O “Assobio”, que chegou com três dias de
atraso, como encomenda extraviada, provinha dos picos da serra da Gardunha, sem
outra vida, nem oportunidade dela que não fora guardar ovelhas, ao serviço de
uns tios de alguns parcos recursos, que o acolheram quando, aos três anos de
idade, ficou órfão de pai e mãe, arrebatados ambos pela “Ceifeira”, na mesma funesta hora, quando a mulher, já noite
dentro, alumiados pela tremulante luz da candeia, procurou salvar o seu homem,
engolido pelos vapores e pelo cangaço das uva, em fermentação de vinho. Ambos
lá ficaram, no lagar, abraçados um ao outro, vítimas da mesma hora de má sorte,
quando aos corpos cansados por um dia trabalho sol a sol, se exige ainda um “um pouco mais de azul”, perdão, se
exige um pouco mais de esforço, antes do sono reparador. A irmã, um tudo nada
mais velha, foi recolhida por umas instituição religiosa, feita noviça e
freira, a quem se perdeu o rasto...
Pastor de ovelhas,
desde criança, nos despovoados montes da serra da Gardunha, o “Assobio”, que ainda não era, passou,
portanto, os dias da sua jovem vida, durante largos períodos (semanas? meses?
anos?), sem ver vivalma, que não fossem as criaturas de Deus que, “poverello”, estavam a sua guarda e
apascentava como destino, que a vida,
afinal, é uma escura gruta, onde, episodicamente, pequeníssimas intermitências
de luz e sombras habitam nossos olhos, vindos esses pequeníssimos grãos de
claridade sabe-se lá donde e onde, em tal gruta, os homens apenas captam a
imagem invertida de si mesmos e a sua grandeza se reduz afinal à dimensão das “urgências” que a natureza reclama. De
vez em quando, qual “padre padrone”
saído de um filme dos irmãos Vitorio e Paolo Tavaniani, o tio, no mesmo acto de
avaliar cordeiros e outros ganhos, deixava também o pão negro e o parco
conduto, que, por largas temporadas, o jovem pastor teria que administrar com
zelo.
Perdido,
portanto, nos cumes da Gardunha, nem Regedor, nem Padre cuidaram ter em boa
nota o “aviso” de incorporação
militar do jovem mancebo, tão naturalmente era aceite, na comunidade, a sua não existência cívica, pois que,
enjeitado pela sorte e guardador rebanhos perdido nos montes, como os animais
que guardava, era mera res nullius,
isto é, coisa nenhuma.
De forma que a
instituição militar, na falta do mancebo, tratou de o mandar procurar, se vivo
ou morto estaria, para a elaboração dos competentes autos e tramitação subsequente,
tarefa que o posto da GNR daquela circuncisão cumpriu com prontidão e, assim,
passados três dias e três noites, sobre a expedição da ordem militar, entregue
por estafeta, com os respectivos códigos e assinaturas de reconhecimento, uma
garbosa patrulha daquela força ordem, fazendo
jus à sua divisa “pela Pátria e pela
Grei” e que, noutros contemporâneos espaços, se traduzia em zurzir à
bastonada uns estudantes barulhentos e contestatários, ou uns quantos
recalcitrantes operários que teimavam em comemorar o 1º de Maio e o “Dia do Trabalhador”, eis que a gloriosa
GNR, esmerando-se nos seus deveres para com a Pátria, entregou o jovem mancebo manus militari, quer dizer, aos desígnios do recrutamento militar,
não sem que antes, porém, tivesse sido desinfectado,
no pátio do picadeiro, com exigente banho de agulheta e corte das crinas, como
se alazão, ainda não desbravado, se tratasse.
E assim chegou o
“Assobio” ao quartel, compelido pelo
zelo das instituições, que foi para isso que elas se fizeram, para meter em “ordem unida” a vida em sociedade e a
natureza espúria dos homens rebeldes e incivilizados, sejam eles “apoucalhados”, ou génios
incompreendidos. E, manifestamente, o Assobio,
que em breve iria sê-lo, era garantidamente um “apoucalhado”.
