Cada dia, meu poema e
cada letra a transfiguração
de meus
passos
e a
devoção
de meus
afectos …
………………….
qual
néctar
no íntimo
da flor…
Manuel Veiga
Cada dia, meu poema e
cada letra a transfiguração
de meus
passos
e a
devoção
de meus
afectos …
………………….
qual
néctar
no íntimo
da flor…
Manuel Veiga
José Augusto Esquerdino era um individuo valente, com provas dadas, ao
longo da sua vida de resistente, um daqueles personagens que se impõem pela
grandeza de caráter e pela confiança que inspiram e pela autenticidade com que pautam o seu comportamento.
Nas duras batalhas da clandestinidade nunca se negou a qualquer missão, por maiores
que fossem os obstáculos ou arriscados objetivos da luta. Os seus camaradas
confiavam nele e na sua acrisolada dedicação à causa da libertação do povo, traços
de carácter que nele eram fecundamente naturais, pois que criado e educado com solicitude
e apoio de seus camaradas depois de abandonar, para sempre, o lugar que o viu nascer,
vivendo, digamos assim, desde tenra idade, no seio da classe operária, e tendo
absorvido a sua ideologia transformadora, toda a sua energia se concentrava instintivamente
no combate a todas as formas de opressão e exploração. Não há porém, homens
perfeitos. E aquilo que são qualidades, noutras circunstâncias, em vez de
qualidades, poderão apresentarem-se, como características menos positivas.
Assim também José Augusto Esquerdinho. Em boa verdade, fora do seu meio era um bicho do mato que nunca foi capaz de superar a circunstâncias de ser um aldeão, nascido em Terras do Demo, um obscuro lugar, onde quem mandava era o senhor da Casa Grande, Frederico Amãsio, ele próprio mais boçal e tosco que qualquer um dos trabalhadores das suas vastas propriedades. Um meio soturno portanto, com o negro pão da fome e a ignorância como determinantes sociais e o caceteiro, senhor da Casa Grande, a ditar a sua vontade, como expressão e força de lei nos seus domínios e na vasta região, onde exercia a sua reacionária influência.
Pois bem, José Augusto Esquerdino em sua revolta contra as injustiças e a humilhação pública do pai, seu herói e seu modelo, com a sua fuga – dizíamos – com a sua fuga para nunca mais voltar (“pedir perdão de quê, meu Deus!...”) e a sobrevivência e a formação cívica e cultural no querseio da classe operária, e o mais por que passou, designadamente, as prisões e torturas, nunca conseguiu libertar-se completamente, do odor da terra que o perseguia e das bravias fragas, por entre quais crescia o centeio e o trabalho rude dos homens, que trazia agarrados a pele, como uma praga.~.Em consequência, José Augusto Esquerdino (“homem é ele e a sua circunstância”) trazia com ele, sem disso se dar conta, algumas marcas de caráter, típicas do meio rural onde crescera, deixando sobressair uma exagerada timidez que saltava à vista até para o observador menos atento e lhe conferia um porte esquivo e desconfiado, como se permanentemente estivesse a colocar à distância os seus interlocutores, o que, naturalmente era um incómodo para si próprio e os seus amigos que, por vezes, se sentiam constrangidos e preocupados, pois tais características de personalidade eram por demasiado notadas e, por isso, mais vulnerável, à possibilidade deteção pela policia política. No entanto, os jovens consideravam-no um verdadeiro herói da resistência ao fascismo. As prisões e maus tratos sofridos por açção da polícia política, davam-lhe uma auréola de herói que muitos jovens gostariam de imitar, designadamente, o grupinho da avenida de Roma, que Manuel Maria e o seu amigo Quim Remédios, que ativamente frequentavam, “em tempos de borbulhas e revoluções de papel".
Manuel Maria, já se sabe, tinha verdadeira admiração por José Augusto Esquerdino e uma certa vaidade, por a história da sua luta, ter começado verdadeiramente, em Terras do Demo, com sua revolta contra a humilhação do pai ( “um homem nunca deve ajoelhar perante outro homem ”) história que passou a correr de mão em mão, cada um contado à sua maneira, porém a verdadeira “história” de José Augusto Esquerdino, apenas os seus camaradas e amigos mais próximos que sempre o apoiaram e o formaram e introduziram na luta política, quer dizer, a revolta e o abandono da família e a terra que o viu nascer, deixando para trás todo um Mundo, que era seu, apenas ganha densidade e se torna exemplar, na medida em que seu protagonista ganha consciência social e, perante as injustiças, escolhe o caminho mais difícil - o caminho da libertação do s explorados e ofendidos.
