, que teve o privilégio de arcar com suas rijas e bem nutridas carnes.


Manuel Veiga





sexta-feira, setembro 27, 2019

QUE A PALAVRA SEJA...


Que a palavra seja
Assim nua. E raiz. E seiva.

E se erga nas planuras
E no pico mais alto das montanhas
                                                                      
E seja seda e mel
No dorso nas viagens…

E bebedeira de sol
E fio de lume. A debruar o xaile.
Que nos acolhe…

Que a palavra seja!

Manuel Veiga



segunda-feira, setembro 23, 2019

FASCÍNIO ...


No magnetismo da Lua cabem
Todas as marés e enlouquecem os amantes
Desprevenidos. E os poetas que ousam
O sortilégio da Palavra
E se imolam cativos
Num olhar peregrino
A desenhar o movimento
Dos astros. E o feitiço
Das estrelas…

E o fascínio
Das águas…

Manuel Veiga




sexta-feira, setembro 20, 2019

MELOPEIA E RITMO



              Inscreve-se o nome
Na excessiva letra
Intrometida
              Como uma gota
Tonta...

Ou uma nota perdida
Na voz quebrada
Da cítara

E na cadência
Da espera

Melopeia e ritmo
Que embala.
E fica...


Manuel Veiga




segunda-feira, setembro 16, 2019

GOTÍCULA DE SOL ...

Gotícula de Sol sobre a pétala
E o Universo se ilumina
Em apoteose de cor

Agitação tão breve
Que explode no murmúrio do nome
E na música a derramar-se
Sobre o cetim da pele…

Que fica assim a bailar
Letra a letra
E a balbuciar
O frémito…

Já não apenas gota
Sol e Flor. E sede. E seiva.
E cântico.

E o bálsamo. E a prece
E o hino. A celebrar
A dádiva colhida.
E o mistério
Do amor.

Manuel



quinta-feira, setembro 12, 2019

Brilham Distantes As Estrelas ...


Seduzem distantes as estrelas
Em seu brilho de gelo.

Néscios os homens queimam incensos
E mortificam os corpos
Para as louvarem.
                                                                          
Os poetas, esses, enviam sinais de fogo
Na linguagem primordial dos afectos
Que as estrelas não entendem
E de que – majestáticas! –
Devolvem o reflexo
Pálido…

Brilham distantes e frias – as estrelas!...

E aqueles, que ousam aproximar-se,
Queimam suas asas. E enjeitados
Fazem seus lutos.

E na mansidão dos justos
Reacendem a inanidade
Do brilho que cobiçam.

Para glória das estrelas
Eternamente distantes e frias.

Manuel Veiga
11/09/2019



terça-feira, setembro 10, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 19


Naquele tempo de cerzir fios e de lançar caboucos da escrita, chegou, pois, àquelas paragens Dona Camila Simone de Bernardette e Malafaya, contrariando a ordem das coisas e as leis Natureza, pois bem se sabe, através de um Zé Ninguém que, por esses dias, também ali chegado, àquelas Terras do Demo e logo ali alcunhado de Zé Canhoto por quem, sendo senhor e dono, tudo decide e tem o poder para nomear, seja ele Zé Ninguém, que não tem onde cair morto, seja ela fidalga, ali chegada para contrair matrimónio e – quiçá – inaugurar nova linhagem, no cruzamento do sangue e dos patrimónios de duas distintas famílias beirãs, cujos avoengos antepassados se perdem nas brumas da história, famílias, por vezes inimigas e rivais, mas naqueles tempos de trevas e misérias várias, ambas confluentes no mesmo desígnio de poder e sustentáculo do regime do Estado Novo, fidalga, pois, àquelas terras chegada, em contramão, que é como quem diz, ao arrepio das águas, pois bem se sabe, no dizer de um Zé ninguém, também, nesse tempo de caboucos, àquelas terras chegado, que as águas correm de norte para sul e não o contrário, sendo, pois, bem claro, na caligrafia da natureza que, se as águas são a correr de norte para sul, poderosas hão-de ser as razões para que uma jovem e distinta senhora, contrariando o normal percurso das águas, venha de sul para norte, das terras úberes de Lafões, fazendo o percurso inverso das serranias despidas da Beira Alta, a abrirem-se, de norte para sul, em estreitos vales, a desdobrarem-se umas nas outras até às terras baixas do concelho de Águeda, onde as águas se fundem e o rio Vouga perde le petit nom de “vouguinha” para se assumir, finalmente, nome de rio e espraiar-se, qual lençol, ou xaile bordado e, pouco depois, mais adiante, em Aveiro, entrar Atlântico adentro, como se nada fora.