Não falava,
grunhia. Apenas duas palavras audíveis, “sim e não”. O restante discurso,
embora coerente, exigia esforço desumano de atenção para se poder decifrar, em
sua cantilena e cerrado sotaque, palavra de cristão. Os movimentos eram desarticulados,
também. A garbosa meia volta, que em Cavalaria, se exige que seja modelo de
aprumo militar, com os movimentos cadenciados e lentos, rondando sobre a ponta
de um pé e o calcanhar do outro, um,
dois, e o bater forte do tacão das botas ao movimento um, era para o Assobio um
tormentoso movimento brusco de rotação
completa sobre o próprio corpo, a mais da vezes desequilibrando-se e, depois firme e hirto, cheio de brio, perante a
admoestação do instrutor e a gargalhada geral da maralha – ah, seu grandaaaaa nabo!...
Nem esquerda,
nem direita, pois que os sinais de referência e orientação para o Assobio eram o sol e as estrelas, não as
mãos que apenas servem para o uso que delas fazemos ou com elas tecer afagos e
carícias, que no caso não subiriam além dos instintivos movimentos com que
celebrava o seu próprio corpo num jacto de prazer solitário e, para o efeito,
tanto servia a mão esquerda como a direita. De forma que, à voz de comando volver esquerda ou volver direita, o Assobio nunca acertava na mão e, era então
certo e sabido, que sairia desenfiado, no seu andar desconjuntado, para um lado
e pelotão a marchar para o lado oposto. Enfim, uma paródia de tropa...
“Ora cá temos nós a tirada neo-realista em que te resguardas,
meu caro Manuel, como crença literária, quando a narrativa engasga e te debates
nas encruzilhadas, prisioneiro na tua própria teia, pois que não deverias
ignorar que o leitor não mais pretende que uma boa história, numa escrita
linear, com antes e depois, amores desencontrados e um final feliz, pois que se
a vida é o que é, cada um, ao menos em fantasia, pretende amenizar a sua. Mas tu
teimas, no teu gosto pelo melodrama e em teu jeito de levar as emoções ao
limite, em cerzir tempos, memórias e espaços e fundir a narrativa num amálgama desconexo
e contraditório de vidas e emoções passadas, marionetas que te propões
recuperar, como quem num museu de figuras cera, pretendesse colher a flor viçosa,
“creme de la vie”. E depois essa tua petulância, desculpa o desagradável
adjectivo, de te negares como autor e negares as tuas próprias personagens mais
não é que uma manifestação tardia dos arquétipos culturais que te moldaram a mente e de que
ficaste prisioneiro. Mas a vida e a literatura mudaram, meu caro! Que diabo,
estamos na segunda década do seculo xxi! Será que não dás conta? Será que nada
tens a dizer dos dias de hoje? Será que te intimidam, assim, tanto? E já agora
que soltei o verbo, “intimo-te” a dizer que teima essa em “inventar” palavras? “Apoucalhado”?
Em que dicionário foste descobrir? Ser “apoucado” não basta?
“Touché, minha amiga! Compreendo muito bem, Maria
Adelaide, esta “feroz” estocada. De que não me queixo, pois bem sei que a veemência é proporcional ao grau da tua frustração. E, como se não bastasse eu deixar-te um pouco fora de cena, pois, realmente, apenas foram verdadeiramente nossas
escassas páginas, esquecidas lá atrás, sentes-te abandonada na narrativa, tu
que foste talhada para ocupar o centro. Receio porém não ser apenas isto a
causa do teu mau humor, pois sabes de ciência certa, que voltarei a ti sempre e que ocuparás o espaço que ocupas, plenamente, pois a ti pertence a glória desta
narrativa em que me “engasgo” – como sugestivamente proclamas – pois não fora
tua a “estória”, nem fora o acaso de nosso encontro e, sobretudo, os casos de
nossos desencontros, a narrativa, neo-realista ou “post moderna”, seja o que
for, não existiria. Mas pressinto que a verdade é outra. Dona Rosalinda e a
sua “estória” intrigam-te, não é? Não por qualquer ciumeira sem sentido, que
sempre muito bem soubeste superar, mas estiveste – pressinto – a remoer memórias e os objectos feitiche que povoam como mistério por desvendar algumas
zonas mais guardadas da tua vida? Estiveste a revolver, não é verdade? a caixa
onde entre bagatelas, misturadas com a condecoração com que Salazar distingui
teu pai com o vistoso título de comendador, foste também descobrir, em final da tua adolescência a “famosa” fotografia no Maxime, onde reconheces o
senhor teu pai, com uma bailarina, emplumada e semi-nua sentada nos joelhos? Quem
será essa mulher? E tens um negro pressentimento que a vida de Dona Rosalinda
se possa replicar noutras vidas...