Assim sentenciava Manuel Maria para si próprio, num daqueles solilóquios em que era fértil e que, como que em transe, caía absorto, numa viagem em que percorria todos os meandros da transfiguração da realidade, que ele, mais que ninguém, sabia ser, muitas vezes, a encenacáo da sua própria vontade Nesta perspectiva, quanto mais Manuel vadmirava José Augusto, maior era a urgência da resposta pergunta “que fazia ali a a Cléo ”pois que, nem de longe, nem de perto, a rapariga tinha de estofo político ou profisso ºque a recomendasse como colaboradora direta do Presidente da Câmar. Que havia ali, naquela relação improvável, uma atração sentimental, porventura de um só sentido, cheirava à distância. A Cléo que em tempo de tertúlias e “todos os maios” passou com distinção o tirocínio de “intelectual monta-cargas” na seleta tertúlia, em que pontificava uma “semiótica criaturinha”. careca, de pernas curtas e dilatado ventre, que mais parecia um aranhiço, a quem a zelosa Cléo, entre outras delicadezas e tarefas, tais como, carregar montanhas de livros e jornais se esmerava a sacudir-lhe os grãozinhos de caspa ombros da criatura semiótica, Ora não consta que José Augusto Esquerdino sofresse de semelhante maleita, e como tal, não se compreendi a este espaço sugestão que levoa o que é que estaria ali a fazer a como secretária pessoal, não ou adjunta ou chefe de gabinete, fossem lá as tarefas que fossem , pois quem a conhecesse saberia que a Cléo era uma verdadeira inutilidade. Enfim, conforme ela gostava de afirmar “não prestava”. Nem na cama, nem em coisa nenhuma, sentencia Manuel Maria, por interposto “escrevente”
Manuel Veiga…
Nem
Reino nem Glória
Apenas
os passos cansados e a poeira
Dos
caminhos. E o reluzente rubi
A
brilhar por entre os dedos …
O salgueiro ali permanece. Como sempre
Mas
outro. A oferecer sua sombra. E o rio
Agora
seco, em cascatas de memória.
E
o freixo. E o canto do melro
A
agitar-se em cio.
À
porta da Tabacaria
(e a comer chocolates, está claro!)
E
também a inamovível pedra
Em
que me sento…
Que me importa a mim a verdade
Ou a mentira?
Verdade e mentira passam…Tudo passa…
Apenas a reluzente pedra me interessa
Que venha então a gargalhada dos deuses
E
a última jogada! …
Manuel
Veiga
A Cléo, que vimos a última vez a bracejar, num plenário tumultuoso, revelando total incapacidade de aguentar os protestos e os assobios, numa sessão que deveria ser de sensibilização sobre matéria de grande importância, como era dotar as construções clandestinas, com redes de água e saneamento, foi salva do “furor” das massas, pela entrada oportuna de José Augusto Esquerdinho, levando a tiracolo o jovem arquiteto Manuel Maria de quem “haveria muito a esperar”, no dizer do Presidente, que, dando-se conta do embaraço da esforçada moça e de que o plenário que se desejava democrático se estava a transformar numa balbúrdia, saltou para o palco, arrebatou o microfone das mãos da perturbadíssima Cléo e, com autoridade revolucionária e a legitimidade política de que estava investido e, sobretudo, com seu carisma e palavra certeira, acalmou os contestatários e “salvou” a Cléo, com seu chic revolucionário, que daí em diante, até final da reunião, se manteve queda e muda, numa pose de dignidade ofendida, qual “Passionária” mimada.
Manuel Maria recolhia, com um sorriso calado, o que se passava à sua volta, seguindo, ausente. as palavras do Presidente da Câmara, pois a verdade é que o foco da sua atenção estava na pergunta, que a si próprio formula, pela obsessão de saber o que faria Cléo de jeans justos e pernas elegantes, que em tempos outros, tempos de cerejas e tertúlias literárias, num chique desmazelado e uns jeans a desfiarem-se nos joelhos e ancas, enfim, uma intelectual acabadinha de chegar de Paris e de “todos os Maios”, que girava em torno do seu patrono e mestre literário, “uma semiótica figurinha” uns bons anos mais velho, de pernas curtas e meia dúzia de pêlos ariscos no alto do seu “poderoso” crânio, para quem Lacan, Derrida, Althusser, Foucault, Barthes e “tutti quanti” não tinham para ele segredos e que proclamava, do alto da sua sapiência, que “o marxismo era coisa do passado”, a quem a Cléo, em admirável devoção, transportava os livros, lia os jornais, tecia rasgados elogios, bebia o elixir das suas sábias palavras, afagava os pêlos espetados no alto do crânio, sacudia-lhe a caspa dos ombros e, sabe-se lá o que mais não lhe sacudiria!... Uma talentosa e versátil admiradora da semiótica criatura que, que por seu lado, não se cansava de elogiar o enorme talento da escritora Cléo. Um notável casal de intelectuais, portanto, a pontificar a distinta tertúlia que Manuel Maria frequentava, num tempo de publicidades e outras iniciações, onde fora introduzido por insistência de Dona Ludovina, uma distinta balzaquiana, divorciada, de opulentas e rijas carnes, “cujo talento literário de Manuel Maria estava em condições de poder testemunhar.”
Este convívio do passado não muito distante, levava o jovem arquiteto a esperar por parte da Cléo, um acolhimento, senão carinhoso, pelo menos suficientemente amistoso, de forma a poder colher a informação que tanto o intrigava “que fazia ali a Cléo?, tanto mais que Manuel Maria, nesse tempo de tertúlias e cerejas, havia prestado um serviço de que deveria ser agradecida toda a vida, não por gratidão, que o prazer não se agradece, mas pela contribuição que o jovem Manuel Maria quando, terminado que fora o estágio com a sôfrega balzaquiana, opulenta de carnes. Dona Ludovina, o deslumbrado Manuel Maria não tivesse sentido a atração pelo corpo desleixado mas elegante da rapariga, “que não prestava na cama”, como alegremente proclamava quando assediada: “comigo não vale a pena tentar, não presto na cama! É tempo perdido”. Porém, arquiteto Manuel Maria não se intimidou e ávido de fazer demonstração dos conhecimentos adquiridos com Ludovina e, como a ocasião faz o ladrão “patati patatá, argumento de uma lógica e inigualável, insistia insistia Manuel Maria sempre que ocasião se proporcionava. “Não há com.o experimentar”! E tantas vezes o argumento foi deduzido que convenceu asséptica Cléo a… “experimentar” !
