domingo, abril 02, 2017

A Configuração do Poder e o Busto de Ronaldo

A configuração do poder é multifacetada. Assume diversas máscaras numa encenação do Mesmo, quer dizer, da articulação dos interesses económicos dominantes, instância última onde reside o verdadeiro rosto (invisível) do poder.

Primeira consequência: não há apenas um sistema formal de poder, mas uma multiplicidade de sistemas de poder, disseminados no interior da sociedade, muitos dos quais meros poderes fácticos, que dizer, sem qualquer estrutura (visível) que os suporte.

Segunda consequência: nenhum sistema de poder é, em si mesmo, autónomo e independente dos restantes: os diversos sistemas de poder desdobram-se uns nos outros, funcionando em rede, retroagindo nos respectivos chamamentos. Decorre, portanto, que o poder não é apenas o "lugar de poder" que se observe, se ocupe, máxime se conquiste, mas sobretudo uma "relação de poder" que se exerce e se sofre - não há poder sem "exercício do poder".

Tradicionalmente o poder de Estado tem assumido o lugar por excelência do "exercício do poder". Compreende-se. O Estado, nas sociedades politicamente organizadas, detém o monopólio da violência. É o único sistema de poder que se poderá impor pela força e pelo constrangimento físico. Quer dizer, o poder Estado é essencialmente coercivo. (…)

Porém, outros sistemas de poder actuam na sociedade. Não pela coerção, mas pela persuasão; não pela imposição da lei e da ordem ou pela violência física se necessário, mas pelas artimanhas da ideologia. De forma mais subtil, portanto. E em imbricada cumplicidade com o poder de Estado.

Como acontece com o poder mediático. (…) O poder mediático ganha cada vez maior expressão com a globalização capitalista e na articulação de novas dimensões daquilo que alguns autores (G. Lipovetsky e H. Juvin - in "O Ocidente Mundializado") designam como "Cultura-Mundo". (…)

As marcas, os objectos, a moda, o turismo, o desporto, a publicidade tendem a ser os mesmos em toda a parte e a ocupar o local simbólico da(s) cultura(s) e o desígnios da ética e da estética. Como se escreve na obra citada "quando a economia se torna cultura e quando o cultural se faz comércio, chega o momento da cultura-mundo". (…)

No entanto, somos tributários de um tempo em que a cultura iluminava a existência e, no seu corpo de valores, regras e sistemas simbólicos, abria espaço ao sonho e estimulava a superação das contingências históricas. Havia assim integração e identificação social dos indivíduos que, nos seus processos de trabalho e socialização, estabeleciam laços e criavam solidariedades.

A cultura gozava então de uma certa "autonomia relativa" em relação à "economia", privilégio de que pagava o preço da sua "marginalização", que era ao mesmo tempo a sua fragilidade e a sua fortaleza. (…)

Na actual fase da humanidade, porém, a cultura entra directamente no circuito de acumulação capitalista e na realização do lucro. Por exemplo, que a UNESCO estima que a contribuição das denominadas "indústrias culturais" representa 7% do PIB mundial e que, nos países da OCDE, desde o ano 2000, o crescimento destas "indústrias" é entre 5,2% a 20% ao ano-

Para além desta metamorfose da cultura em mais-valia económica, o papel específico da denominada "cultura-mundo", cumpre-se, sobretudo, na eficaz "pacificação" de amplas camadas de população “descartáveis” do processo produtivo face às inovações tecnológicas, potencialmente perigosas devido à sua marginalização, cuja frustração social será compensada. ou anestesiada. mediante doses maciças de entretenimento embrutecedor (…)

Enfim, a "imbecilização" dos indivíduos como estratégia de poder.
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E que viva o busto do Ronaldo que espero um dia poder ver, nas Escolas, Quartéis e demais serviços públicos, como símbolo da República, no lugar do busto da vetusta Mariana.


Manuel Veiga

SEARA NOVA nº1721
Outubro 2012




11 comentários:

Pata Negra disse...

Nunca me surpreende o que se espera! Ronaldo, no que pessoalmente me diz, não passa dum puto que joga muito bem à bola! Se me pedissem para colocar o meu nome ao aeroporto da Madeira ou ao beco em que nasci, eu nunca aceitaria! Não dou graças a Deus por não jogar bem à bola, esse Ronaldo parece-me um bom rapaz, o nosso tempo histórico é este, resisto, resistimos. Busto, nome de aeroporto, apoiante de candidato, candidato, panteão, herói? Queiram-me vender o que quiserem mas eu só adquiro as ideias e as pessoas que juntas comigo transformam o mundo. Os jogos de futebol, embora muitas vezes sejam desafiantes, parecem-me sempre muito iguais.
Façam de Ronaldo o que quiserem e ele que seja o quiser ser. De mim nunca farão o que eu não quiser ser e eu quero apenas, com o meu modesto contributo, transformar. Porque é que ninguém se lembrou de dar o nome "25 de Abril" ao aeroporto? Porque é que "Sá Carneiro" é nome de tanta rua?
Chamem a tudo o que quiserem mas nem ao meu túmulo ponham o meu nome! Posso ser produtor, produtivo, produção mas produto - nunca!

Rogério G.V. Pereira disse...

