sábado, janeiro 03, 2009

Barbárie capitalista ...

A fonte é uma reportagem de TV, num dos canais nacionais, a propósito da crise financeira e económica que assola o capitalismo. Eis a história. Passa-se nos Estados Unidos da América do Norte...

Milhares de famílias da classe média foram despejados das suas casas, ou dito de outra maneira, das casas que consideravam suas. As habitações estavam, naturalmente, a ser pagas com empréstimos bancários de longo prazo, “generosamente” concedidos pelo sistema financeiro, que via nesses empréstimos uma forma de rentabilizar os seus capitais. Razões diversas, que o jargão “economês” reduz ao celebrado sub-prime, mas que o mais elementar bom senso deveria assinalar, sobretudo, a instabilidade do emprego e a quebra de rendimentos das famílias norte-americanas, determinaram a impossibilidade do pagamento das amortizações mensais.

Então a “benfazeja” banca, com a rapina de usurários vinda das alfurjas da História, tratou de executar as respectivas hipotecas, perdendo assim o direito às casas os honestos cidadãos, que um dia haviam sonhado como suas. Mas também – helás! – perdendo direito aos móveis e outros tarecos com que haviam, certamente, com sacrifícios vários, conseguido rechear as habitações, pois que foram penhorados para amortização das prestações, entretanto vencidas e que não puderam ser pagas.

Assim, muitas pessoas, como a reportagem denunciou, foram não apenas espoliadas de um tecto, como também ficaram apenas com a roupa que traziam no corpo. Mães e crianças no “olho da rua” e pais desesperados em nome do sacrossanto “direito de propriedade” e dos interesses do capital. Enfim, cenas saídas de um romance de Charles Dickens, nos alvores do século XIX... Em síntese, milhares de pessoas sem tecto e espoliadas dos bens e haveres que ao longo dos anos adquiriram, completamente abandonadas à sua sorte, como consequência lógica do funcionamento da sociedade capitalista e das regras de direito por ela estabelecidas.

Nada mais “natural” para um credor hipotecário do que executar as respectivas hipotecas, dir-me-ão... Mas a esses lembrarei que, como diziam os romanos, a justiça e a misericórdia andam juntas (“justitia et misericórdia comambulant) e que, em nome desse princípio, a doutrina jurídica considera não serem penhoráveis os bens indispensáveis à subsistência dos indivíduos, tais como equipamentos domésticos e instrumentos de trabalho. Ao que parece, a acrescer aos imensos dramas individuais e colectivos, anuncia-se também, com esta crise, uma chocante regressão cultural e civilizacional...

Neste itinerário de extorsão, estamos, no entanto, apenas no primeiro nível. Há mais, como se verá... Executadas as hipotecas, a banca ficou possuidora de uma enorme conjunto de imóveis, dos quais não extrai qualquer mais valia e, por isso, se torna urgente vender. Passava-se então a uma segunda parte do drama: as casas de onde tinham sido expulsos os seus compradores endividados são vendidas agora a preços de ocasião, a quem as possa pagar.

Sem prejuízo para a banca, naturalmente, que pelo menos em parte já terá reconstituindo o capital investido, no montante das prestações e juros pagos pelos espoliados. Tudo o que vem agora com venda das casas devolutas vem por acréscimo...

Temos então a lógica do capital em todo o seu esplendor: bons negócios como contrapartida “positiva” da desgraça alheia e a excelência do “mercado livre”, ou seja, o decantado “lado bom” do capitalismo a provocar a destruição de milhares de vidas que usufruíam a estabilidade possível e que, seguramente, acreditavam nas “virtudes” do sistema...

Face a barbárie em que balançamos, anda muita gente incomodada por um espírito ou outro, mais lúcido e insuspeito, invocar o pensamento de Marx para melhor analisar e compreender a crise actual do sistema capitalista. Tenho para mim, no entanto, que actualidade de Marx - e isso o torna tão “irritante” para tanta gente – não está apenas na actualidade da sua teoria económica e pensamento filosófico, mas reside, sobretudo, na circunstância de ter sido ele quem antecipou a ideia de que “mais que pensar o Mundo, é necessário transforma-lo”...

Tarefa a que todos somos convocados. E como se faz Cuba que não verga, perante o criminoso bloqueio dos Estados Unidos, expressão dos mesmos valores e da mesma política, que hoje espolia de suas casas milhares de cidadãos norte americanos...

Assim, pela sua resistência e ousadia de espinho cravado na garganta do capitalismo, pelo seu patriotismo e exemplo de solidariedade, julgo dever saudar Cuba e a sua Revolução, que perfez há dias 50 anos de luta e de sacrifícios, sem nunca perder o ânimo, nem nunca duvidar da vitória...

E, neste tempo de crises várias, singelamente, me declaro: “yó soy cubano...”

31 comentários:

Maria disse...

Espantoso post!
Y yó también!

Beijos e beijos

jrd disse...

