Regressemos,
pois, ao Alferes, que ainda não era, mas apenas Aspirante, e à “tropa
fandanga” em que o pelotão, sob seu comando, se estava a transformar. Ainda
mal sarado fora o “medir de forças”
com o grupinho de reguilas alfacinhas do
bairro de Alcântara e aparecia agora aquela “encomenda extraviada”, provinda dos cumes da Gardunha, que, em vez de falar, grunhia e trocava os pés pelas mãos e para
quem a voz de comando do jovem oficial ou a paciência dos “instrutores”, graduados em cabos
milicianos e, em devido tempo, furriéis,
quando, a dois dias de embarcarem para a Guiné, também os doirados galões em
diagonal do Aspirante, forem substituídos
pelos horizontais e também doirados galões de Alferes, com o esplendor de todo o Batalhão em farda de gala, formado
na parada, numa cerimónia ilustrada pelos mais altos galões, dragonas e
estrelas dos generais da Região Militar e a solene e inestimável bênção do
Cardeal Cerejeira, Patriarca de Lisboa, que Deus haja, cerimónia essa, (que
mais tarde seria), voz de comando ou paciência evangélica dos denodados cabos milicianos, futuros furriéis, ocupavam o mesmíssimo plano na
casmurrice horizontal do Assobio, que
outra dimensão não atendia que não fossem as subtis hierarquias estabelecidas
pelas leis da sobrevivência no alto da serra da Gardunha, que ele, Assobio, (antes de o ser), bem conhecia
e, a seu favor, supinamente manobrava.
É que outras
regras, o Assobio não conhecia, nem
elas – as regras – se importam com Apoucalhados,
pois que outra coisa não visam, as regras ou normas, que não seja
estabelecer a normalidade universal, ou
seja, que cada recruta não “mije fora do
caco” e, em prontidão absoluta, as ordens de comando seja cumpridas – Ámen! - seja quem for que no poder esteja
investido, cabo miliciano, comandante
de secção de um pelotão em recruta, Alferes,
Capitão ou General, ou o todo-poderoso Hamurabi com seus códigos e leis.
As coisas, porém, estavam
a ficar feias no pelotão. O “Apoucalhado” recruta, em vias de ser Assobio, amuava, ficava nas suas
realíssimas tamanquinhas, não tugia, nem mugia, sendo previsível que, no seu
íntimo, soltasse um valentíssimo manguito para as vozes de comando, os gritos
ou à chacota dos seus camaradas ou às soleníssimas cerimónias militares.
O mais
grave da questão, porém, era a influência nefasta que contaminava a ”ecologia”
do funcionamento do pelotão, pois bem se sabe que, em qualquer organismo vivo,
social ou orgânico, quando qualquer das componentes, por desprezível que seja, não
se encontra devidamente integrada, pode ser o pequeno grão de areia, que
emperra todo o sistema, máxime, destruindo
toda a sua orgânica e funcionamento.
Disso se dava conta e
velava o capitão Mascarenhas, comandante da Companhia, com vagas pretensões a
cavaleiro tauromáquico, oriundo de velha cepa monárquica do Douro, que
solenemente proclamava que “os homens,
como os cavalos, se educam com ração e chibata” e, se não prestam para o “volteio”, sempre servem para a carga e,
senão para a carga, certamente para o talho e, então, batendo com o pingalim na
bota de cano alto, proclamava alto e bom som que o Alferes, que ainda não era, estava a ficar mole com o recruta
tresmalhado, provindo dos cumes da Gardunha.
Ora, o Alferes tinha por bem certo que o
recruta tresmalhado cavalo de volteio jamais seria, porém, alguma coisa, nas
linhas do rosto, no olhar inquieto e tímido e na expressão da linguagem corporal de animal acossado,
mas não vencido, sim, alguma coisa, intuição ou fezada, lhe dizia ao resiliente
Alferes que a criatura, cavalgadura ou apoucalhado,
poderia ser recuperada; em suma, o jovem Aspirante,
que Alferes ainda não era, negava-se, em sua
generosidade, a enviar o Assobio, que
estava prestes a sê-lo, para o matadouro, isto é, recambiado, como encomenda inútil, para os
cumes da Gardunha, onde desceria mais um degrau na escala da desgraça e da desconsideração
social, pois não se iria livrar do labéu que “nem para a guerra servia”... E, então, qual a rapariga casadoira o
iria pretender, ainda que, como ele, “apoucalhada”
pela vida?