Nas
primeiras impressões, Manuel Maria esteve tentado a dar-lhe razão e reconhecer
que efetivamente a Cléo “não prestava na
cama”, pois, esgotados todos os recursos e manobras que conhecia e o
levaram a fazer com distinção o tirocínio com Dona Ludovina. não conseguiu
arrancar-lhe um suspiro ou um gemido, ou um gesto ou uma pose, que de facto, pudessem
contrariar a tese assumida de que “não
prestava na cama”. E, Manuel Maria encolhe os ombros, perante a evocação
desses dias de um tempo de cerejas e iniciações várias e saboreia, divertido, o
dizer do poeta de que “la experiência és
la Madre de todolas as cosas...” pois que a Cléo, gradualmente, na medida
em que quanto mais praticava, com todo o mérito, insistência e prazer do jovem
Manuel Maria, mais satisfatórias eram as suas performances (na cama), o que não
é coisa de somenos, pois as performances de Cléo mereceram excelente classificação
do expert Quim Remédios que, como sabem
os leitores (se leitores houver), em sua escatologia de valores, “ Mulheres quanto mais burras, melhores na
cama!...” Ora digam-me se não devia ser motivo de reconhecimento de parte
da Cléo tão justa e saborosa classificação vinda de quem vinha, o “expert em
mulherio”, Quim Remédios, que para todas as doenças tinha “remédio”: “Oh pá, f... que isso passa!...” Na
verdade, o Quim Remédios era um “prático” – f…dia e respirava saúde! Lembrava
Manuel Maria, com um sorriso tolerante e compreensivo estas coloridas cenas de
um tempo de cerejas e borbulhas, em que a Cléo foi protagonista, enquanto
regressavam aos Paços do concelho, com o Presidente ao volante do velho Jeep, e
a Cléo sentada a seu lado e Manuel Maria no banco traseiro, jurando a si mesmo
que é Cléo, apesar da frieza do acolhimento, não demoraria uma semana, sem lhe
confessar o que, vestida com elegantes jeans “vinha a fazer?...”, quer dizer,
em que é que o seu alto gabarito
intelectual (salvo seja!...) e as suas saborosas qualidades em boa hora
reveladas, contra todas as aparências, poderiam ser úteis na democratização de um
grande município da Área Metropolitana de Lisboa.
Manuel Veiga
Os olhos vendados são o limite da língua
E a levitação do corpo
Nada perturba o
território
Nem a música de
teus dedos
Na periferia, nem a
uterina fala
Do silêncio…
Tudo o que passa
são tuas mãos apenas
Acordes íntimos a
romper a pele
E a conter a
explosão orgástica
E a devolução da matéria
sísmica
Na leveza da agitação muda…
O tempo claudicou.
Como a língua
É um suspiro breve
ou um vagido
E ondas do corpo a
atiçar o falo
Galera em que
viajo no sopro
De teus castos
dedos…
E teu irónico sorriso!...
Manuel Veiga
16.08.2023
José Augusto Esquerdino e Manuel Maria vindos de norte para sul, como o curso das águas, acreditando, piamente, Manuel Maria numa arquitetura para o povo e José Augusto, eleito por braço no ar, em grandes plenários, por todo o concelho, Presidente de um grande Município da Área Metropolitana de Lisboa perfilhavam, ambos, o mesmo projeto de sociedade e consideravam ser a participação social condição necessária da democracia avançada, que a revolução propunha ao país. Neste objetivo os trabalhadores (dirigidos pela classe operária), em estreita ligação com o Movimento das Forças Armadas. erguiam-se como vanguarda do movimento revolucionário, depositário da legitimidade política e, por conseguinte, conferiam autoridade executiva as aspirações e às reivindicações populares que, por todo o lado explodiam. Em certo sentido, Manuel Maria e José Augusto Esquerdino, estavam ambos estritamente vinculados nessa saga do exercício do poder local, José Augusto, já se disse, eleito Presidente da Câmara e Manuel Maria seu assessor para as questões de urbanismo que, naquela emergência, se traduzia na prioridade de erradicação das barracas que proliferavam em vasta zona do território do concelho, ao mesmo tempo que se lançavam as bases para a elaboração de planos de urbanismo que pudessem “ordenar” o território do município e conter a construção clandestina, mediante a elaboração de Planos Directores municipais.
As questões do urbanismo, como se compreende, envolviam grande
sensibilidade política e elevada responsabilidade técnica, estavam pois
distribuídas ao Manuel Maria, sendo que o Presidente não mexia nem grão, nem
palha, por mais simples e óbvias se mostrassem as soluções propostas, sem que, previamente,
tivesse colhido parecer ou informação circunstanciada de jovem
arquitecto Manuel Maria.
