sábado, março 16, 2024

Sem Pena ou Magoa


 

Lonjuras e murmúrios de água

E o cântico que se escoa pelo vale

E se prolonga no eco evanescente…  

 

Vens assim inesperada melodia

Cascata de sorrisos

E meus olhos

Encantamento …

 

Apenas tu e a paisagem

E a vida a fluir como um rio

Sem pena

Ou mágoa

 

E a orgia da cor

A bailar em cada gesto

De colher-te

Vida em flor…

 

Manuel Veiga

 

 

quarta-feira, fevereiro 28, 2024

TECER HARMONIAS



Visto-te de palavras. Dúcteis.

Que derramadas sobre a pele

Se incendeiam…

E os lábios madura polpa

A derreterm-se na boca e na língua 

Balsâmicas salivas

A fervilharem

Eufóricas pelo

Corpo…

E a tecerem harmonias

E murmúrios

Na dança

Das bocas…


Manuel Veiga


quarta-feira, fevereiro 14, 2024

Tempo Breve


Desalinhada flor assaz perdida

Em busca das cores que melhor a digam

E em demiúrgica ousadia

O poeta a soletrar a tela

E a derramar-se

Em avidez lume

E a colorir de azul

O colapso das formas

E a inaugurar as pétalas

Ora perfumadas

E luz perene.

E o cântico dos cânticos

E a murmurar urgências

E a recolher ecos

De um tempo

Breve …

 

Manuel Veiga

 

 

sexta-feira, fevereiro 02, 2024

A Carta Que Nunca Te Escreverei - FINAL

Manuel Maria e a Cléo mantiveram durante anos uma relação amorosa livre e solta, liberta compromissos e de lugares comuns. A Cléo, vivia a maior parte do tempo, em França, onde como se sabe tinha uma forte ligação ao cinema. Por seu turno, Manuel Maria havia entretanto, vendido alguns propriedades, em terras do Demo que lhe caíram na herança de Frederico Amásio e lhe permitiram organizar o seu atelier de arquitetura e comprar uma agradável vivenda na linha do Estoril, onde passou a residir com a mãe, a crepitosa Violante, depois de Camillinha ter professado no Convento das Carmelitas, o  espaço residente da Santa Irmã Lúcia. Desta forma, ao longo dos anos,  Manuel Maria e a Cléo, quando sentiam desejo mais intenso um do outro, metiam-se no avião e ei-los Em Paris ou em Lisboa, revivendo a sua mútua paixão, como se fosse a primeira vez, sem cansaços nem rotinas, depois quando a necessidade mútua de afeto os acicatava, regressavam aos braços um do outro, como eternos namorado

Etretanto, no país as coisas iam andando, cada vez mais às arrecuas. O País conservador ganhou as eleições, os militares entregaram o poder aos políeos e regressaram aos quartéis, os capitalistas que abandonaram País e o deixaram descapitalizado, foram chamados de novo  e  foram-lhe entregues as empresas e  foram-lhe entregues os bancos que haviam nacionalizados, o centrãoso político  ganhava as eleições “agora viras tu, logo viro eu “,  e o “Portugal na CEE” e a EuropaConnosco “, e o  Pelotão da Frente” e a “fava que nos calha” e seus longos mandatos e os partidos do centrão a alternar continuamente e os milhões da Europa, entregues sempre aos mesmos e “as autoestradas a correr e os meninos aprender”  e o “chico espertismo” e a corrupção e o fartar vilanagem e a União Europeia e cimeira de Lisboa, -“porreiro, pá!”, e a criação do euro e o encerrar do ciclo e Portugal na União Europeia e os países ricos do norte a mandarem nos  países calaceiros do sul e a bancarrota e a crise económica e apertar do cinto e os pobres, cada vez mais pobres e os ricos,  cada vez mais ricos e o Tempo esgotar -se num ai que não volta para trás!a 

E no escoar deste tempo Flávia nasceu, cresceu e fez-se mulher e exímia pianista, com umas longas mãos, longas femininas mãos. elegantes e dedos finos, tão longas mãos, como nunca outras assim longas, Manuel Maria vira, que iam do Piano aos Céus, numa   Sinfonia Tchaikovsky ou numa Sonata de Bach.

Num dia primaveril e quente, Manuel Maria convidou Flávia a almoçarem no Guincho. Depois da refeição, Flávia desceu à praia deserta. Manuel Maria uns passos atrás, seguia-a. Flávia soltou os cabelos em cascata, sacudiu a cabeça fulva e rebelde e seguiu pela areia, acentuado o donaire. A maresia inundava as narinas, O sol, ainda quente, queimava os poros. Uns passos atrás Manuel Maria seguia-a, sempre. Dominando o impulso. Serenando o sangue. Tecendo caprichos no bambolear das ancas da rapariga.

