Deixemos, por hoje, o senhor Sócrates e a sua governação, ao que parece com assanhados admiradores por estas paragens (aliás bem vindos). Falemos da chamada sociedade civil. Dois exemplos edificantes, reveladores do alto sentido cívico e da disponibilidade dos “interesses privados” para com os mais altos desígnios da Pátria, consubstanciados, nesta emergência, nas Finanças Públicas, como teimam em pretender fazer-nos acreditar...
Vejamos.
Discretamente, passou, em breve referência, nos órgãos da comunicação social, a divulgação de um relatório da Inspecção Geral do Trabalho que diz uma coisa assombrosa. Em metade, das 32 delegações regionais daquela instituição, registaram-se actos de violência contra os inspectores de trabalho, desde a obstrução física à entrada nas empresas, a actos de violência verbal e de pressão psicológica. O relatório refere, aliás significativamente, que apenas são relatados os casos mais graves, porquanto “muitos inspectores se sentem envergonhados em revelarem esses episódios”.
Importa acrescentar que o documento foi elaborado no contexto de um inquérito da União Europeia, depois do assassínio de dois inspectores de trabalho franceses, quando se encontravam no exercício das suas funções. Louva-se aqui o desvelo da União Europeia. Pena é que fosse necessário um duplo homicídio...
Porém, a verdadeira questão, na sua essência, é ainda mais significativa e inquietante. Os inspectores de trabalho, no exercício das respectivas funções, estão investidos de poderes de autoridade do Estado, pelo que ameaçá-los ou agredi-los, por palavras ou por acções, constitui crime, seja quem for que queira impedir o desempenho das suas funções. Patrões ou os seus capangas.
A brutalidade desta prática (ao parece habitual), ilumina ainda outros aspectos conexos a estes abusos patronais. De facto, se funcionários do Estado, dotados de poderes de autoridade, são insultados e agredidos, o que não se passará no interior das empresas objecto de inspecção, quanto ao cumprimento da lei? Se, num estado de direito, um qualquer patrão se considera impune perante um crime de desobediência face a agentes do Estado e tem a suprema arrogância de clamar que “aqui, manda sou eu”, o que fará com aqueles que na empresa trabalham, sabe Deus em que condições salariais ou de segurança e de higiene no trabalho...
Segundo caso exemplar. Ao que parece, antecipando-se à entrada em vigor do novo regime de arrendamento urbano, os senhorios estão a propor aos inquilinos acordos informais, à margem da nova lei. Em que se traduz o esquema? Os senhorios propõem aos respectivos inquilinos um aumento gradual da renda, por um período a combinar, comprometendo-se as partes a não lançar mão dos mecanismos do novo regime de arrendamento urbano. Esclarece, solícita, a Associação Lisbonense de Proprietários que assim se evitarão “os inconvenientes com avaliações e vistorias previstas no novo regime para a actualização das rendas, bem como a possível devassa da vida particular dos inquilinos, em termos familiares, económicos e fiscais...”. Imaginem! Apenas vantagens, como se deduz...
Dir-me-ão, cada um sabe de si e a liberdade de contratos é um princípio fundamental da nossa ordem jurídica. Há aqui, porém, um pequeno senão: a liberdade contratual exerce-se em plena igualdade da partes. Por isso, mesma ordem jurídica impede os contratos leoninos.
O caso é que, neste enredo, quem fica com a parte de leão são os senhorios. Em fraude à lei, libertam-se das obras de conservação (que o novo regime impõe) e, sobretudo, não terão que alterar o valor patrimonial dos prédios arrendados, fugindo por esta via a uma justa tributação.
Estado de Direito?!... Função social da propriedade?!... Bah! Que é isso?! A julgar pelos exemplos, a generalidade da “nossa” iniciativa privada está ao nível de porrete! Sem surpresa, portanto...
segunda-feira, dezembro 04, 2006
Dois casos exemplares...
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13 comentários:
Vivemos num país que parece andar à procura da forma de concertar uma série de problemas gravíssimos.
