Evoco-te, Maria Adelaide, num capricho de narrativa,
pois bem sabemos ambos que transportar-te para este cenário de guerra é o
mesmo, mal comparado, que plantar flor delicada em estepe fria e que daqui
sairás com a mesma sem razão com que agora chegas. Mas que queres tu, Maria
Adelaide, neste cruzamento de linhas, que a si próprias se desenham, neste afã
de tudo contar como se vida fosse, nesta ilusão de dominar o tempo, como se a
guerra se erguesse como tempo e não fosse apenas buraco negro e a narrativa
cumprisse algum desígnio que não seja o desígnio de a si própria se encenar,
como sonho ou fantasmagoria, neste espaço da Tabanca, também ele, como a
escrita, volúvel e volátil, neste espaço, dizia, evocar, aqui e agora, a tua
presença cálida e o perfume de tua existência derramada sobre a minha, é uma
outra forma de (te) dizer e contar o inarrável, certo que, como véu de maternal
desvelo, vens dulcificar a vida, como se vida fosses, e então os escombros da
guerra, se não habitáveis, serão, pelo menos, de arestas menos penosas.
Requeiro-te assim que fiques, Maria Adelaide, não
testemunha envolvida, mas apenas presença, com um traço de ironia espelhado no rosto,
cúmplice do jogo da escrita a que contrafeita te arrasto, mas fica, cobrindo com
teu manto e teu silêncio, o registo das horas e o decurso da escrita, que vida
se quer, na arquitectura e na encenação das personagens, que espreitam, e na
figuração dos acontecimentos. Sei bem o que pensas e que teus lábios suspendem
as palavras que, por enquanto, manténs reféns de teu sorriso, que outra coisa não
é senão a escapatória por onde evacuas as tuas ”dores de África”, que sendo
Mãe, para ti foi também madrasta.
E sei também que, no confronto de vidas
contrastantes, verso e reverso da mesma pulsão e itinerário de escrita, sei,
dizia, que em teu lugar, Maria Adelaide, melhor deveria erguer-se Lia, a
soberaníssima Lia, a Lia das infantis brincadeiras e devaneios do Alferes ainda
não alferes, nem sequer projecto, mas apenas menino de sua Mãe e que, nesse tempo
de diluída memória, ela, Lia, o salvou, amoravelmente, das penas do Inferno por
excomunhão patenteada de Dona Elisa, pois que, neste “Agora” da escrita, o
autor (como se autor houvesse) desenha, no debruado do Tempo-Presente, o percurso
da tragédia e da infâmia, e seria Lia e
não tu, Maria Adelaide, apesar de teus desencontros com a vida, a escolha da
tela mais adequada para configuração da escrita, como se vidas sobrepostas
fossem as nossas, na matriz e no âmago: Lia, a quem África foi refúgio e
expiação de sua vergonha e pecado e o Alferes, outrora menino de sua mãe, salvo
por Lia das penas do Inferno, condenado, no cenário da Tabanca, à dantesca
descida aos infernos. E à demonstração cínica da orquestração da guerra pelos
seus próceres.
No entanto elejo-te a ti, Maria Adelaide que, embora
não sendo ainda, um dia serás, mais tarde, num tempo outro, em que África será
Regresso e Retorno e as ruas se engalanarão de dias festivos, pois é em ti que se
projectam todas as linhas, tu que és o alvo de todas as emoções com que se vai
cerzindo a narrativa. Também Lia virá, certamente, depois conhecer o fel e
amargo pão e a crueldade de África colonial, nos restos do Império, a escorrer
na avalanche, com o filho pela mão, fruto sagrado da sua tentação e dos amores
com o Padre Francisco, que em África se finou ruído de remorso e de febres malignas.
O capitão
Mascarenhas, ao fim da tarde, encerrado o bridge
e o conhaque, chamara o Alferes, ao seu gabinete, que antes fora cama ampla e boudoir de Dona Rosalinda e campo de
refregas outras, que não de guerra, esquecidas, no entanto, no rolar dos dias
da Tabanca, pois que, neste agora dos acontecimentos, Dona Rosalinda é já
passado, empresária de hotelaria em Bissau, a apascentar o afã das grandes e das
pequenas coisas, desde providenciar limpezas, que casa sua seria sempre um
primor, até ao “acolhimento” de suas meninas, na pensão assaz frequentada, por
militares em trânsito, desde que ostentem divisas ou galões doirados, pois Dona
Rosalinda não é parva nenhuma, bem sabendo ela que, na arte de tal negócio, o
nível da “frequência” confere estatuto e dignidade ao “estabelecimento”, que
aliás devera ser classificado de verdadeiro “serviço público” e quiçá
condecorado pelo notável “esforço de guerra” que prestou ao “Corpo
Expedicionário” da Província, como sanatório de almas ou como depósito de
ejaculações e sofá psiquiátrico que, qual penso rápido, se não sararam, pelo
menos disfarçaram (ou adiaram) muitos traumas de guerra.
Mas isso são
contas de outro rosário, pois que Dona Rosalinda, de momento, para aqui não é
chamada.