-“Gstava de te saber nua!..” - disse, num murmúrio, saído do âmago do desejo.E, sem nada o fazer prever,, Flávia deixou cair as sandálias, soltou as  alças e a nudez soberba de seu corpo explodiu na serenidade plena da tarde. Um homem perplexo, uma mulher nua e a paisagem, apenas. Sem outra glória, nem crime. Apenas o crepitar do momento único. Passos adiante, oculta por uma rocha milenar, estendida no acolchoado de areia fina, ali estava Flávia, expectante, em sua impudicícia.

 “Ofereço-te o livro do meu corpo, saberás ler todas as suas letras? “... – exclamou, em convite sorridente.

À distância um realizador feliz, como se Eric Rommer fora, filmava um homem e uma mulher, estendidos na areia, tocando o último beijo do filme.

E o “escrevente”, que é um homem honrado, mas não é de intrigas, pergunta-se “o que faria ali Cléo?”…

 

Manuel Veiga

 

quinta-feira, fevereiro 01, 2024

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI

 

Entretanto, Manuel Maria, era mais uma vez chamado a Terras do  Demo. Camilinha ficara viúva, por morte do senhor da Casa Grande. Frederico Amásio, em circunstâncias trágicas, nas quais alguns viam castigo divino e outros consideravam como obra do Demo, sendo, porventura, que ambas as suspeitas teriam razão, pois que a soberba e a maldade do defunto e a sua riqueza material bem mereceriam a atenção dos dois  Senhores do  Universo. Seja como for, não é isso que agora interessa, mas antes assinalar que Manuel Maria, por virtude do funeral, foi constrangido a não poder festejar, como era seu ardente  desejo, a Revolução de 25 de Abril, pois que o Senhor da Casa Grande, reacionário como era, foi atirado às  chamas do Inferno, no exacto dia em que nas ruas de Lisboa eram povoadas de um alvoroço festivo e uma profusão de abraços e cravos vermelhos, que  punham o coração dos homens a baterem em uníssono por um Futuro de Liberdade e de emancipação. Social. Foi o “dia claro e limpo” há tanto tempo almejado, como escreveu uma grande Senhora e grande opoeta de Língua  Portuguesa

Como é natural, na ocasião Manuel Maria sentiu.se frustrado e infeliz por não participar na Revolução “ao vivo”, mas agora olha o assunto com bonomia e afirma, com ironia ,que Senhor da Casa Grande, mesmo depois da morte, não se dispensou de o afrontar e desconsiderar pessoalmente e às suas convicções 

Era, pois, outro clima e a disposição de Manuel Maria nesta segunda viagem, em escassos meses, a Terras do  Demo, por insistência  Camilinha. Era uma viagem rija, feita durante a noite, com centenas quilómetros, num comboio ronceiro ”pouca terrá,  pouca terra”, com poucos rendidos ao cansaço, se insalavam como podiam para obterem  o melhor conforto possível.

Também Manuel Maria  depois de um sono mal dormido sobre um banco de madeira, com o casaco a servir de travesseiro,  abriu a janela para melhor sorver a fragância da manhã e o seu espírito soltou-se, para reviver, os últimos factos ocorridos, com José Augusto a demitir-se de Presidente da Comissão Administrativa de um grande Municipio da Área Metropolitana de Lisboa , com Manuel Maria a argumentar que era de todo injustificada a demissão, tanto mais que fora eleito pela população e não apenas nomeado pelo Governo Provisório e, desta forma, havia uma injustificada quebra de confiança com a população, que via no Presidente o companheiro a quem podiam recorrer na realização das múltiplas tarefas para melhorar as condições de vida, nos seus diversos aspetos, seja o saneamento básico, sejam, a construção de mercados  ou escolas, ou lares da Terceira Idade O seu próprio pojecto de uma “Aquitectura para o Povo  se mão houver uma mão forte que o saiba impor á burocracia da Administração Central, corria o risco de  se afundar.