Porém,
Manuel Maria empolgado pelas teorias e teses em que sobressaía a sua voluntarista
ideia de “uma arquitetura para o povo” via-se em palpos de aranha para dar
conta do recado e corresponder aos constantes pedidos do Presidente da Câmara, que
educado na escola da vida e nas urgências que o ritmo de revolução impunha,
planos de urbanização eram uma bela
música para os ouvidos, mas que em termos práticos, serviam apenas para atrapalhar. Eram, assim,
José Augusto e Manuel Maria o verso e o reverso da mesmos objetivos políticos ou
dito de outra forma, José Augusto Esquerdino e Manuel Maria, representavam diversas
configurações do movimento social, em que se desdobrava o fluxo e ritmo da
revolução, face à avaliação que cada um fazia, em cada momento dos interesses
em presença e que se projetavam, como se compreende, nas propostas e decisões
da atividade autárquica, sobre as quais, logicamente, nem sempre havia coincidência
de pontos de vista.
Tal diversidade de opiniões era, em princípio, dotada de potencialidades, pois que, quanto mais largo fosse o âmbito discussão e a diversidade de pontos de vista. maior seria a garantia da justeza das decisões tomadas, na condição das respetivas opiniões servirem um único critério – o da oportunidade política e tereme o seu conteúdo democrático. Que era assim. ambos o sabiam, Manuel Maria e José Augusto Esquerdino. E, assim, procuravam proceder. Acontece, porém, que .a realidade idealizada se nos escapa por entre os dedos e os nossos atos não passam afinal, tantas vezes, de “atos falhados” que pouco ou nada têm a ver com os nossos genuínos prepósitos, ou com realização integral dos , que idealmente proclamamos, como se o barro humano de que somos feitos, se inscrevesse como marca de fragilidade e engano, em tudo o que fazemos.
Nesta conformidade, o jovem arquiteto começava a duvidar das suas
capacidades e a agarrar-se, que nem um náufrago,
â fragilidade de suas propostas, todas elas inflamadas pelas suas “brilhantes”
teses sobre uma um para o povo que o que o José Augusto Esquerdino arrasava
comentários sardónicos “já sabemos, rapaz,
que por ti qualquer sem abrigo deveria habitar um Palácio, mas a realidade é
bem mais comezinha – trata-se apenas de levar água e saneamento às construções
que se possam salvar, mediante os teus tão celebrados planos de urbanização.
Mas desconfio que os teus sem-abrigo, com plano ou sem plano, tem ainda muito
tempo para penar.
Andava, pois, Manuel Maria um tanto ou quanto descorçoado, caminhando de Herodes para Pilatos. quer dizer a correr de um lado para o outro. do gabinete do Presidente para para gabinete de arquitetos, a quem for adjudicado a elaboração do tão falado plano diretor municipal que, no dizer dos técnicos seria pedra de toque para se puder disciplinar a construção desenfreada, que os últimos anos do regime fascista haviam iniciado e que a revolução, com a desarticulação das estruturas de controle, acabara por impulsionar, de jeito que Manuel Maria, na sua azáfama de “uma arquitetura para o povo”, carregado de mapas e dossiers, foi apanhado entre dois fogos, a correr entre o gabinete do Presidente da Câmara para quem planos e as regras era música para os seus ouvidos, mas que, em seu entender, em nada facilitava o curso da revolução e o gabinete consultores para quem o destino da revolução passava pela implementação de instrumentos legislativos que pudessem “ordenar” e, descontrolada das periferias de Lisboa. E estas duas posições de princípio não era uma questão menor; pelo contrário, dividia a meio (quase) os partidos políticos e a generalidade dos cidadãos, para quem Revolução de Abril era razão de liberdade e desenvolvimento do País.
Entendamo-nos!... Esta prosa bárbara em que, por vezes, o escrevente se enreda, numa teimosia mais teimosa que o sonho de Manuel Maria de uma “arquitetura para o povo” não se pretende fazer rapport de revolução, mas apenas sublinhar, neste tempo histórico em que vivemos, carregado de nuvens e sombras, que o grupo da avenida de Roma (ou ao que dele resta) “senhores” de um tempo de borbulhas e revoluções de papel, que ainda hoje se comovem, quando recordam das vivências da Revolução de Abril, ou quando soltam o grito “25 de Abril, Sempre”!
E
a Cléo? Que fazia ali é Cléo, com seu chic revolucionário e as jeans justas,
queria faziam sobressair a beleza das pernas?....
Manuel
Veiga
Teus dedos açucenas em meu corpo aberto
e os olhos
vendados. Como se fora rito
ou cerimonial
secreto. Sou levitação.
Agora meu corpo é algo
místico a planar
Veludo de carícia
e macieza da voz
Passagem de mãos
em minha pele
sedenta, a abrir
novos mistérios
e a alastrar em
murmúrio
que apenas tuas
mãos sabem
e, quando os dedos
se enlaçam quase-nada
Em inocente jogo e
expectante espera
e primaveril encantamento
Solta- se então o
percurso das águas
que enjeitas embora as desejes
E sei então de ti pelo movimento
das pálpebras dobrado.
E teu sorriso-cativo...
