Julgava eu que a História se aprendia na escola, no culto da língua portuguesa e na leitura dos compêndios. Digo julgava, porque sabia de ciência certa, que por múltiplos e públicos factores, no nosso País, a escola (em particular a escola pública) se tem demitido da sua essencial função de ensinar. Assim, não me surpreende que, face à “refracção” do sistema de ensino, a Televisão pretenda “canabilizar” o seu espaço e a sua vocação e, numa pulsão totalizante, degradar o processo de aprendizagem ao exercício de uma mera operação de “formatação” dos indivíduos. E, neste itinerário, a História pátria, se devolve em “fast food”, em programa televisivo ...
Devo confessar que hesitei em escrever sobre este assunto. Acrescento mesmo que mantinha, em relação ao anúncio do programa, uma certa bonomia tolerante. Afinal, à primeira vista, tratar-se-ia de um programa inócuo, igual a tantos outros. E, no meio de tanto lixo televisivo, aludir, ainda que a traço grosso, aos vultos maiores da história pátria, seria sempre um elemento positivo...
Isto julgava eu. Tive, porém, a “infeliz” ideia de ver o debate de lançamento do celebrado programa de eleição “maior português” e ao apelo desenfreado ao voto dos portugueses, para então compreender que a minha bonomia era um pouco ingénua e o que está em causa é, sem dúvida, uma bem urdida operação de conformação ideológica.
Que não se trata de um programa qualquer, ficou provado no “investimento” televisivo do lançamento. Desde logo, um painel diversificado de personalidades sob a batuta diligente de Dona Elisa, já refeita, certamente, dos efeitos do “smog” londrino e que, agora, a televisão pública acolhe, generosamente, compensando, porventura, as sinecuras perdidas como adida cultural (?) em Londres. Vejam “se Paris (ou Londres) não valem bem uma missa”, quer dizer, se o programa não é bem compensador para alguns!...
Claro que vozes sensatas procuraram colocar a questão na sua verdade, buscando esclarecer que a História não é uma galeria de heróis, mas antes o processo de luta emancipadora dos povos, que são, estes sim, da história, o verdadeiro sujeito. Mas logo estas vozes foram submergidas pela lógica do programa, pelo enfado de Dona Elisa e pelos oportunos exteriores, ficando então a pairar, como nevoeiro persistente, a excelência da ideia e o empenho dos telespectadores na votação anunciada.
Foi, então, para mim evidente, que os poderes dominantes querem os portugueses, especialmente os jovens, entretidos por uns belos tempos, na escolha do “maior português”. Qual crise, qual quê? Os apertos orçamentais destinam-se a salvar a Pátria e Sócrates é “um estadista corajoso”!... Subliminarmente, “o grande português”, dos tempos modernos...
O velho “Botas” faz parte da proposta lista de candidatos ao “maior português”?!... Bah! Que importa?!... Como foi patente, o tom geral é de que essa circunstância já não “irrita” ninguém. É apenas um grãozinho de pimenta no concurso, que tem o indiscutível “mérito” de acicatar a participação na votação e de entreter o pagode com a discussão! Reproduzindo, como é de prever, as opiniões contraditórias do painel de convidados. Ora vejam se “Dona Televisão” não é uma sabidona!...
A vida, porém, é irónica e a história conta-se, tantas vezes, pelo lado errado. O discurso mais elaborado tem, por vezes, deslizes que subvertem o seu sentido para quem estiver atento. Como a palavra inesperada (fora do contexto) daquela jovem licenciada que, valendo-se dos seus “dois minutos de glória” na televisão, como jornalista desempregada, fez apelo a uma oferta de emprego ...
Não há pois, manto da propaganda, por mais diáfano ou poderoso que seja, que tape a dura nudez da verdade. Não há concursos televisivos que parem o pulsar da vida. Aquela jovem, possivelmente, para além dela própria, ergueu-se como símbolo da hora presente. E salvou para mim o programa ...
Quem vota nela?!...
quinta-feira, outubro 26, 2006
"Os Grandes Portugueses..."
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19 comentários:
Com os teus textos não se tem descanso... :-)
Não vi o dito programa, mas uma coisa sei com essa "grande" portuguesa que é a Dona Elisa a dar a cara, juro não tenho vontade nenhuma de ver o dito.
Não faço ideia se tens razão ou não, porque estando fora não tenho acesso aos canais portugueses (já tive, mas era pirata; e recuso-me a pagar 2 assinaturas da TV Cabo...).
Mas dou-te o benefício da dúvida... e daqui a uns 15 dias passo um fim-de-semana em Portugal e talvez subscreva a tua opinião.
Bom fim-de-semana.
Abraço.
Só vi uma vez esse progama, penso que ainda em fase de apresentação e lembro-me de ter suscitado em mim uma série de interrogações. Li o teu artigo e fui consultar o site da RTP. Como é possível juntar no mesmo saco de "grande português", gente tão diferente e de tão diferente "peso" na história e vida deste país? Enfim... e afinal o que é um grande português? Cá para mim, são todos os que aguentam a vida aqui, melhor ou pior e conseguem amar este país apesar de todos os pesares. Se isto não faz sentido, paciência. Entretenham-se a votar no Eusébio e similares ou elejam mesmo o Salazar, porque não? Na América foi o Ronald Reagan, dá para acreditar? **
Vi o programa, melhor, a superficialidade, o tejeito pré-estabelecido, os lugares comuns. Tb para eles o que interessa tudo aquilo?Dói porque somos daqui.
Vota em mim que eu voto em ti.