Também a Cléo utilizou todos os argumentos para evitar a demissão  José Augusto recuar na sua demissão de Presidente da Coma demissãoissão Administrativa, mas as suas palavras tiveram o efeito de o irritar ainda mais , ao apresentar o argumento que ela julgava decisivo, evocando acontecimentos passados, em Paris. que ambos haviam protagonizado, em que ele, José Augusto  foi exemplo  de coragem e de abnegação e tais acontecimento eram manchadas agora pela inesperada e cobarde desta “fuga”, deixando um vazio   insanável Presidência  do Município “ Que é feito daquele homem arrojado, valente e carinhoso que tive então o gosto de conhecer e ajudar  na sua missão revolucionária?”, inquiriu a Cléo com veemência. E José Augusto com o sangue ferver de raiva, mas mantendo a contenção que o caracterizavam respondeu, calmamente “cala-te, menina.! Esse assunto é perigoso e ninguém te autorizou a evocar um assunto que não diz apenas a ti respeito. Aliás é em nome desses valores princípios constantes dessa ação revolucionária em Paris, que me obriga agora a voltar a clandestinidade, que é o que se espera de um revolucionário. Eu não sirvo para ajoelhar perante a burguesia e a ilusão da liberdade capitalista. E apontando a porta acrescentou: “agora saiam por favor! Tenho que resolver alguns assuntos que deixaram de ser da vossa conta.

Ambos saíram do gabinete, tristes e frustrados, na convicção de que jamais a amizade que os unia a José Augusto se quebrar para sempre. Manuel Maria decidiu então que era um momento oportuno e satisfazer a vontade da Camillinha que insistia na necessidade da sua presença em Terras do Demo para resolver alguns problemas decorrentes do  processo inventário sequência na morte do senhor da Casa Grande Frederico Amásio. Deixar Lisboa pôr uns tempo, seria a melhor forma de esquecer José Augusto e a sua inconsequente decisão de passar à clandestinidade para continuar a luta, agora armada, contra o considerava serem os inimigos da pátria e os traidores que não souberam que dar corpo a revolução, colocando ao serviço da classe operária.

Gostaria Manuel Maria de levar consigo a Cléo  para conhecer a Terra que de nascer e duas Mulheres que o amavam como se filho de ambas fosse. A Cléo mostrou-se entusiasmada com a proposta mas evocando razões de contactos com Paris relativo à sua carreira no cinema argumentou não poder dar-lhe essa alegria, mas prometeu que falariam todos os dias ao telefone e ela o poria ao corrente dos acontecimentos político e de tudo o que se passasse digno de menção.

Manuel Maria não tinha a certeza se aquele novo regresso a Casa Grande lhe trazia prazer ou incómodo, pois se, por um lado, gostava de ver as duas Mulheres que o amavam como se filho de ambas fosse e, por outro lado, antecipava aborrecimentos, em que teria que remoer a sua vida passada que lhe traria uma boa dose de sofrimento. Aliás, toda essa trapalhada jurídica decorrente do reconhecimento de paternidade e o subsequente processo de inventario seriam inevitáveis. Havia pois que por boa cara e seguir em frente! Aproveitaria, porém, para pôr as su as leituras em dia e em ordem as suas emoções e, talvez, quem sabe? apesar da recusa inicial se não poderia convencer a Cléo, uma citadina cosmopolita ,a passar uns dias naquele “santuário,” bucólico e carregado de memórias. A Cléo porém, reafirmou a sua impossibilidade, de nesta ocasião, oder viajar, gostaria muito conhecer os locais de infância do seu querido anigo Manuel Maria.  Talvez algum dia… em tempo menos carregado de emoções e acontecimentos. 

Enfim, apesar de tudo, bem poderia Manuel Maria considerar-se satisfeito, pois não só é Cléo telefonar todos os dias como a Camilinha havia já dado sequência a uma série papelada que as conservatórias requeriam e, com tal celeridade, que muitos documentos esperavam apenas assinatura de Manuel Maria para produzir efeitos jurídicos, designadamente entrar na posse da herança. A Camilinha tinha pressa ver este assunto arrumado, pois como, logo à chegada de Manuel Maria, havia dado a conhecer, que era seu desejo abandonar o mundo e fechar-se no convento das Carmelitas ,em Coimbra, onde passará o resto dos seus dias em clausura e rezar pelos seus pecados e os pecados do Mundo, seguindo o exemplo da Santa Irmã Lúcia, mas não partirá sem antes ficar certaa de queos bens que  entram em seu património, por morte do marido, serao entregues à Igreja, depois depois de deduzido o legado que fazia questão de entregar a Violante, sua aia e sua amiga de toda vida e a mãe de sangue de Manuel Maria, filho amava como se seu filho fosse, mas foi por vontade de Deus maldade dos homens que ela nunca pode gerar e, assim, para Manuel Maria, seu adorado afilhado, para ele iriam suas orações e a Graça de Divina e a quota-parte da herança paterna que, como filho, lhe pertence, depois de a paternidade ser reconhecida pelas leis do País.