Manuel Veiga
07.2023
Aqui
chegados, o escrevente,
hesita, ou melhor, não sabe muito bem com que linhas poderá cerzir esta prosa bárbara,
que se diz literária e continuar a desbravar sendas e caminhos que Manuel Maria,
herói desta fita, não o esqueçamos, há-de percorrer em outros tempos literários
e que trilhos e passos seus irão decifrar outros destinos e caminhos, apesar do
pobre escrevente estar disposto o fazer
o que se lhe exige, ou seja, desatar os nós, em que esta prosa redonda, frequentemente,
desemboca. como é agora o caso, com o jovem José Augusto Esquerdino à espera, não
se sabe bem de quê, num bairro da preferia de Lisboa, sem sabermos que lances irão
definir a vida, débil compromisso de escrevente
sem vocação de cronista para poder relatar a epopeia da sua passagem do Rubicão ou, dito com mais
propriedade, a dar testemunho da sua construção como homem, ele jovem
adolescente em fuga para longe, cada vez mais longe, por montes e vales. sem
nunca olhar para trás, pois que, como na metáfora bíblica, poderia transformar-se
em estátua de sal, mas fugindo sempre, fugiu para longe José Augusto, sem
arrependimento, acossado pela dor pungente e pela revolta de ver seu pai, seu
mestre e seu ídolo, ajoelhado perante outro homem pedindo perdão, “mas pedido perdão de quê meu Deus!... ”,
e a voz arrogante do patrão a martelar fundo, em carne viva e a roer as entranhas, “de joelhos
Esquerdo, que perdão pede-se de joelhos” e o pai ajoelhado
erguendo as mãos pedindo perdão e a vergonha do filho com humilhação do pai e o
grito de revolta e a blasfémia “maldito sejas José Esquerdo!
Não contes mais comigo como teu filho, pois deixei de te reconhecer e como pai…
Assim, pois, José
Augusto, deixado sozinho, num bairro periférico de Lisboa, ainda que apenas por
minutos, que mais pareceram horas, num local, onde tudo lhe parecia hostil, desde
a escuridão circundante, ao ruido difuso do trânsito e, mais longe, as luzes da
cidade a brilharem, quais olhos de um dragão a chisparem cinzas ardentes. José
Augusto sentia-se inquieto e, pela primeira vez se interrogou sobre se, virar
costas ao mundo que até então conhecia, renegando aos seus pais e aos seus
irmãos, pois em verdade nunca se pode fugir da Terra que nos viu nascer, seria
a solução certa para a -sua vida e, agora, neste salto no desconhecido, sem a
certeza de poder escapar a um destino ainda pior do que as Terras do Demo.
Surpreendido, José
Augusto, com uma palmada amistosa nas costas e uma voz que o interpelava “és o José Augusto, não é verdade? Anda,
vamos depressa que este sítio não é recomendável” E, para lhe conquistar a confiança, puxou de uma
certa intimidade como se lhe adivinhasse os pensamentos, ou se os dois jovens
conhecessem há largos anos “deixa
essa tua cara de arrependido – o que lá vai, lá vai!... E com sorriso contagiante “e as grandes cidades fizeram-se por grandes
homens e, quem sabe um dia de verdade não serás um homem grande... José Augusto sentiu-se “agarrado” com
entusiasmo do companheiro e prestando-se ao jogo jocoso, retorquiu: “claro, claro um dia quem sabe, se não serei
o gajo que vai governar Lisboa e tu Portugal inteiro ... ”
E assim,
galhofeiros, os jovens seguiram pela escuridão da noite até se envolverem no
crepitar da cidade, para espanto e curiosidade de José Augusto que não se
cansava de interpelar o amigo, por tudo e por nada, sorvendo às golfadas,
aquele seu primeiro mergulho na cidade.
È dever do escrevente pôr de sobre aviso os leitores de que, a partir da
primeira imersão de José Augusto na cidade, se abre novo tempo literário, em
que um jovem adolescente, que sem nunca olhar para trás, fugiu, de seus pais,
dos irmãos e da Terra que o viu nascer, na verdade ninguém foge totalmente à
terra que nos viu nascer, mas fugiu José Augusto, pois nenhum homem deve ajoelhar perante outro
homem para pedir perdão – mas pedir
perdão de quê, meu Deus! se todos os homens são iguais no nascimento e na morte?...
a partir deste momento, dizíamos, José Augusto Esquerdino desaparece do “radar”
do escrevente e dos leitores (se leitores houver) e, se é
verdade que nos diversos tempos desta narrativa, que se quer literária, havemos
de sentir a sua presença, em múltiplas tarefas de “revolucionário
clandestino”, a verdade é que,
nesses momentos, a sua aparição é como uma nuvem, que descarrega chuva
benfazeja para, de imediato, desaparecer e fundir-se novamente com céu azul.
Não tem, pois, o escrevente
a veleidade de conhecer o percurso de José Augusto Esquerdino, após chegar a
Lisboa e ficar entregue aos cuidados de um jovem, de quem não sabemos o nome,
mas apenas podemos garantir que no dia seguinte procurariam trabalho para o seu
novo amigo, pois bem se sabe que homem sem trabalho, é como um chão que apenas cria
ervas daninhas.
De José Augusto Esquerdino,
saberemos apenas na medida em que formos dando conta das suas incursões
políticas, no quadro da luta antifascista, em que cedo foi engajado, sendo – tudo
o demonstra – um caso bem sucedido da
legenda de “como se faz” um homem, isto é, pelo trabalho e pela luta
política, ombro a ombro com outros homens, “aprendendo,
aprendendo, sempre” com a sua vida e com a
vida de seus semelhantes, lendo e estudando, numa sede permanente de conhecimento
científico da realidade e da raiz das transformações históricas e, nesta
perspectiva, a relevância e o papel de relações sociais de produção e da luta
política no seu interior, como fundamento da alteração, em cada momento, do
binómio “poder/saber”, que molda a história e o seu devir permanente.