Andam a tratar-nos como se fôssemos todos débeis mentais.
E os nossos intelectuais a entrarem no jogo e a sujeitarem-se à petulância de Dona Elisa.
Um asco...
Bom fim de semmana.
Não vi o dito programa e, pelo que dizes e pelos comentários, não faço tenção de ver. Da TV vejo os noticiários e os jogos do Sporting ...
Quando andei pela FLL, era como tu dizes:
"a História não é uma galeria de heróis, mas antes o processo de luta emancipadora dos povos, que são, estes sim, da história, o verdadeiro sujeito"
A Vida de Vidro e a Licínia disseram muito bem o que eu não soube dizer. Eu fiquei-me apenas pelo sobressalto saudável de, através do teu texto, ser confrontada de forma bem explícita com mais um incómodo deste nosso país.
A citação de Fernando Pessoa que titula o meu blog, afinal traduz tudo quanto falta fazer.
Um programa daquele jaez acaba por maltratar a história e todo um povo, num jogo de perversões políticas.
Exactamente. A Vida de Vidro, a Licínia e a Maria P. disseram tudo o que eu queria dizer mas de forma educada.
ps: tu és lixado. Deitas sempre óleo na minha fervura!
A operação está em curso e é global. Formata indivíduos conformados porque eles existem predispostos a isso. Eu, por este andar, aposto 50% no Camões e outro tanto na Floribela...
Pensei ainda em votar na Leonor!... Uma Portuguesa de fibra que, viúva, mãe de um deficiente profundo acamado que deixa aos cuidados da avó com mais de 80 anos, sai da casa às seis da manhã para trabalhar, malgrado a artrite que lhe tolhe as articulações, a carrada de benzodiazepinas que lhe prescrevem para não deixar a ansiedade rebentar-lhe o peito e a falta de solidariedade de uma sociedade entretida com votações e programas de fazer có-có!...
Pensei, votar na Leonor... Mas depois caí na realidade e entendi: a Leonor é pequena, tem mais de 60 anos, as mamas caídas, escoliose, cifose, lordose... passa a vida a consumir medicamentos comparticipados pelo estado... no proprio posto de trabalho já não dá o rendimento desejado e ocupa o lugar que bem podia ser de um jovem desempregado... a Leonor, a bem dizer, para esta coisa de encontrar grandes Portugueses, concerteza que não conta para nada!
Que pena não ter visto. Foi, de certeza, um grande momento televisivo. Um abraço.
Vou aderir à ideia da Licínia e vou votar no Cokas. Já não se lembram quem ele é? Não interessa. Ele vai votar em mim que sou uma grande portuguesa, porque sou mãe, sou mulher, sou filha, sou amante, sou trabalhadora...digam lá que não sou grande .E o Cokas é grande na língua. Grande desbocado. Ficou a barafustar porque voltámos ao tempo dos heróis. Quem é que vai ganhar com aquelas chamadas todas?
Beijos
eu!!!!!!!!!!!!
e claro que si. aceito o abraço.
:)))))
A essa hora estava eu a fazer o meu melhor para inverter a corrente... mas ainda assim hás-de dar-me as coordenadas desse programa, que já tinha visto num outdoor sem compreender bem o que era...
Gostei sobremaneira da crónica aí debaixo. São poucas as vozes que se levantam a favor dos funcionários públicos. O governo descobriu agora a forma legal de incluir também uma série de profes do sistema no número que citaste...
Um abraço!
Este programa de votação na nossa figura nacional que mais nos agrada é uma brincadeira.
As pessoas cada vez mais refugian-se em programas que lhes exija cada vez menos accção intelectual desde as 9 da noite à 1 da manhã. Quase por graça, aceitam votar porque será engraçado e não impõe grandes conhecimentos, nem responsabiliza ninguém.
o «SOL» publicou recentemente uma sondagem em que o pior e o melhor PR era por acaso, desde implantação da Republica, Mario Soares.
Aliás, a facilidade com que as pessoas reclamam que o que precisavamos era de um novo Salazar, conduzirá ao mesmo.
Estes programas são uma patetice.
Estas votações não significam nada.
Um abraço
Olá Herético!
Pois eu cá fiquei chocada, muito chocada quando perguntaram às pessoas na rua quais eram para elas os "Grandes Portugueses" e ouvi respostas do género: Nelly Furtado, Luís Figo, Obwikelu e so on.
O nosso país teve grandes figuras que a história acabou por reconhecer. Pena é que nos tenhamos tornados tão medíocres.
Como dizia Pessoa "Tudo vale a pena quando a alma não é pequena."
Acontece que a nossa alma dos portuguese é tão pequena que se vê ao microscópio!
Quanto à D. Maria Elisa, é mais um "tachinho", agora que foi corrida da embaixada em Londres.
Um beijo
Acho que se vai tornar numa epidemia.
Já recebi e-mails para votar neste e naquele...
E até um para não votar no Salazar...
De qualquer modo vi a lista dos "Grandes Portugueses" e aquilo é uma salgalhada sem pés nem cabeça.
Não estamos lá nós por mero acaso... ehehehehehe
Um abraço.
De acordo. A jovem licenciada marcou pontos,tambem mereceria o meu voto. Mas quanto a mim, principalmente porque apontou no concreto (julgo não estar a confundir a jovem)razões para não votar numa certa personagem que terá sido pretensamente esquecido na lista incial, para levantar a celeuma que se viu, susceptível levar a uma votação vencedora no seu nome. Ela falou, no concreto em familiares seus que conheceram os "mimos" que a tal personagem reservava a quem se lhe opunha.
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