Andava pois Manuel Maria nesta azáfama de conquistar um nome com vários apelidos , ele que sempre se reconheceu como Manuel Maria nome de batismo, com que foi ungido, quase em segredo virou na vítima pia batismal da Igreja Matriz. Filho ilegítimo de uma criada de servir vir nunca Manuel Maria quis saber de sua paternidade e dos títulos e o senhor Casa Grande que ostentava. Porém virgula filhos rural por sua mãe cuja maternidade era inquestionável e pela sua madrinha a esposa rejeitada de Federica Amásio e, sendo tais factos do domínio Público, não teve dúvidas a Cenatória do Registo Civil em reconher  Manuel Maria como filho do do senhor da Casa Grande, mas o obrigria a usar títulos e nomes, que o seu progenitor exibia E, assim, e se Manuel Maria adotou apenas o apelido Silvestre que adicionou ao seu nome de batismo E em consequência, o nome de Manuel MariaSilvestre passou a vigorar no  registo civil para todos os efeitos legais

Estava, pois, Manuel Maria a procurar ajustar-se ao novo apelido e as consequências que daí decorriam para o seu futuro mais ou menos imediato, quando insistente o telefone toca. Do outro lado da linha, a voz de Cléo dispara: “morreu o José Augusto! … “Manuel Maria ficou sem pinga de sangue e, incrédulo, insistiu com a amiga, em clara clara aflição “O que estás a dizer, Cléo? Morreu quem? O José Augusto, como? Mataram-no?.. Ou estarás a brincar? E a Cléo contou então o que sabia e o que se dizia. E o que corria era que José Augusto depois da sua demissão organizou uma célula clandestina, destinada a continuar, por ação direta, a luta contra capitalismo e os vencedores do 25 de novembro e estaria a preparar uma bomba artesanal no sentido de destruir a sede de uma grande multinacional. Por distração ou azar a verdade é que a bomba rebentou nas mãos de José  Augusto e lhe  esfacelou o rosto e o peito, chegando e hospital já morto. Há quem diga, porém, que pelo contrário foi ele próprio o alvo do atentado por parte d,e alguém ou organização da direita, que buscava vingança pela ação revolucionária de José Augusto. Há ainda que sustente que foi o próprio José Augusto que se suicidou-

Seja como for, o funeral está previsto que  se realize a partir Deus 17 horas.  esclareceu a Cléo que continuou. “sei quanto o apreciavas e da vossa mútua e por isso vim a correa dar-te a dolorosa notícia. Virás, não é verdade? Sim, sem a menor dúvida, estarei no funeral, de preferência contigo!” e. de imdiato combinaram encontrarem-se no cemitério.

E assim aconteceu. A Cléo foi amorosa e esfusiante. Meteu o seu braço  no braço de Manuel Maria assim seguiram o cortejo fúnebre, com a sua linda cabeleira de Cléo a derramar-se no ombro do rapaz!...Logo que lhes foi possível libertarem-se de amigos e conhecidos e das conversas  de ocasião,  abandonaram  o cemitério  e seguiram para o apartamento da Cléo, saciaram a sede de seus corpos, pagãos e puros, celebrando a vida sobre a morte, numa catarse libertadora que os devolveu a sua inocência primordial.

Inesperadamente, rompendo um breve silêncio , a Cléo, debruçando-se sobre o rosto de Manuel Maria e mergulhando nos seus olhos “sei que me amas, mas vamos estar uns tempos sem nos podermos ver – parto amanhã para Paris, onde  me esperam dias de trabalho cansativo na rodagem de um novo filme”.

"Que posso eu fazer, sem a tua camorosa presença? Apenas visitar-te, quando as saudades de avolumarem”… declarou Manuel Maria num sorriso gaiato e resignad…

No dia seguinte, a Cléo partiu para Paris. Levava Flávia no  ventre.

 

Manuel Veiga

Antes dos Nomes

 

Ao princípio, antes dos nomes,

Quando todas as coisas fluíam na inocência do porvir

Acordou, na margem, aos olhos do poeta,

Uma centelha (ou uma lágrima) fulgurante

Que a si própria se ergueu e se ungiu

Como Prodígio. E Mensageira.

 

E então todo o Caos se (des)ordenou.

E todas as cores e todos os sons.

E todas as formas. E todas as fórmulas.

E todos os ritos se abriram.

 

E todos barros...

 

E todas as sarças foram chama a arder na boca

De todas as palavras.