Violentar fisica e/ou psicológicamente equipas de inspecção é tão grave como tentar o suborno. Como nos tempos que correm a fiscalização e o seu anúncio aparentam algum efeitos -- aguardam-se os resultados -- a violência que referes parecerá óbvia.
Quanto aos arrendamentos, Portugal é estranho: nºão tem parque de oferta recomendável, levando as pessoas a tentar comprar em vez de alugar, as casas no mercado, na sua maioria são decrépitas e de renda caríssima. Como a regulação não produz efeitos, a tentação para o «acordozinho» é irresistível. Podia lá ser de outra maneira?
Um abraço
Isso dos inspectores de trabalho é coisa para acabar. Fossem eles inspectores das actividades económicas e seriam acompanhados por um aparato policial que nos faz lembrar rusgas não feitas em bairros perigosos...
Dois bons exemplos do "estado do direito".
Ah pois. Direito a correr com os fiscais, esses intrusos. Direito ao negócio-chantagem com o inquilino.
Teremos direito a melhores governantes? Infelizmente, a nossa História diz que a oferta tem sido parca.
Abraço.bkrizkqn
aquelas letras malucas a seguir ao "abraço" ficaram giras. Um dia hei-de entender-me com o Blogger...
Dois casos típicos dos melhores princípios de defesa da iniciativa privada, diria eu. Tu é que tens mau feitio! :)
1-Iniciativa de não deixar esses "parasitas do Estado" interferirem com a forma como os patrões tratam os "seus" trabalhadores (já têm sorte em ter emprego); 2-iniciativa típica do desenrascanço nacional na forma de contornar a lei.
Repito: tu é que tens mau feitio! :))**
Meu amigo: iniciativa privada, leis de mercado... tanto aí como por cá... pois é.
Pelo artigo e comentários até aqui publicados - parabéns!
Um abraço fraterno.
"O caso é que, neste enredo, quem fica com a parte de leão são os senhorios. Em fraude à lei, libertam-se das obras de conservação (que o novo regime impõe) e, sobretudo, não terão que alterar o valor patrimonial dos prédios arrendados, fugindo por esta via a uma justa tributação."
Pois é. Esta é a chave do problema.
P.S.-Já podes ler o n/blog sem precisares de óculos.
Não podia estar mais de acordo com a denúncia da fraude à lei promovida pelos senhorios.
Quanto à violência sobre os inspectores d etrabalho é um caso de polícia.
Há sempre coisas a aguçar o teu pensamento e o teu espírito crítico, não é?
Gosto das tuas análises...
Um abraço ;)
É um granel completo...
De facto, o crime compensa no nosso país.
A uma empresa que não cumpra a lei, por exemplo, fica muito mais barato impedir a entrada da Inspecçãoo do Trabalho, pois as coimas são bem menores na maioria dos casos.
Os exemplos poderiam ser tantos que não te chegava um blogue...
A nossa sociedade está inundada de chico-espertos que se safam sempre.
Será que o Pinto da Costa se safa desta vez? Estive a ouvir a Carolina... Jesus, isto ainda está pior do que eu imaginava... jagunçadas...
Quanto ao Sócrates, olha que ele é bom rapaz e sabe o que está a fazer. Não viste o que o Rio disse?
Bom fim-de-semana.
Abraço
PS: o problema que eu tinha era o PC com segurança excessiva... ajustei e parece que agora já funciona...
Gosto de passar por aqui.És um relógio muito certinho.
Beijos e bom domingo
Cada badalada deste relógio, cada melro!... ;-)
Realmente, para sermos (ou termos) um estado de direito, em vez desta jagunçada chunga em que vivemos atascados, falta-nos percorrer um bom caminho.
Cá por mim e sabendo o que sei, deveriam ser reforçadas as brigadas da Inspecção de Trabalho em efectivos e material bélico, a fim de responder a elementares necessidades de segurança e equilíbrio de forças.
Mas nós por cá, não. Somos brandos de costumes e vamos deixando que se institucionalize o embevecimento basbaque perante as golpadas dos maiores salafrários.
Grande parte parece nem os criticar. Simplesmente, inveja-os!
Pois, cá vamos. Mal sabemos para onde, mas cá vamos.
Um grande abraço.
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