E, assim, “se fez”
José Augusto Esquerdino, ao longo dos anos, nessa ascese revolucionária,
digamos assim, apreendendo, desde muito novo. o sentido e a grandeza da palavra
camarada, declinada com a responsabilidade que ela implica e a generosidade que
pressupõe, forjando o seu carácter, pela férrea vontade de superação e
merecendo dos seus amigos e companheiros de luta a mais sólida confiança, que sempre soube granjear,
pela coragem e pela determinação no desempenho das suas tarefas
revolucionárias, por mais perigosas e delicadas que se apresentassem.
De vez em quando,
José Augusto Esquerdino emergia da clandestinidade, como um relâmpago, para dirigir
uma luta, fundar uma associação, ou dinamizar o trabalho nalgum bairro
periférico e, quando era o caso, para integrar as campanhas eleitorais e
desmascarar as fraudes de que o regime fascista era o useiro e vezeiro e,
depois desaparecia, por largo tempo. Não raras vezes, porém, a sua ausência era
motivada pelas piores razões, significava que a polícia política o tinha filado
e que José Augusto estava preso nos curros da Pide/DGS curros, onde sofria as
mais infames torturas, que, por vezes, o levavam à beira da morte, porém sem
que sua boca se abrisse, mantendo-se sempre firme e determinado na defesa dos
seus ideais, sem mínima transverberação ou cedência, negando-se a responder aos
esbirros de fascismo
Esta atitude
dignidade e a sua valentia granjearam forte admiração, em particular, da
Juventude estudantil, que, nas suas tertúlias político/literárias e nas suas voluntaristas
“revoluções de papel” José Augusto Esquerdino era um verdadeiro herói,
quase um mito, a inspirar os sonhos de liberdade da Juventude.
Foi
numa dessas tertúlias político/literárias que o jovem arquiteto e o futuro
escritor Manuel Maria, que no tempo literário, agora presente, sabemos do seu
regresso a Lisboa, vindo de Terras do
Demo, aonde foi chamado com urgência e onde deixou uma herança pendente e duas Mulheres que o amavam como se foram
ambas sua mãe, para regressar, no próprio dia da chegada e, assim. poder
partilhar a euforia da Revolução dos Cravos, foi numa desses tertúlias político
literária, dizíamos, que António Maria ouviu falar pela primeira vez em José
Augusto Esquerdino, despejado, à beira da morte. junto à entrada do hospital
Júlio de Matos.
Nesta escrita redonda, de tempos cruzados e factos irreais
que, apesar de escritos, havemos ainda de conhecê-los, quando a ordem da escrita
assim o entender, o que quer dizer que
escrever não é mais que puxar os fios da escrita e desembrulhar o novelo, sem
se saber ao certo que capricho ou acidente determinou os caminhos travessos que
os escrevente percorre, bem sabendo que, de heróis, está a literatura cheia (e
a história) e a vida é caprichosa e complicada e nem sempre o ontem bate certo
com o hoje, nem o amanhã são favas contadas, nem todas as manhãs serão “amanhãs que cantam” …
Dêmos, portanto, corda aos
sapatos e digamos claro àquilo a que viemos, pois Manuel Maria tem urgência e o
sabemos empolgado com o seu projeto “de
uma arquitetura para o povo” agora
que com a Revolução de Abril vencedora, todos
os Sonhos são possíveis, sabendo nós que José Augusto
Esquerdino fora recentemente eleito, em grandes plenários, por braço no ar,
Presidente de um grande município da área metropolitana de Lisboa e que, por
entre as múltiplas tarefas, Manuel Maria, com uma urgência invulgar, evocava a
presença de uma velha amiga no círculo do Presidente e a si próprio se
interrogava “o
que faria ali a Cléo”…
Havemos se sabê-lo, quando
a hora chegar e o motivo for propício!
Manuel Veiga
Ah se as palavras fossem cousas vivas
E não apenas símbolos descarnados
Na aventura da língua – gramática apenas!...
Se fossem, grafismos e mais nada.
Com que amassamos a Língua
Ou fossem, pequenos mitos capturados
Urdindo sons e ineptos silêncios
Em busca do Sentido
E a ordem do Mundo…
Ah se as palavras fossem cântico
E água límpida nas nascentes
E sempre anunciassem o devir
No voo descuidado dos pássaros
Não haveriam muros, nem vidas emparedadas
Nem narrativas tatuadas na memória
Onde ardemos – fogos fátuos
Sem sem história ou glória…
Manuel Veiga
Como se constrói um homem? José
Augusto Esquerdino correu como um gamo, longe, cada vez mais longe, correu por
montes e vales, correu longe, cada vez mais longe, de norte para sul, sem
destino à vista e sem saber por onde ir, nem azimute que o guiasse. Corria para
fugir dele próprio, corria para fugir da vergonha sua e a vergonha do seu pai,
vencido e humilhado, submisso e manso, como um cordeiro pascal, com as suas
longas mãos de trabalho estendidas e abertas em direção a Federico Amásio, a pedir perdão,“de joelhos Esquerdo, que perdão se pede de
joelhos”. A soberba do senhor da Casa Grande e aquela
exibição pública de poder, aquelas palavras atiradas com desprezo sobre um
homem vencido, doem como ferro em brasa e ficam gravadas no espírito de adolescente, por toda a vida. Por isso, fugia, José Augusto Esquerdino fugia para nunca mais
voltar, fugia contra a infâmia fugia contra o ódio acumulado, fugia contra a
vergonha infringida por seu pai, seu herói e seu mestre e sua vergonha que se
colava na pele e que sacudia como peçonha. Água alguma pode lavar a honra
perdida de um homem, nem saciar sede de justiça, nem o ódio de um filho quando
assiste à glorificação da prepotência e vê a ignomínia cair sobre a cabeça do
seu próprio pai.