O ponto, para o
Alferes (que meses depois seria), estava assim em saber decifrar, num ou outro
assomo de sociabilidade do “apoucalhado” recruta, logo, tal assomo, recolhido à
mínima interpelação por amigável que fosse,
a pequena diferença escondida, a latência de possibilidades inesperadas,
com que sabiamente a Natureza compensa seus desvios perversos ou os disformes
aleijões que as humanas criaturas a si próprias se infligem. No caso, a questão
era, portanto, saber, exactamente, qual o quid,
o código secreto, o subtil movimento, ou pequeno grão de coisa nenhuma que iria
iluminar a mente descuidada do Alferes, de forma a poder organizar a gramática
de entendimento do “apoucalhado”, enconchado em permanente em tensão defensiva,
como amiba em meio hostil, que não consente tubo de ensaio ou lupa.
Acontece que o
jovem oficial, desde os tempos de rapaz, quando, briosamente, alimentava, todos
os anos, pela Primavera, desafios de vida ou de morte com um melro trocista e
cantador, estimulado pelo Zé Fardela, pastor
na casa paterna, (que outra casa, ao longo da vida, outra o rapaz teve tão sua)
aprendera a imitar o assobio trocista do melro, talento indispensável para a
peleja, canto em que ainda hoje se refugia quando alguma amarga inquietação o toma,
como que a “assobiar para o lado”, de
tal sorte que o Alferes, manifestamente preocupado, face à incapacidade em dar
“aparência” de soldado ao casmurro do Assobio,
mínima que fosse, que lhe evitasse o
açougue, quer dizer, que lhe evitasse a remissão à procedência, nos cumes da
Gardunha, como encomenda perdida, acontece assim que, num momento de evasão,
com o pelotão descontraído na parada, em intervalo de exercícios militares,
inadvertidamente, tombam dos lábios do jovem oficial, denunciando a sua preocupação
de momento, umas distraídas e mal audíveis notas assobiadas do que se presume
fosse o cantar de um melro.
Como se
compreende, indiferentes ao canto dos pássaros e aos desígnios das ocultas
veredas da alma do assobiador, nem os
recrutas, nem “cabos milicianos”,
comandantes de secção, futuros furriéis
meses mais tarde, nem o próprio Aspirante,
ele próprio, que Alferes ainda não era, se detiveram
naquele despercebido e inconsciente assobio, desenxabida imitação de cantar de
melro. Apenas o Apoucalhado recruta,
que Assobio ainda não era, mal caída a primeira nota daquele
arremedo de canto, disparou como uma mola contida, narinas fumegantes e fogo
nos olhos, como se alazão fosse, a quem assentam, pela primeira vez, a sela e,
em inquieto alvoroço, fixou o Aspirante,
não se sabe se para o fulminar, se para lhe agradecer o conforto de um som
familiar.
Assim, o
considerou o jovem oficial que, em tão veemente reacção, pressentiu ser o canto
do melro, distraidamente soprado em ruminação de seus cuidados, a pedra de
toque, o signo e código secreto, gatilho ou espoleta, seja o que for, que
haveria de abrir a mente do “apoucalhado” recruta, a jogar-se, como promessa
retardada, no destino das humanas criaturas e seu atávico desígnio de apenas
poderem sobreviver em sociedade. Insistiu, por isso, o Alferes, no sopro, arremedando o pássaro, observando os mínimos
sinais e a distensão do rosto do recruta, que em breve seria entronizado como Assobio, e atreveu-se a um cúmplice
piscar de olho, quando o rosto daquela encomenda extraviada se iluminou, por
momentos, no que, ao jovem oficial, se lhe afigurou como tímido sorriso.
E, então, inesperadamente,
como por encanto, provindo dos confins do Universo musical, como se de uma
flauta mágica se tratasse, ou pífaro de prata, caldeado pela divina Euterpe, o
harmonioso canto do melro, em todos os seus timbres delicados, desprendeu-se,
afinado e arrebatador, no cristalino sopro dos lábios do “Apoucalhado”, com o Alferes procurando dar réplica, em seu frustre
talento de assobiador.
E, assim, se
mantiveram, por largos minutos, como dois “apoucalhados” fora do Mundo, o Apoucalhado, ele próprio, como primeiro
pífaro, a repenicar o canto esquivo do
melro e o Aspirante assobiador, a tropeçar nas notas mais
subtis do canto. Agora era visível o rubor de contentamento no rosto do
tresmalhado recruta, perante o restante pelotão, que atraído pelo insólito
espectáculo rodeava o Assobio,
que naquele transe iria sê-lo, e o jovem oficial, comandante de pelotão, que
persistia e insistia no concerto, perante a perplexidade dos seus comandados.