Vinda, pois de sul para norte, num tempo de prelúdios desta escrita, que se diz literária, chegava, então, a Terras do Demo, Dona Camila Simone de Bernardette e Malafaya, acompanhada, qual peça de enxoval, pela graciosa e rosada Violante, filha de um dos caseiros da Casa Malafaya, que desde tenra idade lhe aparava os humores e caprichos de fidalga e, na adolescência, amiga e confidente de derriços e fervilhantes paixões, tão próprios da idade e, agora, dama de companhia na Casa Grande, onde as suas vidas, Senhora e aia, se haverão, em seu tempo próprio, que há-de chegar, confundir-se, como dupla do Destino, à qual, sem o saberem ainda, estavam amarradas.

Não apressemos, porém, os passos, que mais do que a vontade dos homens e os ditames da natureza, prevalecem os desígnios de Deus, que tudo pode e manda, de tal forma que se uma senhora, da alta estirpe, se propõe percorrer os caminhos da vida em contramão, com tudo que isso implica em sacrifícios, altos serão, certamente, os desígnios divinos, que tudo determinam, para que tal aconteça e não de outra maneira, não competido ao escrevente mais que registar os acontecimentos, sem a presunção de neles interferir e, se deles é privilegiado observador, compete-lhe apenas decifrá-los, quer dizer, perscrutar-lhes as causas, pois que “felix qui potuit rerum cognoscere causas” – como já anteriormente o dissemos em romba tradução – para que todos os possam entender para maior glória de Deus, sendo, porém, que outros dirão, em chã linguagem e fundado entendimento, que tais altos desígnios divinos não serão mais do que os caprichos da escrita e os humores do escriba.

Desta sorte, cumpre prosseguir este ofício de escrever, qual "escravo preso às galés", como diria Manuel Maria, se Manuel Maria então houvera e não apenas latência,  para decretar que, em tempos outros, que não neste tempo narrado, chegara, finalmente, à Casa Grande, Dona Camila Simone de Bernadette e Malafaya, senhora de nobre estirpe, já o dissemos, montada, com grande aparato, em soberba égua, arreada (a dita égua) com sela debruada a prata, acolchoada de veludos e sedas, como se fora um trono, sentada, pois, a ilustre senhora, em altivo porte, como se a sela, sobre o lombo da besta, fosse um trono e as augustas pernas, pudicamente juntas, a baloiçarem, para o mesmo lado da montada, pois que não é digno de dama ilustre e temente a Deus, abrir, literalmente, as pernas para criados e subalternos e cavalgar, como amazona desenfreada, com as pernas abertas, cada uma a balançar para seu lado, mais a mais, sendo a viagem longa e ondulante movimento do senhoril corpo, a acompanhar o balanço do trotar da égua, inevitavelmente, as partes íntimas, sendo as feminis pernas abertas, forçosamente, iriam roçar no rijo cabedal da sela e, assim, causar à distinta menina sabe-se lá que ardores, ou cândidos (ou viciosos) estremecimentos, ou pensamentos bem pouco dignos, em qualquer caso, de uma noiva, casta e imaculada, prestes a consagrar-se nos deveres do sagrado matrimónio.

