"Em Outeiro não há comida. Em Outeiro, à tarde (já muito tarde, sobretudo para onde se almoça à uma), não há nem comida nem gente bar, Cervejaria Bento, com uma bonita varanda cheia de plantas e de flores, mas onde, como o seu letreiro indica, só se serve Cerveja ou vinho ou café, mas nada consistente.
- Então cerveja, que remédio - diz o viajante, sentando-se e aceitando dessa forma, já sem forças, o seu destino. Se o Menino não fizer um milagre, hoje fica sem comer.
Mas o Menino está agora muito longe. Tal como Miranda, onde esta manhã o viajante comeu pela última vez (manteiga e com pão fresco) sem saber o tempo que demoraria a voltar a fazê-lo. São três menos vinte e até Bragança ainda falta.
- E não há nenhum restaurante?
- Havia - diz-lhe o dono.
- Havia? - pergunta o viajante.
- Sim, mas fecharam-no - diz o dono, indo embora e deixando-o mais só que o pelourinho da aldeia; um pelourinho de pedra, que se ergue diante do bar (e da igreja matriz) e que é, segundo os moradores, a jóia da comarca. Sem contar, claro está, com o velho castelo que, de uma colina, domina toda a aldeia.
- Dos mouros - disse o dono.
Mas o viajante já nem olha para eles. O viajante está tão farto de ver pedras e castelos que nem sequer se aproximou para os ver de perto. Pelo contrário, conforma-se em vê-los do bar, enquanto espera que o dono regresse com a cerveja.
- Aqui tem - diz.
- Quanto lhe devo?
- Cem escudos.
- Tome, está bem assim - diz, dando-lhe outros dez escudos para que veja que alguma coisa lhe deixa.
Não muita, verdade seja dita. Entre o calor que faz agora e a fome, que é já um cancro, o viajante está tão fraco que quase não pode com a cerveja. Assim, mal acaba de a beber (coisa que faz depressa, para não perder mais tempo), despede-se do bar Bento e do seu dono e regressa ao carro para continuar o seu caminho até Bragança. Com sorte chegará lá a tempo de comer alguma coisa.
- Adeus, Outeiro - murmura, enquanto se afasta da aldeia.
O caminho para Bragança é longo como as mágoas. Serpenteia pelos montes e pelas encostas do Sabor, que são cada vez mais solitários. Urzes, brejos, plantações de tomilho, uma ou outra oliveira entremeada e castanheiros que já se vêem entre aqueles, anunciando a presença da serra é tudo o que se vê, excepto algumas aldeias: Paço, Rio Frio, Milhão, todas desertas, agora; e todos esturricados tal como o viajante e a estrada. Embora, por esta, se vejam também, nas bermas ou junto de alguma árvore, flores que guardam a alma das pessoas que morreram ao atravessá-la. Em acidentes, segundo as placas, embora o viajante tenha dúvidas se não terá sido de fome. Nem em Paço, nem em Rio Frio, nem em Milhão, que é a maior, há uma simples taberna onde possa retemperar as forças.
Antes de Milhão, no entanto, com Bragança já avistando-se à distância (embora ainda muito longe) a estrada liga-se de repente à que vem da fronteira. Para Espanha 8, diz o letreiro, provocando no viajante a nostalgia dos cozidos e dos pratos da sua terra. Se não fosse por ter prometido a Manuel Costa barbear-se outra vez, iria, agora, embora por ela.
Mas a estrada não muda. Pelo contrário, torna-se mais sinuosa e mais inclinada. Com o Sabor já lá em baixo, no fundo do precipício, tem de descer pouco a pouco para conseguir alcançá-lo. Fá-lo e Gimonde, entre prados amenos, num bosque, onde uma ponte de seis olhos, romana de acordo com os roteiros, serve as pessoas que querem atravessar há tantos séculos como os que tem. Embora a ponte tenha agora um companheiro. Uma ponte nova, mais larga, por onde passam os carros deixando para a antiga o tráfego de peões.
Junto delas, o viajante pára. Para sentir a frescura do rio e para contemplar o choupo que se ergue entre as duas pontes. Um choupo alto e despido, como o mastro de um barco, mas em cujo ramo mais alto há um ninho de cegonha. É o único morador de Gimonde que saúda a sua presença quando chega.
- Conseguirei comer? - pergunta-lhe, enquanto contempla no rio a silhueta reflectida entre os juncos.
A cegonha não responde, nem se perturba (também está agora a dormir a sesta), mas, em troca, encaminha-o com o seu bico para o coração da aldeia; que não é a ponte, embora o pareça, mas uma casa muito velha que se ergue junto do caminho, mesmo ao lado daquela. De fora, mostra apenas a sua arquitectura típica, ainda que arranjada e bastante limpa (em contraste, sobretudo, com o resto das casas de Gimonde), mas, quando o viajante se aproxima para a ver, quase que desmaia. A casa é um restaurante e, além disso, ainda está aberto.
Não é apenas um restaurante; é o melhor da zona. Pelo menos, o melhor que o viajante conheceu até este dia. Antigo e recuperado (e com gosto, certamente: todo de pedra e madeira e com as paredes cobertas de azulejos), ocupa a antiga loja que, durante vários séculos, se ergueu à sombra da ponte. A loja do senhor Roberto, como se chamava o dono e como se chama ainda o restaurante que agora a ocupa. Mas o melhor não é isso.
O melhor, sem dúvida alguma, são as trutas do Sabor e a travessa de enchidos que servem ao viajante quando, depois de dar ao rabo, pois já iam fechar, lhe permitem aceder ao restaurante. Sem dúvida o Menino, da sua urna em Miranda, intercedeu por ele. O Menino ou a cegonha.
As trutas, os enchidos, os pratos, que são lindíssimos, a frescura, que agradece, e Isabel, a empregada (de Milhão, segundo lhe diz) que o atende com doçura - a mesma que dela emana deixam-no tão encantado que fica quase a chorar. Não o faz por vergonha. Mas, em troca, dá-lhe uma gorjeta tão grande que a rapariga até fica perturbada quando a vem buscar.
- Toma lá - diz o viajante. - É do Menino, sabes quem é?
- Claro - diz-lhe ela, a sorrir, enquanto lhe serve um bagaço transparente como o rio.
- Bagaço de Trás-os-Montes - adverte-o ao vê-lo sorrir.
Mas o viajante não lhe liga e bebe-o de um gole. Até repete a dose. De modo que, quando se afasta, já nem sabe quem é. Menos mal que a cegonha, que continua quieta no seu ninho, o recebe quando aparece e o guia até ao Sabor. Até à margem cheia de juncos e sombras de trutas pretas onde o viajante se deixa cair como se fosse mais uma delas. Que o Menino ou a cegonha o acordem quando quiserem..."
Júlio Llamazares – in “Trás-os-Montes – uma Viagem Portuguesa” - Ediffel
.......................................................
Não há fome que não dê em fartura...
O que importa é não desistir e seguir em frente. E não acreditar em milagres...
A não ser nos milagres da cegonha.
Ou nos milagres do “Menino Jesus da Cartolinha” – que é General... lol