 

Manuel Veiga

terça-feira, janeiro 23, 2024

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI


                

                                                                        

José Augusto ficou seriamente afetado como o curso da revolução, após o 25 de novembro. Educado no interior da classe operária no combate heroico contra o fascismo e acreditando, convictamente, no socialismo e na revolução mundial, que mais tarde ou mais cedo, acabaria por se implantar em todos os cantos da Terra e, embora apostado em levar a bom termo as trefas que, naquele tempo literário fora incumbido, como presidente da Comissão Administrativa de um grande Município da Área Metropolitana de Lisboa, embora contra sua vontade, pois era um homem de ação e não de gabinete, não se conformava com o rumo que as coisas tomaram depois de 25 de Novembro, companheiros seus perseguidos e presos e o processo de recuperação capitalista a cilindrar as conquistas da revolução, designadamente, a Reforma Agrária, tudo isto era para ele, José Augusto Esquerdino um martírio e, aceitar tal rumo. era quase uma dupla morte cívica. Pois não fora ele quem virou costas à Terra que o viu nascer, algures em Terras do Demo.  onde nunca mais voltou e abjurou o seu próprio pai porque, nunca um homem deve ajoelhar perante outro homem e não aguentou a vergonha de ver seu próprio Pai, seu herói e seu mestre, ajoelhado perante homem soberbo que, do alto da sua soberba ordenava, “de joelhos, Zé Esquerdo, que perdão pede-se de joelhos”, mas pedir perdão de quê, se o desgraçado moía-se de trabalho para matar a fome.? E correu por montes e vales, dia e noite, noite e dia sem ao menos saber qual o seu destino, mas fugindo, correndo sempre, contra a vergonha e o opróbrio de ver seu pai ajoelhado, a pedir perdão estendendo suas longas mãos, tão enormes que iam da Terra ao Céu, essas longas mãos, mãos de trabalho que ele, José Augusto, lembrava em súplica, erguidas perante um homem todo poderoso e impante de soberba e, por isso, fugia, correndo, correndo sempre, evitando as povoações e as pessoas, ou qualquer ser vivo até encontrar “o homem da bicicleta”, de olhar tão intenso que atravessava uma pessoa. E que partilhou com ele o seu pão e bebeu do seu cantil e com ele seguiu, clandestino, num comboio de mercadorias para Lisboa e o entregou aos seus camaradas, que passaram a ser seus camaradas e seu amigos e que o ajudaram a encontrar emprego e habitação e lhe deram uma profissão e o iniciaram na luta política e reconheceram a sua dedicação e a sua bravura e, quando chegou o tempo certo o enviaram para um país socialista, onde em segurança, adquiriu conhecimentos, que doutra forma não teria e cresceu e se fez homem e se cultivou, “aprendendo, aprendendo, aprendendo sempre…” e quando preparado para “revolucionário a tempo inteiro” ao serviço da Revolução mundial, o devolveram ao seu País e aos seus camaradas portugueses que travava aguerrida luta contra o fascismo e, com eles haveria de continuar até sempre pela conquista da democracia e do socialismo. E a sua bravura e sentido de responsabilidade convenceram seus camaradas, a elevar o nível de novas e mais perigosas missões na luta clandestina. E, então, organizou manifestações e comícios e a sua palavra fluente e calorosa, que arrebatava quem o escutava, determinaram a sua participação no arremedo de eleições  que o fascismo promovia e, por essas e outras foi perseguido e preso e torturado pela polícia política e por violentas e insuportáveis que fossem as torturas, nunca sua boca se abriu, nem renegou aos seus ideais e, quando a polícia política, depois de um interrogatório, que o levou à beira da morte, numa crueldade sem nome, o deixou um farrapo humano, nu e seviciado, à porta do hospital e mesmo no maior  sofrimento, nunca traiu os seus camaradas ou renegou aos seus ideais; pelo contrário, cada vez que era preso e maiores as violências, maior era a sua determinação na luta contra o capitalismo explorador e, se fosse necessário, estaria sempre pronto para, em qualquer parte do Mundo, combater os inimigos do povo e da classe  operária. Pois não foi ele, José Augusto Esquerdino, quem, a pedido dos camaradas franceses e, perante tibieza de alguns, se ofereceu para ir a França “limpar o sebo” a um general pertencente à OAS, por ocasião da Independência da Argélia. E se recorda este facto não é para se vangloriar, pois não é um criminoso sem princípios, nem sequer um “matador” contratado, mas um homem livre, que se for necessário sujar as mãos pelas causas em que acredita, pois considera ser esse o seu dever não hesitaria em entrar em acção, pelos meios mais certeiros, pois que quando os valores são imperativos, conta sobretudo, a convicção de que a nossa ação é um contributo para  projeto de sociedade que acabe com a exploração do homem pelo homem e o liberte, finalmente, de todas as amarras da Natureza. Estou grato aos camaradas franceses pela rigorosa preparação, que minimizou os perigos de insucesso da 0peração e em especial reconhecido à jovem que me acompanhou nessa tarefa de execução justiceira e destacar o papel fundamental da jovem luso-francesa que, não apenas se expos fisicamente, acompanhando-me , e reconhecendo a vítima, como contribuiu decisivamente para que mesma tarde estivessem em segurança de novo em Lisboa, guiando-me por vielas e travessas, abreviando o itinerário para o aeroporto, depois do tiro fatal que liquidou o torcionário General da OAS, um bárbaro com uma grande lista dehediondos contra as populações da Argélia. 