Não constam, porém, das crónicas, os termos e o modo como a jovem e crepitosa Violante, companheira e cúmplice das brincadeiras de infância e dos jogos da adolescência da noiva-fidalga, fez tão longa viagem sobre o lombo da poderosa azémola, que teve o privilégio de arcar com suas rijas e bem nutridas carnes.

É, no entanto, bem possível, como decorre do normal entendimento das coisas e acontecimentos, que se ainda não conhecidos, em breve, no tempo narrado desta escrita, conhecidos irão ser, é muito bem provável, dizíamos, que a jovem e crepitosa Violante, tenha viajado de pernas abertas, pois que, como saberemos, durante a sua permanência na Casa Grande, amiga e aia de sua Senhora, Dona Camila Simone de Bernardette e Malafaya, lhe foi, à Violante, difícil mantê-las cerradas.

Manuel Veiga





domingo, setembro 08, 2019

"PERFIL DOS DIAS" - Na Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro - Lisboa




Sem Gramática

Tomba a palavra como gota
Na inocência da escrita
E alastra liquefeita
Água ainda…

Agora feita narrativa
A dizer-se plana e alagar-se
Sílaba a sílaba

E a desdobrar-se
Métrica. E sem gramática
A desenhar-se 
                         Gráfica.                          

E a erguer-se
Fecunda. E a diluir-se
Golpe de asa.

No azul desmedido
Do poema…

Manuel Veiga


quinta-feira, setembro 05, 2019

FESTA DO AVANTE - "Não Há Festa Como Esta!..."




Transporta-nos ao Futuro – a Festa!
Como se o tempo fosse veleiro de todas as quimeras
E o ventre da terra fosse uma papoila ruiva
No corpo das searas. E os braços dos homens
Fossem torrente de afectos no ombro cansado
De todos os proscritos...

E o trabalho fosse apenas
O gesto da partilha dos frutos…

Transporta-nos ao Futuro – a Festa!
Na claridade integral dos dias pressentidos
Que os homens desenham no ardor de suas lutas.
E na reinvenção do amor em cada esquina.

E no farnel da Igualdade.
E na febre de Liberdade.

Que os hinos sejam! E os rituais se cumpram
Como umbrais de Esperança. E a luz da alvorada
Seja chama. E guia nos passos de dor
Que trilhamos.

E porta seja aberta.
E o rosto dos homens – livres e diversos!
E a Festa seja alegoria sinfónica
Do Mundo...

Manuel Veiga

“POEMAS CATIVOS” – Poética Edições
Maio 2014

terça-feira, setembro 03, 2019

INCAUTOS DEDOS...


O que nos deuses é capricho e majestade
É nos homens esboço de vontade. Apenas.
Nem sequer vibração ou dor
E assim deve ser…

Não te amofines, pois, Lydia. E recolhe
A ruga que te ensombra o rosto.

Repara na glória do salgueiro!
E, no entanto, apenas a sabemos
Porque colhemos, Lydia, do salgueiro, a sua sombra
E a brisa da tarde a bailar
Em teus cabelos…

Deslassemos (em fingimento) os dedos
Que nunca tocamos, nem a polpa conhecemos.
Deslassemos, ainda assim, Lydia, os dedos.
E desatemos o nó das nossas impossibilidades
Que nunca tentamos.

E apartemos águas. Que a mim me bastam
Águas deslassadas e os incautos dedos.
E o lago de teus olhos (adivinhados)…

Mas apressemo-nos! Que a agitação febril
Da tarde (e das coisas que não dizemos)
É o rufar da noite, que se aproxima
E sobre nós tomba…

Manuel Veiga
03/09/2019

Nota: Lydia é uma criação literária de Ricardo Reis





CELEBRAÇÃO DO TRABALHO

  Ao centro a mesa alva sonho de linho distendido como altar ou cobertura imaculada sobre a pedra e a refeição parca… e copo com...