“... e a tia Vicência espalhava aquele olhar, que prepara o erguer, o arrastar de cadeira – quando D.Teotóneo, erguendo o seu copo de vinho do Porto, com a outra mão apoiada à mesa, meio erguido, chamou Jacinto, e numa voz respeitosa, quase cava:
- “Esta é toda particular e entre nós... Brindo ao ausente! “
Esvaziou o copo, como em religião, pontificando. Jacinto bebeu assombrado, sem compreender. As cadeiras arrastavam-se – eu dei o braço à tia Albergaria. E só compreendi, na sala, quando o Dr. Alípio, com sua chávena de café e o charuto fumegante, me disse, num daqueles seus olhares finos que lhe valiam a alcunha de “Dr. Agudo”:
- “Espero que ao menos, cá por Guiães, não se erga de novo a forca...”
E o mesmo fino olhar me indicava o D. Teotóneo, que arrastara Jacinto para entre as cortinas duma janela, e discorria, com ar de fé e de mistério. Era o miguelismo, por Deus! O bom Teotóneo considerava o Jacinto como hereditário, ferrenho miguelista – e na sua inesperada vinda ao solar de Tormes, entrevia uma missão política, o começo de uma propaganda enérgica, e o primeiro passo para a Restauração.
E na reserva daqueles cavalheiros, ante o meu Príncipe, eu senti então a suspeita liberal, o receio duma influência rica, nova, nas eleições próximas, e nascente irritação contra as velhas ideias, representadas naquele moço, tão rico, de civilização tão superior. Quase entornei o café, na alegre surpresa daquela sandice. E retive o Dr. Alípio Mello Ribeiro, que repunha a chávena na bandeja, fitei, com um pouco de riso, o Dr. Agudo:
- “Então, francamente, os amigos imaginam que o Jacinto veio para Tormes trabalhar no miguelismo?...
Muito sério, Mello Ribeiro chegou o seu grosso bigode à minha orelha:
- “Até corre, como certo, que o Príncipe D. Miguel está com ele em Tormes!...”
E como eu os considerava esgazeado, o Dr. Alípio – tão agudo! – confirmou:
- “É o que corre... Disfarçado em criado!”
Em criado? Oh, Santo Deus! Era o Baptista!
Justamente, Ricardo Velloso veio, puxando do seu cigarrinho, para acender no meu charuto. E o bom do Rebello logo invocou o seu testemunho – pois não corria, que o filho de D. Miguel estava em Tormes, escondido?
- “Disfarçado em lacaio! ...” – confirmou logo o digno Rebello. (...)
Jacinto, que se libertara do velho D. Teotóneo, e ainda conservava um resto de riso, de assombro divertido, vinha para mim desabafar:
- “Extraordinário! Vejo que, aqui, na serra, ainda se conservam, sem uma ruga, as velhas e boas ideias ... “
Imediatamente, sem se conter, Mello Ribeiro acudiu:
- “É conforme o que V. Exª chamar “boas ideias”...
E eu agora, furioso com aquela disparatada invenção, que cercava de hostilidade o meu pobre Jacinto, estragava aquela amável noite de anos, intervim, vivamente:
- “Tu jogas o voltarete, Jacinto? Não jogas. Então vamos arranjar duas mesas... O D. Teotóneo há-de querer cartas...”
Eça de Queiroz – in “A cidade e as Serras”
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“Empanturrados de civilização”, (e de blogs! ) não se atrevam os meus (minhas) amigos(as) à subir à serra para fazer política, neste tempo de pousio! É que, andam por aí, em cada esquina do País, muito esqueletos nos armários e briosos “Drs. Agudos” muito ciosos das (suas) boas ideias ...
Joguem antes o voltarete...
quinta-feira, julho 27, 2006
Outras Leituras III – Um Brinde em Tormes
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11 comentários:
Impagável o Eça.
Este excerto é um bom exemplo. Gostei de o reler.
Abraço e boas férias...
Por isso é que eu ando a ler "O Mistério da Estrada de Sintra"!
Um abraço.
Não sei porquê, mas "tempo de pousio" faz-me lembrar "The hidden Agenda"...
Já agora as regras do jogo, que eu não sei jogar o voltarete.
Este é daqueles livros a que volto sempre e sempre me encanta.
E o mal é que as serras andam a ficar despovoadas!
Passo, passo... que eu não sou muito de jogos. E fazer política com este sol? Que cansaço... :))
Mas quanto ao Eça, alinho, pois. Deste-me vontade de reler. **
E nesta época de férias e de fogos, não são as serras que acoitam os “lobos”…
Olá! Vim espreitar.
Mesmo de férias "postas" coisas bonitas. Obrigada. Eu volto muito brevemente a este serviço. Não é que já tenho saudades deste mundo?
Beijo.
Licínia
caro heréctico,
vim ler e desejar-lhe um óptimo fim de semana
um beijinho
alice
Como já o disse, amigo: se por aí o tempo das discussões políticas ora repousam... por cá mal e mal começaram!
Bom te ler, em textos selecionados.
Um abraço fraterno.
Excelente!
Abraço.
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