Não, não se conformava, José Augusto Esquerdino com a evolução das coisas após o 25 de novembro. Outros, que não ele, poderiam ficar satisfeito com uma democracia burguesa, invólucro sedutor, com que o capitalismo justifica a sua existência e  mistifica a noção de  o, sendo certo, que a liberdade e a igualdade são irmãs siamesas, no conceito dos propios teóricos da revolução burguesa. Cedo, porém, a igualdade foi sacrificada, em nome da Propriedade. pois que, em rigor, a liberdade capitalista, não passa da liberdade de exploração do trabalho, daqueles que, na base da pirâmide social. nada têm, nem nada podem, pagando caro a sua ilusão da liberdade política. Ao fim e na cabo, como diria, num tempo histórico outro, posterior ao tempo literário desta narrativa redonda, como diria, pois, anos mais tarde, um grande escritor português e político atento e prémio Nobel de literatura, a liberdade é como a santa nos altares., todos a veneram, mas a santa permanece muda …

Que não contassem, pois, com ele para este jogo, à partida viciado, bem como para ficar sereno, conformado e quieto com um arremedo de democracia e assistir impávido à recuperação capitalista e reconstituição dos monopólios e das elites financeiras que foram o sustentáculo do regime fascista. Se ainda que em sonhos, José Augusto Esquerdino pudesse aceitar tal estado de coisas, significava que se tinha rendido, quem sabe se ajoelhado, perante a soberba exploradora do capital e, então, a sua vida, desde a abjuração de seu pai, seu herói e seu mestre, e o abandono da terra que o viu nascer para nunca mais voltar porque nenhum homem deve mandar noutro homem e muito menos ajoelhar ,e esse acto de rebelião foi o acto  fundador da sua personalidade e de tudo o que se seguiu assentou sua vida, e nem as lutas politicas. nem  as prisões ,nem as tortonde uras, nem as sevícias da polícia política, nem a sua entrega, sem  reservas à causa do socialismo e da Revolução Mundial,  nem todas as fraternas amizades, nem toda a  camaradagem, nem  todo o amor por uma mulher, nem toda a sua vida faria sentido e não passaria de um grande equivoco.

Visivelmente, não  gostava José Augusto  do rumo das coisas, após a noite de 25 de novembro!...  Mas não era homem para abandonar uma causa derrotado e sem ânimo. Demitiu-se das funções que desempenhava que o Presidente da comissão administrativa de um município da área metropolitana de Lisboa, depois de dar conhecimento aos seus colaboradores mais próximos entre os quais se contavam Manuel Maria e a Cléo. Ambos argumentaram como podiam e sabiam na vã tentativa de o deter numa decisradical, lembrando-lhe o seu compromisso com o povo do concelho, pois que as as funções que desempenhava, não lhe pertenciam, mas sim ao Povo do Concelho que em amplos plenários o elegeram, em votação de braço no ar, e com a sua demissão iria desiludir muita gente, que contava com a sua acção de Presidente do Municipio para a construção de uma vida melhor. Nada o demoveu, afirmando reiteradamente que o primeiro dever que tinha era consigo próprio e toda a sua vida perderia sentido se pactuasse com a nova realidade politica, após a noite de 25 de Novembro e não se colocasse ao serviço do verdadeiro socialismo e da revolução mundial.

E assim foi!... Em dissidência com os camaradas de sempre, juntou-se a um pequeno grupo de radicais que defendiam ação direta que abalassem as estruturas do capitalismo e dessem visualidade aos interesses da classe operária.

 

Manuel Veiga

 

                                                   


NO SOPRO DE MEUS DEDOS...


