Muitas vezes pergunto a mim mesmo como foi possível que tantos que se dizem republicanos aderissem tão prontamente às ideias fascistas, ou pelo menos se revelassem como seus simpatizantes.
(...)
A explicação é que, para eles, a República é um simples agregado de nove letras, numa fórmula cabalística - embora muitos (que não eles) estejam dispostos a morrer por ela heroicamente. O amor à liberdade, as crenças democráticas - que estão muito acima dessa coisa miserável que é a República quando esta não realiza a Democracia - sentiram-se abaladas ao primeiro embate, na sugestão do primeiro êxito, como esses caules frágeis dos arbustos que não suportam as primeiras ventanias. Ora resistir aos embates do êxito é que constitui a prova real da verdadeira convicção - só assim podemos certificar-nos das profundidades, a que a árvore ideológica fez descer as suas raízes.
A verdade é que nenhuma das suas ideias (na maior parte) corresponde a uma necessidade viva. Neles tudo se passa - quer estejam a favor da liberdade ou contra ela - no domínio das ideologias inconsistentes. A liberdade foi uma etiqueta que eles colaram no seu vestuário, não uma necessidade sentida pela sua própria alma. As suas ideias são fluidas, incorpóreas, indecisas e oscilantes, como essas nuvens que flutuam em contornos indecisos, tomando, segundo os acasos atmosféricos, a forma dum animal fantástico, dum palácio ou dum navio flamejante.
Não pergunteis que força íntima as impele, que realidade está por trás delas: é o vento que as impele. Vivem apenas uma vida fictícia, uma vida de empréstimo. Postas num plano exterior à vida íntima do espírito, não mergulham nele as suas raízes, não tomam dele as suas energias, não recebem ali a sua organização concreta. Por isso, os acontecimentos encontram esses homens sempre dispostos a todas as abdicações e transigências - contanto que lhes fique nos lábios, com o sabor da última mentira, o último flatus vocis.
Quantos poucos de nós, aqueles que nos dizemos intelectuais, temos independência e firmeza de espírito!... Quantos poucos de nós nos mantemos intransigentemente numa atitude intelectual e resistimos ao succés, à moda, ao snobismo, às correntes dominantes, aos puros impulsos duma emotividade superficial e transitória!...
Quantos poucos de nós, finalmente, têm isto a que poderei talvez chamar - um amor quase físico pelas Ideias?!..
Raul Proença - in Seara Nova, N.· 81, de 1 de Abril de 1926
Estarei ausente do vosso convívio durante uns (breves) dias.
Até lá deixo-vos na (boa) companhia de Raul Proença.
19 comentários:
Em 1926 o primeiro de Abril já seria o dia das mentiras?
Como será o sabor da última mentira?
Abraço.
Tão actual o Raul Proença...
Um abraço.
E deixa em boa companhia. Raúl Proença era um excelente pensador.
Bom repouso.
pyslmTer ideais como mera cosmética ou peça de vestuário ao sabor da moda, ou transportá-los debaixo do braço, como jornal semi-lido que se abandona no primeiro café não é, na verdade ter ideais, mas apenas usurpá-los ocasionalmente por razões de conveniência... Fáceis de descartar, tanto quanto difícil é o interiorizá-los.
A questão é que não há grande margem para as meias-tintas e quando se entranham são um problema. Problema diverso quando se fingem. Num caso e noutro, no entanto, há um mundo de diferença entre as atitudes dos distintos 'pacientes'.
As reflexões de Raul Proença mostram-nos bem que, contrariando os cultores da 'eterna novidade', há muitos anos que as águas dos rios correm e a mente dos seres humanos sempre utilizaram as ligações neuronais e outras que tais.
Vê lá tu que em 1926 nasceu a minha mãe e já escrevia alguém um artigo - que muito a propósito relembras - que podia ter sido escrito hoje... sei lá, nalgum blog!...
Um abraço.
"um amor quase físico"
__________________
perfeito.
obrigada.
Até breve, boa companhia.
:)
Beijinho*
a fisicalidade
do que não é físico
...
a sua dérmica inscrição
...
beijO
Cem anos passados e a análise é de uma actualidade que impressiona. Hoje como ontem, muito poucos sentem "um amor quase físico pelas Ideias!..
Aquele abraço infernal!
A tua pujança,
querido amigo !
Até breve, então.
Até parece escrito para os dias de hoje. Tão actual... tão físico!
Ficamos em boa companhia, vai e volta bem
Beijinhis
Quão difícil é, na vida pública, manter a integridade intelectual! Isto, a julgar pelos exemplos desse tempo e de hoje. Nada mudou assim tanto, afinal.
Um belo texto para reflectir. Pode-se dizer que deixaste as (nossas) mentes ocupadas. **
É VERDADE
TAMBÉM NOS DIAS DE HOJE
PARA TODAS AS CLASSES SOCIAIS
NA GENERALIDADE
SER TARTUFO - PODE NÃO DAR SAÚDE
MAS FAZ CRESCER
Escrever um texto destes em 1926 é obra, ainda que a Seara Nova sempre primasse por valores de liberdade em democracia.
Bfs alargado..., abraço.
Texto tão actual, parece ter sido escrito para os dias de hoje...
... e como percebo este "amor quase físico pelas idéias"....
Obrigada
Boas férias
"A liberdade foi uma etiqueta que eles colaram no seu vestuário, não uma necessidade sentida pela sua própria alma."
Tenho pena que não te tenhas podido associar ao meu texto sobre o Camboja.
Poucos, muito poucos... Grande Raul Proença.
E em excelente companhia ficamos. Quanto ao amor que deveriamos nutrir pelas nossas ideias e ideais... há muito que foi corrompido, espero que ainda haja sobreviventes, parece-me que o autor deste blog é um deles.
De facto, o amor pelas ideias tem de ter essa dimensão física. Nunca me lembrei de o dizer (melhor, de o pensar).
De facto, são raros os verdadeiros pensadores.
De facto, aqui aprende-se.
Bom regresso.
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