Confesso-vos o meu entranhado distanciamento em relação a desportos motorizados. E confesso-vos também que apenas (re)conheço o deserto no olhar fremente e imaculado da Ingrid Bergman, em “Casablanca” (“play it again, Sam!”), ou então nas desmedidas cavalgadas de “Lawrence da Arábia”, perseguindo a utopia de uma “nação árabe” para além dos interesses do império britânico...
Sei, porém, que há uns anos atrás, se realizava um prova automobilística, que saindo de Paris e atravessando o Magrebe, tinha como destino Dacar, no Senegal. Era o célebre rally Paris/Dakar. Agora em Lisboa, apenas rally Dakar, atravessando o deserto ...
Nunca percebi porque, representando a França o que representa, a prova tivesse deixado Paris para vir desaguar em Lisboa. Ainda mais me intrigam as razões porque, neste percurso de ”deslocalização”, a prova não tivesse assentado arraias em Madrid, Barcelona ou Sevilha. Ou mesmo em Granada. Será que “nuestros hermanos” não se interessam pelo automobilismo?!... Descarto essa ideia pois, tanto quanto a minha “cultura automobilística” me permite afirmá-lo, a Espanha apresenta um naipe de excelentes volantes nas diversas modalidades. Alguns dos quais no top mundial...
Que razões então?! Não tenho evidências, nem acesso a fontes que me permita construí-las. Mas tudo na vida tem significado. Julgo, assim, que não será excessiva a leitura de que, sendo África e, em particular, o Magrebe, alvos sensíveis da política externa, quer da França, quer da Espanha, ambas as nações se demarcam da mediática operação de neocolonialismo, em que o rally Dakar manifestamente se traduz. Com o “problema” do fundamentalismo árabe em fundo, está bom de ver...
Será que os nossos fervorosos adeptos de bancada (quer dizer, de TV) saberão que, este ano, duas etapas, entre a Mauritânia e o Mali, foram alteradas com receio atentados de grupos fundamentalistas islâmicos?!...
Admiram-se?!... Pois não tem algo de despudorado e indigno todo este frenético acelerar de motores, face a imensa pobreza que rodeia, em África, o circuito?!.. Em verdade, a prova automobilística, na sua crueza, é bem o símbolo da ideologia da exploração e do colonialismo: dum lado, os heróis “todo terreno”, os “senhores das dunas”, os novos “leões” do deserto; do outro lado, as paupérrimas populações, a quem é apenas reservado o lugar do sorriso no bilhete postal...
Quem lembra, neste quadro, a luta heróica do povo sauri contra o extermínio? Quem reconhece em cada máquina, em cada piloto, em cada mecânico, em cada peça, nos milhares de litros de água, nas toneladas de alimentos, no ar condicionado ou nas sofisticadas “toalhitas Dodot” para ao asseio quotidiano, quem reconhece – pergunto – a fome, o suor, o analfabetismo, a doença e a raiva de África e das culturas “dominadas”?!... Fundamentalistas?! Pudera!...
Quem lembra, neste quadro, outro “percurso”, o outro lado da viagem. Aquela viagem que é de sentido inverso, pela calada da noite, sem câmaras de televisão, nem jornalistas deslumbrados, feita pelos milhares de emigrantes clandestinos. Viagens de morte, tantas vezes, às portas de anafada Europa, em pleno no Mediterrâneo...
Quem uma gota de água para aplacar a sede de justiça?! ...
Claro que a França e a Espanha têm a noção do tempo histórico. E sabem que “se não há almoços grátis”, muito menos a história perdoa a quem se coloca no lado errado. Por isso, se descartam de “tiques” colonialistas e chutam o célebre rally para outras paragens... Para Lisboa, está claro. Ou não fora Lisboa, cada vez mais, um “deserto”!
Com a Santa Casa da Misericórdia a apadrinhar a prova, por amor dos pobrezinhos, certamente. Amargamente irónico, não acham?...
Haja Deus!...
sábado, janeiro 13, 2007
Lisboa é um "deserto"?!...
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24 comentários:
Olá amigo!
palavras para quê?
não se vê melhoras neste país.
migo quando fores ao meu blog procura o site do Francisco Sobreira eu penso que vais gostar de ler o que ele tem na sua casota.
jinhos e obrigado pelas leituras
Cada vez mais claras as graves contradições.
Também eu fiz um post sobre este tema e tive alguns comentários bastante curiosos, se quiser ver, dirija-se ao kalinka.
SABIA QUE...?
Iniciou-se a contagem decrescente para o lançamento do livro
«Que é o Amor?».
Colaborei com um texto da minha autoria, dedicado a todos que de alguma forma marcaram a minha Vida em momentos inesquecíveis, mas também a alguém muito especial que nasceu dia 7 de Fevereiro e que, por não pertencer ao Mundo dos vivos, guardo com muito Amor, na minha memória (minha Mãe).
É uma excelente oferta em qualquer altura, mas como se aproxima o Dia dos Namorados, será bom começarem a preparar as vossas encomendas quanto antes.
Beijos e abraços.
Estás convidado a espreitar!!!
Como já é hábito, uma análise lúcida, a despertar consciências. Na realidade, custa a ver este apelo à aventura totalmente descomprometida e este alarde de meios materiais, numa zona do mundo onde a miséria e todas as carências são problemas maiores.
É bom que alguém nos lembre. **
lisboa é mesmo um deserto.