«...outros sistemas de poder actuam na sociedade. Não pela coerção, mas pela persuasão; não pela imposição da lei e da ordem ou pela violência física se necessário, mas pelas artimanhas da ideologia. De forma mais subtil, portanto. E em imbricada cumplicidade com o poder de Estado.»
(...)
«Enfim, a "imbecilização" dos indivíduos como estratégia de poder.»

(sobre Ronaldo, o nosso "Pata" disse tudo)

Tais Luso de Carvalho disse...

O poder é sempre multifacetado, por inúmeras vezes acompanhado de extrema violência, caminha por labirintos e chega lá, onde quer. E venha de onde vier: seja por coerção, persuasão... o poder traz consigo a demonstração de força, de violência. Abusivo quase sempre. Chocante. E tudo gera mais violência, mais ações impensadas. Ou apaixonadas. Ou ideológicas.
Bjs, amigo Manuel.
Uma ótima semana pra você.

Teresa Almeida disse...

Um artigo excelente, como é teu apanágio.
São assertivos os teus alertas e é nossa obrigação tentarmos contribuir para a fazer do mundo um local onde todos possam ser mais felizes.

Beijinho, Manuel Veiga.



Marta Vinhais disse...


Excelente; a preocupação com o que não é importante e esquecer por completo o que é essencial à vida das pessoas...
Obrigada pela visita
Beijos e abraços
Marta

Graça Sampaio disse...

O acessório sempre mais empolado do que o essencial - é o que temos. No entanto, deixe-me que lhe diga que este texto é bem mais hermético do que os seus belos, se bem que por vezes duros mas sempre luminosos, poemas.

Beijinho.

(Gosto sempre da música de José Afonso)

Agostinho disse...

Bom apontamento.
Num tempo em que o ruído é o maná dos "fiéis" da alienação, animados a uma velocidade que inviabiliza qualquer reflexão e tomada de consciência, a tendência é o engrossamento da manada. Os chamados descartáveis da sociedade irão crescer exponencialmente. Como é que o sistema irá controlar as pessoas sem que os vidros se quebrem?, é a questão que ponho. Mas, um dia isso acontecerá.
Quanto ao Ronaldo e o busto que são um embuste ao serviço do sistema, do Negócio.
Ronaldo não é um puto que saiu de um espaço social desfavorecido, que joga bem à bola, é uma marca: CR7.
A piada disto é que todos se curvam à dinâmica do poder económico. Veja-se como o poder político se agacha. A "cerimónia" do baptismo do Aeroporto do Funchal nem é para rir, é para chorar. Pelo que julgo saber, o processo de mudança de nome do Aeroporto ainda está a decorrer mas o Poder Político e Administrativo do Estado foi beber champanhe à festança.
Ou seja, as Brandoas continuam a frutificar.
Abraço.

Suzete Brainer disse...

Este exercício de poder tão bem configurado como a "cultura-mundo" na
globalização do sistema capitalista a oprimir e massificar os indivíduos
numa ideologia dominante e perversa na aniquilação de e sobre os processos de
conscientização e crítica, sobre as artimanhas deste sistema ideológico.
Nesta ideologia a "imbecilização" dos indivíduos é muito bem direcionada e
apoiada como grande recurso deste poder, na manipulação da anestesia do
pensamento crítico, resultando uma alienação como identidade e afastando
uma reação saudável de contestador e construtores de seres na função de
agentes de mudanças.
Verificamos pessoas-produtos como modelos de uma ideologia na contra-mão
da cultura e ética.
Parabéns pelo texto, meu amigo.
Grata pela leitura aqui!
Beijo.

Odete Ferreira disse...

Este artigo, à semelhança de outros teus, é enorme na sua abrangência, pertinência e muito bem sustentado no plano das ideias; acresce a qualidade literária, digno de figurar na revista. Relevo, para aduzir algo de pessoal:
-o facto de ser cada vez mais difícil apurar a essência da verdade numa sociedade em que muitos dos eventos são fabricados para desviar a atenção de outros:
2- a mercantilização da cultura e, sobretudo, os modismos a que muitas autarquias aderem, sem cuidar da sua adequação ao território;
3- não entrar no mainstream é, praticamente, uma batalha perdida; daí que o embrutecimento seja erva que grassa descontroladamente. Não admira, pois, que coisas destas "à Ronaldo" (até o admiro como profissional) proliferem.
Bjo, meu amigo

Jaime Portela disse...

O poder alarga continuamente os seus limites.
E atinge, muitas vezes, a indecência.
Mas dar o nome do Ronaldo ao aeroporto da madeira não é indecente, é ridículo.
Enfim, há coisas bem piores...
Excelente post.
Um abraço, caro amigo Veiga.

José Carlos Sant Anna disse...

E ficará ainda muito pior, meu caro Manuel... porque há muito nos desinteressamos pelas questões prementes, a sociedade, via de regra, deixa que os detentores façam o que querem do jeito que querem...
Não pense que aqui é diferente, talvez muito pior. Também aqui substituímos o nome de batismo do nosso aeroporto que era uma homenagem à nossa luta pela independência, que só aconteceu um ano depois da independência do Brasil, pasme, não conto essa história porque há estreita relação com os nossos irmãos portugueses (rsrsrs), peplo nome de político cujo pai fora um dos maiores caciques da Capitania da Bahia.
Forte abraço, meu caro amigo,

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