No sopro de meus dedos todas as glórias

(Que nestas letras se misturam deuses e criaturas)

Barro que tem reflexo de alturas

Onde germina o Corpo, o Tempo e o Modo.

 

Infinito-Presente que de tão breve é já Futuro.

 

Nada de novo no horizonte da palavra que respiro

Pois nada de mim se arrasta neste parto.

Sou além de mim – sou queda e brado!

Partitura que por capricho ou ledo engano

Na música se esvai correndo como o pano

Que aberto se fecha sobre palco festivo...

 

Promessa mil vezes adiada.

Não me lamentem porém os que de mim colhem

A flor de meus desejos.

 

Que no bosque esperançoso em que incauto teimo

Sou vereda e água – e a palavra sussurrada –

E o vento em cópula de Outono

Sobre as árvores...

 

Manuel Veiga

 


quarta-feira, janeiro 17, 2024

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI

Quando intensamente vivido, o tempo é veloz, como naqueles meses que se seguiram ao 25 de abril de 1974, que voaram, agitados e magnânimos, qual tufão que repusesse a ordem natural das coisas e novas hierarquias do poder fossem estabelecidas em que o Povo é quem mais ordena, e os militares do Movimento das Forças Armadas em união estreita com o Povo.

Mas, não há que ter ilusões. As revoluções, por vitoriosas (ou virtuosas) que sejam, são sempre inacabadas! De facto, a história não cabe na metáfora da linha de montagem, em que se somam, linearmente, momento a momento, novos desenvolvimentos até atingir o ponto sem retorno, em que, triunfal, a revolução, se consolida, arrastando consigo as excrescências do passado, lançadas ao “caixote do lixo” da História. O escrevente, que gosta das margens e duvida do óbvio, não resiste em afirmar que, em qualquer processo revolucionário, o passado e o futuro se digladiam e mutuamente se influenciam, num jogo de forças permanente, designadamente, na morfologia e funcionamento dos poderes difusos (micropoderes) no interior da sociedade, de que são exemplo maior, o poder económico, e poder mediático. O activo movimento de retroacção e a aguerrida luta dos múltiplos interesses em presença, têm em vista capturar o poder de Estado, instância última da luta e seu objetivo final e, nesse percurso, quando a tensão atinge o auge irrompe então a movimentação social, cada vez mais “carregada” de energia e tensão criativas e agudiza-se o conflito interesses em presença e o processo evolutivo acelera e ganha nova expressividade já não apenas de mútua retroação de interesses distintos, mas na explosão acesa de luta politica.

Acresce que, quer tenhamos ou não consciência dessa realidade, um determinado tempo histórico é engendrado nas dinâmicas e conflitos de um processo político anterior, sendo que último acabará por prevalecer dominando pela força e pelo exercício da violência (de Estado) no mínimo necessário para um novo tempo histórico se afirmar como vencedor. E, nesse jogo de forças, entre a prevalência dos interesses dominantes e o propósito da sua alteração ou subversão se exercita a matriz do movimento social de resistência que arrasta o processo ao longo de um (novo) tempo .

Acontece, porém, que nas sociedades de tipo ocidental, herdeiras do pensamento de Rousseau e tributárias da Revolução Francesa de 1789, as tensões sociais de índole revolucionária tendem a ser resolvidas pelo voto popular, que em grande medida funciona como válvula de escape das tensões sociais e, enfim, uma vez domesticadas tais tensões, os processos de transformação social e de luta política perde fulgor e, em consequência, afirmam-se com mais vigor os valores e dos  interesses dominantes da sociedade em causa.

O escrevente reconhece que foi além do que devia, assumindo um protagonismo deslocado, quando, na verdade, apenas lhe é legítimo elevar-se sobre a trama e os o indispensável para melhor dizer o fio da narrativa e deslindar os seus enredos. Continuemos, pois, tanto quanto possível olhando os horizontes narrativa e a devolver os protagonistas ao seu lugar, seus enredos e perplexidades, em que o menor deles não será, certamente, o que faria ali Cléo,

