Eram 17 horas. Em plena baixa, do outro lado da rua, oiço o meu nome soltado num berro feroz. Era o meu amigo Quim Remédios, do alto do seu metro e noventa, pronto a “esmagar-me os ossos” num abraço.
Há que anos que não via o Remédios... E, no entanto, tempos houve que éramos unha com carne. Mas, enfim, a vida tem cursos distintos e nem ele, nem eu, lamentamos o rumo que tomámos...
- “Oh pá, nem imaginas o que acaba de me acontecer...” - atirou-me o Remédios sem dar tempo de me recompor.
-
“Claro que não imagino! Mas tenho a certeza que mete saias...” – retorqui, num sorriso, enquanto me libertava do esfuziante abraço.
Devo esclarecer que “remédios” não é seu apelido de família. Trata-se de uma garbosa alcunha que o meu amigo ostenta e que vem desde os velhos tempos das avenidas novas. O Quim, nesse tempo de estudante de medicina, tinha sempre uma receita infalível. Fosse qual fosse a doença, real ou imaginária, fosse enxaqueca, ou insónia, ou torcicolo, ou anemia ou males de alma, o Quim disparava sempre: -“Ó pá, f... É remédio santo!...” Daí o “remédios”!...
A verdade, porém, é que o Quim não era um teórico. Praticava a “receita” e respirava saúde. Mas era um forreta em questões de dinheiro...
O Quim Remédios nunca casou. Arrasta, no currículo, duas ou três relações mais ou menos (in)estáveis e mantém-se fiel ao lema de apenas “casar com a profissão”; aliás com manifesto proveito, pois que, para além da clínica privada, exerce funções destacadas num Hospital público.
Mas vamos a história. O Quim Remédios conhecera, em situação que não revelou, uma distinta senhora da alta sociedade que frequenta e aprazaram o encontro fatal. Nesse dia. À hora de almoço. Numa pensão da Baixa, coito de marginais, imigrantes clandestinos e amores ocasionais...
- “Estás a perder classe...” – ironizei – então isso é lá local para levar uma senhora?!...”
- “Mas que queres, pá! A gaja queria que a fizessem sentir uma galdéria. Tive que escolher o cenário adequado... “ - gargalhou.
Confesso que também ri com gosto, aguçando a curiosidade para o resto da história.
Dispenso-vos dos pormenores mais ou menos escabrosos para, em síntese, vos dizer que, no tálamo do amor, a senhora guinchava e rugia como possessa. Rugir?! Melhor, a dama troava e gemia, em diversos registos sinfónicos, como se as carícias do meu amigo Quim fossem trombetas celestiais em acordes divinos...
Eis senão quando, no auge da batalha amorosa, semi abafados pelos libidinosos sons da dama, a porta do quarto rebenta de estrondo, qual apocalipse vindo do fundo do corredor.Com uma insistência inaudita, as pancadas na porta multiplicavam-se. O Quim murchou na função e ficou, com todos os sentidos, em alerta. Que pensar numa cena tão insólita? O pior, claro! Uma rusga da polícia?! O marido ciumento?! Um assalto?!...
De respiração suspensa, preparado para tudo, embrulhado no lençol como túnica de senador romano, em pose solene, o Quim levanta-se, deixando a dama, ainda mal refeita das celestiais trombetas, estendida sobre a cama, exposta, como virgem sacrificial...
Entretanto, a espera exasperava o intruso!... Do lado de fora, uma chave roda na fechadura e, de supetão, surge um jovem negro, belo como uma escultura de bronze, saída das mãos de Rodin (palavra de Remédios!)
(Nesta fase da descrição, na minha mente perversa formigavam cenas inarráveis, em que o negro seria o artista principal ...)
- “Patrão, estão aqui a fazer uma barulheira dos diabos, assim não pode ser” – atirou o negro perante o olhar dominador do meu amigo Quim! – “com esta barulheira tem que pagar o dobro ...”
Grandioso, num gesto aristocrático, o meu amigo Quim abriu então a carteira e estendeu uma nota das grandes ao negro, perplexo com a fartura.
- “Há momentos, em que um homem não se pode cortar nas despesas!...” – remata, filosófico, o meu amigo Quim Remédios, perante o meu irónico sorriso.
E, desta forma, sem uma palavra sequer, com quem passa uma receita, o meu amigo Remédios decidiu o incidente. E, deo gratias, assim salvou a honra da dama e as delícias do celestial concerto...
Agora digam-me que o dinheiro não dá a felicidade!...
domingo, junho 01, 2008
Eram cinco horas em ponto...
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11 comentários:
O dinheiro e o remédio sanaram o mal da dama. E do Remédios!
E o teu discurso, de uma incomparável maestria, fez as delícias da leitora.
Beijinhos
Ora aqui está uma história muito bem: muito bem escrita, com uma senhora muito bem, um homem que.... bem! E que acaba bem!
Bem bem!
:)
e ele depois pô~-se em pé outra vez?!
eu não sei se conseguia. claro que não, já não tenho músculo (s).
Dar também acho que não dá... mas que ajuda muito, lá isso ajuda!!!!
Gosto destes teus "contos", quase conseguimos visualizar a cena de tão cuidadamente descrita
Tem piada, quase jurava que em tempos ouvi esta história numa retrosaria de Lisboa... Muito bem contada, aliás.
Uma delícia este conto.
Confesso que cheguei a temer pela “honra” do Remédios.
Uma pequena nota: Se a cena tivesse decorrido num “5 estrelas” o Remédios mais a madame, eram capazes de conseguir um cachet para futuras cavalgadas. È que anda por aí muita gente fina a necessitar de afrodisíacos sonoros para complementar o viagra.
Por momentos pensei que o jovem negro.... como tu dizes na estória...
Excelente!!!
Beijos beijos
Maravilhosa forma de chegar aqui pela primeira vez, hein?!
:)
O teu amigo remédios é um verdadeiro aristocrata...
Não espanta, pois, que essa selecta senhora gostasse tanto de o ver só de gravata...
Real ou fictícia a história está mesmo muito bem escrita.
abraços
Ora aí está uma possível atitude para combater a crise, carais! Houvesse um Remédios governamental e, perante a histeria da Dona Crise e o oportunismo do Negro Défice, rechonchuda nota poria fim à diatribe...
Agora com este...
Bem «esgalhado», meu caro.
Abraço.
De repente, fiquei com a sensação de que eu e a m. frequentamos a mesma retrosaria... :) Mas a verdade é que a história está deliciosamente contada, ainda que eu estivesse a ver que diabo de papel ias tu dar ao jovem negro... enfim!!! :))
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