Aí voltaremos, Maria Adelaide, à tua materna orfandade e à dor que dói e aos
passos, que não sendo nossos, os nossos determinam. E voltaremos à Tabanca e à Dona
Rosalinda, pois se algum lugar existe, esse é lugar mítico, em que a narrativa
se justifica.
Mas por enquanto, não. Deixemos ainda brilhar o Alferes, que
ainda não era, e se aclare o “mistério” da alcunha do “Assobio” .
9 comentários:
Maravilhoso, os sinais de referências e orientação para
o Assobio que eram o sol e as estrelas, muito poético...rss
Sugestão: Não escutes a Maria Adelaide, desta vez não concordo
com ela, eu leitora fiel afirmo que não gosto de simplesmente
uma "boa história", numa escrita linear, com antes e depois,
amores desencontrados e um "final feliz", é uma mediocridade
bem contada, muito pouco para o que de tão bem escreves, numa
narrativa rica da arte literária...
Não vou mais reivindicar a voz da Maria Adelaide,brincadeirinha...
rss Ela é poderosa no espelho da crítica...
Quem é esta bailarina? Ela promete mais narrativa...rss
O meu passaporte carimbado na continuidade nesta viagem!...
beijo.
Que prosa esta!
Pobre "Assobio" retirado de junto do seu rebanho na Serra da Gardunha, para uma recruta de autêntico martírio. Num tempo em que , ou fugia a salto, ou a GNR trataria sempre de apanhá-lo!
É verdade, há muitos passos que embora "não sendo os nossos, os nossos determinam". E é a partir de um tempo anterior e de "um lugar mítico" que as grandes narrativas funcionam.
Estou curiosa para saber a razão da alcunha "Assobio".
xx
Este narrador tem muito para contar...
E como conta!
Bj.
Lídia
Este teu assobio ainda vai dar muito que falar
Estarei atento com a dona Adelaide
a esta miríade de memórias verdadeiras
que entendeste por bem ficcionar
para nosso deleite
Abraço fraterno
Meu caro MarArável,
a verdade aqui é apenas uma - não "existe" nem autor, nem personagens...
tudo o mais é "ilusionismo", manipulação da escrita, teatro de marionetas, enfim, "literatura" (desejaria eu rss)
abraço, meu irmão
Pois que se aclare, alheio a rótulos literários, o transplante do "Assobio" dum mundo que entendia, talvez como poucos, para outro onde, claramente, mais se apoucava...
Belíssimo texto, meu amigo!
Abraço
Já reservei cadeira (com almofada) na fila da frente para saber as notícias que por cá se forem desenrolando. :)
Um abraço assobiado
Não se lhe tire a pele, não, que não é 'impenho', diz-se Riba Minho, se baste saber-lhe a história ao Assobio. Do mais, bem será dizer 'apoucalho' é jumentada quem cacareja de poleiro, como a galinha. A pele, aí não!, essa, tisnou-a o Assobio!...
Exlcelente narrativa, Manuel!
Abraço, amigo!
Ufa!!! Depois disso tudo, concluo o seguinte: Também quero ser uma bem-aventurada apoucalhada pobre de espírito, já que só assim entrarei no reino dos Céus.Aplausos pela narrativa, heretico!
Beijos!
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