- “Agora o canto da Cotovia!...” – sugeria
o Alferes, entre o desafio e a sedução. E resposta vinha imediata, no assobio
treinado do “Apoucalhado”, que,
perante a cumplicidade do jovem oficial e o alagar do circulo de recrutas, que
escutavam embebecidos, requintava nos trinados. E depois da cotovia, a
toutinegra, o pintassilgo, o faustoso gaio, o estorninho, o arrolhar dos
apaixonados pombos, o voo espantando de perdizes e por aí fora, num matizado
naipe de sons e cantos que surpreendiam pelo primor da execução e pelo
inesperado talento de um “apoucalhado” recruta
em risco de ser recambiado, como encomenda fora de prazo, por incapaz e má
figura militar.
Como facilmente
se compreende, o grupinho dos alfacinhas
reguilas do bairro de Alcântara eram, entre os recrutas do pelotão, os mais
embebecidos e entusiasmados admiradores do inesperado talento do recruta “apoucalhado”,
pois que, fora o grito murcho das gaivotas, adivinhando tempestades, ou o piar
de algum pardalito ladino, caçando
migalhas por entre as mesas da esplanada, ou o canto colorido do canário da
menina, em alguma janela do bairro, a despertar pulsões de desejo aos gatos
vadios, outras aves canoras, ou outros cânticos campestres, os alfacinhas conheciam, nem a superioridade
da sua condição urbana e operária, lhes permitia admitir que o campo e a serra
pudessem criar outra coisa digna de registo, para além dos nabos. Tinham, porém, ali, à vista de todos, o desmentido dos desmentidos e a prova provada de que todos e cada um tem seu préstimo e seu oculto talento e quando o sol nasce a todos deve, por isso, cobrir com a mesma dignidade.
E, então, os reguilas alfacinhas, como se celebração
iniciática fosse, rodearam o “apoucalhado”
num círculo fechado, deram as mãos e o reconheceram
como seu.
E logo ali o nomearam:"ASSOBIO".
10 comentários:
Boa alusão ao divino Cardeal Cerejeira,("Que Deus haja"), e de facto as regras, militares ou outras nunca se importaram nem importarão com os "apoucalhados", mas como tão bem ficou explicitado no texto; qualquer um tem em si um qualquer talento.
Agora já sabemos a origem do epíteto "Assobio"! :-)
Uma escrita cativante!
xx
Este Assobio poliédrico mas fino no canto e nos gestos ainda vai dar que falar no outro lado do cais
Abraço amigo
Até estou cansada. Do olhar, claro. Que "bué da" texto!
Uma escrita muita engraçada, fina, masculina, com todas as letras e vocábulos, repleta de memórias, onde a tropa se misturou, inteligentemente com a política. Tem de estar tudo a tocar "na mesma nota", caso não... a "orquestra" desafina.
Pronto, e o homem lá foi batizado.
Agradeço a visita e comentário no meu blogue.
Beijo.
O diferente sempre cria o incomodo no sistema da
normalidade, o espelho desagradável a refletir a
imperfeição do convencional. Mas, justamente este
ser diferente, de fora da rigidez do sistema, sempre
é o que renova,o que oxigena a vida como um "Assobio",
o inesperado "canto da cotovia" na afirmação:
"De que todos e cada um tem seu préstimo e seu oculto
talento e quando o sol nasce a todos deve, por isso,
cobrir com a mesma dignidade."
O teu talento de escritor é também um canto de
pássaro raro, viu escritor que não se diz escritor...rss
Uma leitora fiel desta viagem, fico com os meus olhos
brilhando de curiosidade na continuação...rss
beijo.
Um texto impressionante que nos prende do princípio ao fim.
Infelizmente na actual sociedade, o talento, que todos têm, está a ser desperdiçado e temos que assobiar longe daqui.
Bom Natal !
Um beijinho
Fê
O que um bom assobio pode fazer...
Uma história bem contada, a deste capítulo. Tal como nos anteriores, de resto. Com uma excelente narrativa, que prende o leitor da primeira à última linha.
Caro amigo, tem um bom fim de semana.
E um NATAL MUITO FELIZ, na companhia dos que te são mais queridos.
Abraço.
Hoje acordei de madrugada com um assobio
sei que foi um pássaro
mas pensei no teu
Abraço
Quem é "Apoucalhado" aqui, nesta tropa fandanga? O aspirante que irá ser Alferes, os reguilas da grande urbe que nomearam o "Assobio" ou o Assobio que passava por "Apoucalhado"?.
Um fragmento que merece um assobio.
Abraço fraterno
Ah, meu amigo, a saga do mergulho ao mais profundo do Apoucalhado está muito bem conseguida.
Aguardo, em ânsias bem talhadas, o nóvel enquadramento do já Assobio.
(Isto é literatura, não tenha a menor dúvida)
Forte abraço
A narrativa "apouca-se-me" perante a vontade de ler.
Estaremos perante umas novas "Farpas"?
Lídia
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