Afastou, por
isso, o Alferes, com um vago sorriso, a lembrança dos ofegantes afrontamentos e
dos tórridos assaltos nocturnos da excelsa senhora e, em passada larga,
atravessou o compartimento ao encontro do capitão Mascarenhas.
Julgou o Alferes
tratar-se de uma qualquer observação de serviço ou uma outra alteração na
rotina do aquartelamento, ou alguma questão de intendência que o capitão
Mascarenhas desejasse discutir, tarefas que decorrem directamente do seu múnus
militar, como Adjunto do Comandante da Companhia de Cavalaria, deveres que o
Alferes aliás aceitava com bonomia, pois que, liberto das funções de Comandante
de Pelotão Operacional, estaria dispensado, pelo menos em teoria, das operações
militares no mato, a menos que algum dos seus camaradas, por uma qualquer outra
diligência ou impossibilidade física, não pudesse episodicamente comandar o
respectivo Pelotão, ou o próprio capitão Mascarenhas, declinasse as suas
funções, por motivos operacionais ou ausência do perímetro da quadricula
territorial, sob seu comando. Então sim, o Alferes estaria investido opus legis, quer dizer, por força dos
regulamentos miliares, na alta responsabilidade do comando da Companhia de
Cavalaria.
É certo que
acontecimentos passados, vá lá saber-se por que desleixo ou capricho da mão invisível, que traça o rumo da
narrativa e lhe molda a forma, ainda não vieram à tona, tornara a vida na
Tabanca, até então pachorrenta, numa electrizante tensão, que a proximidade da
fronteira acentuava, mas, tanto quanto o sexto sentido do Alferes permitia
detectar, não se previa nada de especialmente grave que pudesse levar o Capitão
Mascarenhas a antecipar o final do jogo bridge,
tanto mais que estava a ganhar para se reunir a sós com o seu Adjunto,
dispensando a presença dos restantes oficiais, a saber, pois é tempo de virem a
ribalta o Alferes Valentim, amigo das boas e más do horas do Alferes “herói”
ocasional desta narrativa, o Alferes Barbas, fazendo jus à espessa floresta de
pelos que lhe cobria o rosto, o Alferes Barros da Selva, que se distinguia pela
sua obtusa teimosia e selvagem vozeirão e o Alferes Médico Cartuchadas, quem
sem comando de tropas, tinha a árdua tarefa de cuidar da saúde dos vivos e
encaixotar os mortos e estropiados.
Veremos as
razões do capitão Mascarenhas.
6 comentários:
Um fragmento de guerra mesclado em fragmentos de amor. E a carícia da poesia a passear a pele dura e enrugada de um cenário que não deixas esquecer.
Talvez seja uma ferida na história de um país, aqui relatada na primeira pessoa.Deixas-me sempre a ideia de regresso.
Beijinho.
Que prosa Manuel, que prosa! Que guerra, que áfrica, que soldados, que mulheres, que vidas, que prosa! E, no entanto, apesar do contado, do que para contar e do que nunca contado será, parece até que sentimos saudades!
Um abraço e vai prosando que o contar acaba por colocar a saudade no seu lugar.
Já li outros "Fragmentos" mas não quis comentar (penso que terei feito apenas um comentário, mas não fui verificar) pois pretendia ir mais atrás para me contextualizar, apesar de se perceber o ambiente narrativo. Como ainda não me foi possível, pronuncio-me sobre a prosa em si.
Verifica-se que sabes enquadrar-te no registo, isto é, o poético quando a personagem o exige, o descritivo e o narrativo quando se trata de escrever sobre os acontecimentos e locais. Em ambos, estamos perante um primor de prosa, com uma notável precisão, propriedade e riqueza vocabulares. O discurso corre fluido e coerente, com os adequados conectores e irrepreensível pontuação.
E isto é PROSA de qualidade superior.
Bjo, amigo :)
A narrativa com "o desígnio de a si própria se encenar,
como sonho ou fantasmagoria" se revela na escrita que
flui na excelência, que o discurso assume os personagens,
com a força da voz que permeia a vida, esta muitas vezes,
palco e público com suas dores. A guerra, uma indiscutível
memória histórica de sofrimentos...
Uma leitura de qualidade literária sempre aqui!
Bj.
pois...meu amigo, Manuel
Pouco poderei acrescentar ao comentário anterior (Odete Ferreira) com a propriedade de quem sabe do que escreve.
Com o qual, aliás, conconcordo integralmente.
Também tenho de ir à origem destes maravilhos fragmentos, o que ainda não fiz, e 'ver' como tudo começou.
O que sei é que estou perante crónicas dum tempo de guerra (essa que fizemos, ou nos fizeram, ou ambas), com uma beleza sem paralelo (e eu já li algumas, doutros escritores), que nos deixam um misto de ternura e paixão.
Gabo-te, igualmente, a riqueza das personagens.
É Obra, Amigo! E tanto gostava que publicasses em livro...
Um caloroso abraço e um bom fim-de-semana.
Tim-tim por tim-tim o autor cria um floreado narrativo sem perder nunca o fio à meada.
E recorre desde sempre às interventivas musas para marcar tempos distintos.
Aguardemos para saber os caminhos que o autor traça na resolução da trama. Até que a última página o diga o livro vai ganhando feição. A ver vamos.
Abraço.
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