Digamos então que após euforia dos primeiros meses da revolução de 25 de abril, nesse tempo inaugural de todas as possibilidades e todas as vertigens, reconquistadas que foram as liberdades fundamentais, por acção do Movimento das Forças Armadas, milhares e milhares de pessoas mergulharam na euforia da participação cívica, procurando, cada um, conforme a respetiva disponibilidade, participar na resolução dos problemas concretos, com que a sociedade portuguesa, acabada de sair de quarenta anos de ditadura, se debatia, seja no domínio da habitação ou do ensino, ou da saúde, ou nas questões relativas à Terceira Idade. Formavam-se espontaneamente brigadas de trabalho para a alfabetização e comissões de moradores para as mais diversas atividades, num movimento de base, estimulado sobretudo, pelos partidos políticos, que mais se bateram contra o fascismo. Acontece, porém, que, o movimento popular, representava, no seu conjunto, a grande maioria do povo português, que tinha bem presente, não apenas o atraso económico e social a que estava votado, mas também a guerra colonial, uma guerra injusta e fratricida, ao arrepio dos “ventos da História” que condenou milhares de jovens à morte ou ao exílio, por força de uma política autoproclamada de “orgulhosamente sós”, porém, condenada pelas Nações Unidas e por todos os países civilizados.

Durante alguns meses as massas populares e os militares do Movimento das Forças Armadas, contra ventos e marés, prosseguiram a sua ação revolucionária, acreditando ter chegado um tempo novo, em que a terra é de quem a trabalha e a liberdade, tão duramente conquistada, era “uma liberdade a sério”, que devolvia ao Povo o que o Povo produzia, como proclamava uma canção da época, mil vezes cantada e mil vezes ouvida, cujo refrão é em si mesmo um hino ao trabalho e aos trabalhadores da Reforma Agrária “Só haverá liberdade a sério quando houver a paz, o pão e a habitação e quando pertencer ao Povo o que o Povo produzir-

Acontece, porém, que nem todos os militares do Movimento das Forças Armadas, estavam politicamente aptos para o “assalto aos céus”. Na realidade, a Revolução, que andava de boca em boca, invocada à esquerda e à direita, não representava a mesma coisa para toda a gente, de tal forma que, com avenidas e alamedas a abarrotarem pelo pró e pelo contra, os militares dividiram-se e com eles as forças políticas em que se apoiavam. Pelo meio, notícias de tentativas de golpes e contragolpes mantinham os mais ativistas em ebulição e em tensão permanente e assustavam os mais timoratos. Em certo momento, notava-se que as tensões político-militares apenas poderiam ser dirimidas pelo confronto entre as diversas frações e na contagem das espingardas, o que veio a acontecer na noite de 25 de novembro de 1975, em que os militares revolucionários perderam o poder e, em consequência, foram presos, perseguidos e marginalizados pelas hierarquias militares. De qualquer maneira a Revolução de 25 de Abril, apesar de “vencida”, com o 25 de Novembro, foi uma revolução “ganhadora” na medida em, num curto período, dos mais fecundos da nossa história, as forças revolucionárias vibraram golpes profundos na arquitectura do poder fascista e foram muito longe em relação ao Futuro, de forma que, muitas das suas conquistas são hoje em dia, aquisições sociais irreversíveis e, por tão evidentes, se inscrevem, com toda a naturalidade na vivência quotidiana  dos cidadãos.

Bastará lembrar a Constituição  da República Portuguesa, escrita no Parlamento democraticamente eleito, mas também escrita nas ruas, com a massas populares exigirem a consagração constitucional das conquistas da revolução e, nessa dialética, se forjou uma Constituição avançada, onde, a par dos direitos de cidadania, se inscreve também um amplo acerbo de direitos  sociais, que  projectam a Revolução Abril nas sendas do Futuro.

 Assim, a Constituição  da República se cumpra…

 

Manuel Veiga

 


HORIZONTE LÍQUIDO DO TEJO


Vicejam espinhos nas ruínas do tempo

E os rios medem as margens no sobressalto das árvores...

 

Em seu pudor - ou resguardo - a palavra lateja. Mítica.

 

Clandestina embora atiça o fervor que germina

Nos rostos calcinados e na amargura dos homens.

E o alvoroço ganha então asas nas veredas do sangue.

E no percurso inóspito dos passos...

 

As mulheres revestem-se de sibilinos gestos

E soletram a boca das crianças

Nas migalhas...

 

E erguem o olhar pleno. Antigas ânforas

Que repletas extravasam. E minguadas se aprestam

A todas as sedes e a todas as urgências.

E que de mão em mão passam. Gloriosas...

 

Fecundos são os dias assim pressentidos

Que amadurecem como crisálidas. E se soltam serenos

Na arribação das aves. E nos ritos da memória...

 

E se advinham no pulsar expectante da cidade

Ainda agora cais. A erguer promessas.

 

E a desenhar velas

No horizonte líquido do Tejo...

 

 

Manuel Veiga

Sem Pena ou Magoa

  Lonjuras e murmúrios de água E o cântico que se escoa pelo vale E se prolonga no eco evanescente…     Vens assim inesperada me...