Manuel Maria, em dois passos
rápidos, atravessou o adro, de cabeça erguida e olhar ausente, evitando cumprimentos
e salamaleques e entrou, discretamente, na Igreja, pela porta lateral, com o deliberado
propósito de passar despercebido, pois sabe Deus quanto lhe desagradava
participar nas cerimónias fúnebres do Visconde, já que a sua presença, ali,
no funeral, iria abrir feridas suas, mal saradas e levantar poeira adormecida.
Manuel Maria nascera na Casa
Grande, em circunstâncias, um tanto estranhas, enfim, filho da crepitosa Violante,
mas o nome do pai, que todo o mundo conhecia, era, no entanto, tabu em toda a região e o povo na risota ia
dizendo que Manuel Maria era filho Espírito
Santo, que na sua humanidade não terá
resistido aos encantos de Violante, ali chegada, vinda de Sul para norte, qual peça do enxoval da Camilinha, que mais que aia ou dama de companhia como irmã
a consideravam que outra irmã não tivera.
Manuel Maria nascera pois na
Casa Grande, onde viveu sob os cuidados de duas mulheres que o amavam, como
de filho de ambas fosse, a Violante que o dera à luz e a Camilinha, que por
razões muito dela, o adotara como filho amado e no nascimento e infância o
protegeu e, na adolescência, o retirou da influência nefasta do ambiente da Casa
Grande e o colocou, como aluno interno, em
Lisboa, numa instituição da Igreja, destinada a acolher crianças
desvalidas, ou filhos de famílias ricas, que., naturalmente, por santas e nobres
razões, desejavam os filhos rebeldes, o mais longe possível, educados com a mão
rija, entregues aos bons ofícios da Santa Madre Igreja
E agora ali estava
Manuel Maria, no funeral de Federico Amásio, Visconde de Malafaya e Senhor
da Casa Grande e de outros vastos domínios por toda a região de Terras do
Demo e carrasco da sua adolescência, e ele, Manuel Maria sem uma gota de
rancor para aquele homem, agora amortalhado, de quem nunca recebera um afecto
ou uma caricia, nem sequer pelo próprio nome o tratava, apenas aquela voz rouca
e riso escarninho o interpelavam, como se fosse mais um cachorro da sua matilha
da caça vem aqui zorro. Sentiu uma pequena náusea e estava decidido a
sair da Igreja, tão lesto como entrara, quando sente a mão carinh de Violante e,
num murmúrio, incita-o, anda, vem comigo, e tomando-lhe a mão e, por
entre os fiéis, guiou-o até à urna, com os restos mortais do senhor da Casa
Grande e visconde de Malafaya, com o rosto coberto com pano de linho
escrupulosamente engomado. De cada lado da urna, depositada sobre um suporte de
madeira entalhada, pintado de preto e debruado a oiro, ardiam, numa chama dolente
dois círios da altura de um homem. Em redor do defunto, seis clérigos,
devidamente paramentados, dispostos três de cada lado, entoavam, em latim, o cantochão
de profundis e aspergindo água benta sobre o defunto e desfiando padre-nossos,
replicados em coro Pai Nosso Que Estais no Céu.,, Manuel Maria e
Violante, avançavam, lentamente, por entre a multidão de crentes, Violante
à frente, com Manuel Maria pela mão, pedindo licença, forçando a passagem, aqui
ou ali, até chegarem junto de Camilinha, totalmente vestida de negro, com um longo
véu de renda. a cobrir-lhe o corpo.
A Camilinha abraçou Manuel Maria
demoradamente, deixou-lhe uma carícia no rosto e puxou-o para lhe dizer em voz
baixa que devia aproximar-se o mais possível da urna e ficar sozinho, à cabeceira
do defunto. Manuel Maria interrogou com o olhar a Camilinha, sem alcançar o sentido da proposta, mas Camilinha náo lhe
deixou margem para se negar e, com voz firme insistiu vai , faz o que te
digo, depois te explicarei.
Manuel Veiga