Correu, pois José Augusto Esquerdino
por montes e vales, andou por quaisquer provações, alimentando-se do que a
natureza lhe dava, aqui eu ali caçando numa armadilha um coelho, ou alguma
perdiz com que, por vezes, fazia lauto banquete, ou então quando já não podia resistir
â fome entrava nalgum povoado e a troco de qualquer serviço, aceitava então uma malga de caldo ou um naco de pão e seguia o seu caminho, sem parar nunca, pois
jurara a si próprio que daí em diante, nunca nele alguém mandaria e
fixar-se em algum lugar, seria o primeiro passo para a sua capitulação.
Um homem, porém, pode passar dias e
meses fugindo de si ou dos outros, mas não pode passar a vida inteira fugindo. De
tal forma, que José Augusto Esquerdino começava, não a sentir saudades, porém,
a compreender que fugir por montes e vales, sem saber para onde ir, fazia dele
não um homem, mas um bicho ou um animal selvagem. É que um homem quando pensa,
tira por vezes conclusões inesperadas. Teve tempo, assim, José Augusto Esquerdino, a percorrer montes e vales, para pensar a sua solidão e perceber que correr sem
destino era uma forma de desistência da vida! Mas para onde iria? Não tinha
parente a quem recorrer, que lhe pudesse dar a mão e compreender o drama que
arrastava consigo. E sentia-se descorçoado com rumo das conclusões.
O curso das coisas e dos acontecimentos, porém, revela-se, por vezes e por caminhos inesperados e a solução que buscamos encontra-se tantas vezes, ali, à mão de semear, sem disso darmos conta. Bastas vezes o leve adejar do acaso, é o bastante para mudar destino de cada um. Estava pois o jovem José Augusto nas suas lucubrações filosóficas, quando ao virar de uma curva do caminho, que desembocava numa encosta bastante íngreme, se deu conta, de um homem alguns passos adiante, apeado, que levava a bicicleta pela mão. o que o jovem achou um pouco descabido, já que, apesar de tudo, a inclinação da encosta não era nada do outro mundo, isto é, nada que não pudesse ser vencido em cima da bicicleta.
O jovem José Augusto apressou o
passo, procurando alcançar o homem da bicicleta, não que lhe importasse muito
se o homem ia em cima da bicicleta ou se a carregava, mas a verdade é que um
homem, se não pode fugir toda a vida, muito menos, pode viver sem falar e ouvir
no som da sua voz, em confronto ou em comunhão com a fala de outros homens. Assim,
José Augusto apressou o passo e, quando alcançou o homem da bicicleta, depois
de uma breve saudação, mais para meter conversa do que qualquer outra razão,
atirou lhe: “então
vossemecê, em vez de ir a cavalo, leva o burro pela mão?...” O homem da bicicleta fixou o rapaz uns segundos com
olhar penetrante, que impressionou o jovem e o deixou pouco â vontade, com
aquele olhar de por um homem tremer, como se estivesse a ler-lhe a alma e
adivinhar-lhe os segredos mais íntimos: “e
tu, meu rapaz o que levas nas mãos? certamente o mesmo que tens nas algibeiras
– isto é, nada!...” E, prosseguiu o homem
da bicicleta sem esperar pela resposta:
“atreveste a negar? ora mostra cá essas algibeiras!...” O rapaz sentia-se como um passarinho indefeso, perante a sedução de uma serpente antes de tragar a presam, ele José Augusto a cair na esparrela
com a lábia do desconhecido e, sem hesitar um segundo sequer, virou o forro dos bolsos e falou, exorcizando
a sua perturbação “como é
que vossemecê adivinhou que trazia os bolsos vazios e a barriga a dar horas? querem
ver que me apareceu um bruxo atravessado no meu caminho” “E não o digas a
brincar, meu rapaz! sei coisas que nem te passam pela cabeça – replicou o homem da bicicleta – e quanto a tua fome basta olhar o teu
corpo escanzelado, como se fosses um cão vadio”...
O rapaz embatucou! Esteve quase para reagir com acrimónia às palavras do homem da bicicleta, pois ninguém gosta de ser comparado a um cão e, muito menos, a um cão vadio, mas calou-se, forçado por uma voz interior que o empurrava, pois não queria ser ele a estragar o fio da conversa, nem a companhia, que apesar do tom um pouco agressivo, estavam a tornarem-se agradáveis.