______________!
sem a beleza do dito.
________________beijo. bom domingo.
Agradeço a visita e comentário.
Quanto ao:
espero "ver-te" mais vezes.
Cá estou novamente...
para lhe dizer que dia 27 de Janeiro vai haver um «encontro da comunidade blogueira» em Lisboa; acontece que também divulguei no meu blog, embora eu não faça parte da organização. Mas, quando vejo que visito pessoas de Lisboa, e porque é mais acessível aos de Lisboa, cá estou a INFORMAR.
Faça como eu - será a 1ª vez que vou - mas, estou curiosa por conhecer algumas pessoas que ficam por detrás de um blog. Todas que conheci ainda não me arrependi.
Beijokas.
Mas Dakar é em África? Naquela África da fome, fome mesmo? Mas quantas pessoas pensam como tu?
Está bem. Parece que já sou a sétima. Precisávamos de ser muitos, muitos mais.
Boa tarde, Amigo.
Se estivessemos em amena cavaqeira, eu diria "eh pá, tiraste-me as palavras da boca". è exactamente o que sinto quando vejo e ouço os embascados comentários ào Rallye è ao feito de ser organizado no sosso país. Samos pobrezinhos em tudo, benza-nos deus, e sobretudo de espírito.
Ainda bem que levantas este tema.
Um abraço
Estou de acordo contigo: a entrega do Dakar a Lisboa terá ocorrido mais por desinteresse de Parius ou de Madrid.
Quanto à segunda questão, a do movimento migratório, o meu post refere-a.
Um abraço
Compreendo-te. Também já me tinha questionado, silenciosamente, sobre tudo isto.
Excelente blog, parabéns. Volto pra ler mais.
Bom, devo estar mesmo deslocalizada, é que não consigo entender porque é que o Dakar não deve existir nem porque é que Lisboa é um deserto (considero-a uma cidade lindíssima e bem longe de ser um deserto). Consta é que a organização estava com cada vez mais problemas no traçado do percurso devido às autorizações de passagem, e não há dúvida que a parte mais emocionante da prova é em África. Quanto à imoralidade da riqueza que se passeia ao lado da pobreza, não precisamos de ir a África, na Europa ela está bem presente...
"...Quem uma gota de água para aplacar a sede de justiça?! ..."
... e o Mundo é justo?
Gostei desta análise... mas agora digo eu, acredito que... muito "boa gente", nem se recorda que África existe e, sentados nas suas poltronas, lembram-se que para lá das areias do deserto que dá lugar a estas corridas loucas, todos os dias morrem crianças de fome...
E depois tentam tapar consciências...
Um abraço e boa semana ;)
Li para aí algures, que este rali, aí dentro de 50 anos, passará a chamar-se:
"Lisboa-Faro".
«... uma vez, no Sahara argelino, perguntei a um tuaregue o que ele pensava quando via passar os europeus nos seus jipes. Porque razão acharia ele que
os europeus queriam vir ao deserto.
No seu francês herdado dos tempos coloniais e na sua filosófica visão do mundo, herdada dos tempos ancestrais, ele respondeu-me:
"Ah, ça je ne sais pas! Je les vois venir, je les vois passer et c'est tout.
C'est tout ... même ... "»
(lido algures há uns anos)
fera fosse
este poema
diante da chama
a tensão
como a câmara
que flutua
ao filmar
em silêncio
o vazio
do vão
poema na íntegra de Moloi
A Arca de Poé 2001
Bom dia e um abraço.
De passagem por outro blog fui direcionado por um amigo comum, que falou-me maravilhas das tuas observações. Vim constatar. Saio satisfeito. Demonstras ser um homem livre.
Ba
http://metades.blogs.sapo.pt/
Se mais mérito não tivesse, esta prova automobilística "obrigou-te" a lembrar problemas existentes em África. De contrário nem falarias disso. E, como tu, quantos artigos terão sido publicados mundialmente sobre o tema? Lembro-me, aliás, que foi há muitos anos, através das reportagens filmadas e escritas do Paris/Dakar, que tomei contacto com a triste realidade da vida do Norte de África.
Para além disso a prova traz benefícios a Portugal. Directos, através da presença de milhares de pessoas que sempre deixam algum dinheiro no país, e indirectos, através da promoção internacional de Portugal.
O maior inconveniente, para mim, é ambiental. Mas como não é permanente...
A impressão que tenho é que as populações locais africanas gostam que a prova passe perto deles.
O risco de ataques e atentados já é velhinho. Já houve raptos há muitos anos (talvez mais de 30, não me lembro bem).
Mais uma vez discordo de ti, mas não é por sistema... nestes temas há sempre outra visão possível.
Um abraço.
lTens essa mestria de provocar dor com as palavras... Essa dor que nos faz sentir que que ainda estamos vivos, apesar das distracções e da poeira à volta.
Um grande abraço.
contradições!
Caro amigo,
Não sei se foi por isso que a prova deixou de sair de Paris, mas estou de acordo com a tua análise. E digo-te isto porque fico sempre com a sensação que estas coisas ou se entendem logo ou não há explicação que resulte... enfim, pela minha parte ficas com a certeza de não ter "pregado aos peixes". ;)
Um abraço
1-Nao tinha pensado nisso.
2-Obrigada pelo ponto de vista.
3-Gostei.
Esperteza saloia do Zp?
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