Permaneceram, pois, assim em silêncio, por longos minutos, o
rapaz e o homem da bicicleta, espiando-se um ao outro e foi um rapaz quem
retomou a conversa:-“Para onde
é que vossemecê vai assim com a bicicleta pela mão? Não era melhor montar nela
e chegaria mais depressa ao seu destino, seja ele qual for? E o homem da bicicleta, no mesmo tom galhofeiro: “estás a invejar o transporte ou pretendes
saber para onde vou?... mas olha que a bicicleta tem um uma roda furada e com
ela neste estado levarei dia e dias a chegar Lisboa. Sabes, porventura, remedar um furo a
roda da bicicleta?
“Não sei
não, senhor – respondeu rapaz. E num
tom de voz que mal se ouvia, como que envergonhado da sua ignorância– e nem sequer sei onde fica Lisboa. “E gostavas de conhecer, meu rapaz? Lisboa é
a capital do país...” voltou à carga, sedutor,
o homem da bicicleta. O rapaz encolheu os ombros, bem sabendo que Lisboa não está
ao seu alcance e nos seus planos: “E que
iria eu a fazer para Lisboa? Sim, que faria um cão vadio em Lisboa? – ripostou o rapaz, com uma certa ironia amarga e
uma lágrima de impotência e raiva, a deslizar por seu rosto de adolescente. O
homem da bicicleta apiedou-se do rapaz e para disfarçar a sua própria comoção e
animar o jovem “sabes que
mais, ainda não sei o teu nome, será que tens nome? Então diz-me “como te
chamas” ? acrescentou o homem da bicicleta, com um sorriso franco
e acolhedor. “O meu
nome José Augusto e não lhe digo meu apelido porque eu herdei-o do meu pai de quem
rasguei todos os laços, pois ele é um
froixo que ajoelhou, pedindo perdão ao seu patrão e nenhum homem deve vergar-se
perante outro homem”. E o homem da bicicleta
surpreendido com inesperada confissão, “vês,
deste-me teu nome e falaste-me a tua tua vida – agora somos amigos,
não te parece? eu tenho
vários nomes, mas para ti serei Álvaro, Álvaro apenas. Agora vamos comer uma bucha,
que vem ali naquele bornal e se verá que faremos em seguida”.
O rapaz seguia com atenção todos os
gestos do homem da bicicleta, não apenas por curiosidade, mas sobretudo em
virtude da forte personalidade que dele emanava, um magnetismo tão poderoso que até parecia ter-se apossado da
sua alma do rapaz. Como um sismógrafo o rapaz anotava, sem dar por conta, todos os
registos dos humores do homem da bicicleta, que naquele momento, parecia, pela
expressão do seu rosto, denotar alguns sinais de preocupação e, por isso, não
se conteve “está
chateado comigo? se calhar abusei da sua
se solidariedade e comi como um alarve” . E o
homem da bicicleta “que nada
rapaz! são pensamentos meus, que mesmo que te pudesse falar deles, a conversa
levar-nos-ia muito longe e seria inútil para ti.” E acrescentou com um sorriso rasgado, “alea jacta est ” – disse o homem da bicicleta numa língua de trapos e
continuou. ignorando o rapaz, falando apenas consigo próprio: "o risco não é grande! E o rapaz mostra ter fibra! Com o acompanhamento certo é bem possível “fazer-se um… Homem!” E, então, declara, categórico: “vais comigo para
Lisboa, está decidido... não é isso que tu queres?”...
A necessidade apura o engenho,
costuma dizer-se. Sem dinheiro, nem quaisquer outros meios, de que se
pudessem valer, o rapaz e o homem da homem bicicleta viajaram como “clandestinos”,
a partir da Estação Velha, em Coimbra. Um comprido comboio de mercadorias de vagões
abertos, calhou mesmo para, sem grande dificuldade, se instalarem na última
carruagem e ficarem abrigados com o oleado que cobria os sacos de cimento, que a
carruagem transportava.
Apearam-se em Braço de Prata, às
portas de Lisboa. O homem da bicicleta disse então para o companheiro “dá cá um abraço!...aqui separáramo-nos! E
não ficas com essa cara de enterro, pois em breve alguém te virá buscar”. E, sem mais delongas, o homem a bicicleta sumiram-se
por entre uns canaviais e a escuridão da noite...
José Augusto ficou sozinho. Ao longe,
as luzes da cidade brilhavam como pirilampos na noite escura em Terras do Demo para onde seu espírito fugia, assim abandonado e
perdido E quase lamentou a sua partida...
Porém, de repente, sente alguém a bater-lhe no ombro “chamas-te José Augusto, não é verdade”?... Vamos sair daqui, imediatamente... – ” E um jovem, praticamente a sua idade, meteu o seu braço no dele e prosseguiu como se falasse sozinho “amanhã tratamos de te arranjar um emprego; hoje estás por ninha conta, amanhã trataremos de te arranjar empreso, José Augusto acabara de passar o seu Rubicão!
Manuel Veiga
vão secos e dolentemente atonais os rios
da minha infância – e eu com eles!
fio de água e vara do tempo
a marcar as horas
pelo ponteiro das sombras
na espera que a noite tombe
e que venha o canto da ave
que se solta sempre
ao anoitecer…
sábios os que suavemente
adormecem com a alegria
dos faustos dias
e das rosas
que pouco vivem
mas são eternas …
Manuel Veiga
Cada dia, meu poema e cada letra a transfiguração de meus passos e a devoção de meus afectos … …………………. qual néctar no íntimo ...