Demolidor! Implacável1!
Aplaudo com ambas as mãos.
De maneira diferente, é certo, mas com igual verdade, também eu me sinto Cubano.
Abraço

margarida já muito desfolhada disse...

e actualmente onde está a segurança?

em nenhum lado...

escarlate.due disse...

há anos que te digo para deixares de ver TV, Herético! :P

é a crise! quem achas que a paga? os ricos?? tadinhossss, nem pensar, não é?!
os pobres? ora esses sempre pagaram o que têm e não têm!!
resta então a classe média... ou há milagres?

este post está fabuloso

beijinhosssss

Mar Arável disse...

Permite-me dizer assim

APETECE-ME DAR-TE MAIS UM ABRAÇO FRATERNO E DOU

Sem recorrer a Cuba

sublinho as tuas palavras

mas se fosse necessário

óbviamente seria cubano

A canalha anda à solta

sem pátria nem valores humanos

A chamada união europeia

é um faz de conta hipócrita

Obama quer a coisa tratada

rapidamente antes da posse

para tudo ser reconstrução

e artifício

Tudo de bom para ti
apesar do tempo que faz

Mare Liberum disse...

Mais um post supimpamente escrito
com mordacidade que a actual situação impõe!
E o que se passa nos Estados Unidos não ficará por lá. E quando chegar a Portugal? Não será fácil solucionar o nó górdio dos conflitos sociais e económicos advindos de uma atitude semelhante.
Nunca Marx foi tão actual como hoje. Releia-se O Capital!
Um beijo

vida de vidro disse...

Importante esta denúncia, este chamar de atenção para a terrível hipocrisia com que o sistema vigente, dizendo ser necessário proteger as famílias, gera situações como esta. Só não sei se sou cubana, apesar do enorme respeito que aquela nação e aquele povo me merecem... **

Sweet Lips disse...

Fantástico!
Adorei ler.
Parabéns!

mariab disse...

Admiro muito esta tua faceta em que domina a denúncia e a ironia mordaz. Excelente, o texto. Cumprindo a função necessária de alertar consciências. Beijo

Licínia Quitério disse...

Tantas as formas da nova barbárie. Do embargo ao despejo, à invasão. E o choro dos inocentes, sempre. Que ainda os há.

Um forte abraço.

mariam [Maria Martins] disse...

Herético,
não passei como tantos, por quase nada! mas, "yó también" :)

renovo os votos de um BOM ANO!
felicidades.

um abraço em forma d'arco-íris floral e o meu sorriso :)
mariam

bettips disse...

Quão selvagem se torna o dinheiro-deus.
A terra é boa, as gentes são calorosas
...apesar das faltas, impostas de fora, durante meio século. Falo de Cuba: onde nasceram tantas realidades e das quais tantos têm opinião formada. Sobre a vida.
Se olhares uma árvore não verás a floresta...
Hoje, não vemos a floresta de corpos mutilados ... e o mundo tão democrático que já se reuniu mil vezes para opinar! Sobre sangue.
Falo da Palestina.
Um abraço

mdsol disse...

:))

© Piedade Araújo Sol (Pity) disse...

um poste pertinente!

bom ano!

beij

Eme disse...

Nem sei que te diga. Doeu-me ler isto. É escandaloso tanta falta de humanidade e mais o é quando empresas que ganharam rios de dinheiro à custa de pessoas a quem até podem ter sido penhoradas essas casas, abrem falência e vão pedir ajuda ao Estado dentro de jactos e automóveis de luxo. E às famílias ninguém acode em tempos de crise? Uma injecção de capital para casos destes por ex, até recuperarem e conseguirem voltar a pagar as prestações.. qualquer coisa épossível!!

está tudo podre Herético. Tudo.

**Viver a Alma** disse...

Helas!é o mundo em que se vive!
Mas de certo que Obama, os vai realojar(?) porque: "Sim! Ele Pode!" - nós é que SÓ PODEMOS, investir em "NÒS", e não, no pó de que somos feitos, senão, caímos nessas histórias de encantar e aí...já "não podemos mais"!
Um dia e já não falta tudo - já começamos a assistir a grandes quedas - outros tombos virão maiores ainda, daqueles que, cómodamente, continuam sentados em cadeirões de ouro "velho"!

Quanto a Cuba...também já me senti mais lá....a tradição também já não é o que era - como se constacta - embora me firme em MORRER DE PÉ! - como as ÁRVORES.

E embora feliz - esta novidade venho dar - também já sou avó do Diogo(1º neto - filha mais nova) nasceu precisamente dia 1 de Janeiro...fico deveras apreensiva com o destino dele/s...tão pequeno/s - como o António.
Veremos....
tenhamos pensamento positivo.
Abraço grande, grande, para si... avô!
Sempre...
Mariz

Feliz...feliz...feliz Ano 09

isabel mendes ferreira disse...

tb.


de tanto des.ser que por aí anda.



tb . de cuba para a claridade.


.

um texto a rebentar consciências.


.


beijo.

batista disse...

Amigo-irmão: gostaria de ter retornado com o espírito serenado, após um período de férias. porém a dor se faz presente pela barbárie impetrada contra os irmãos palestinos.

deixo um abraço fraterno.

Arábica disse...

Tão bem escrito e pensado que me apetece celebra-lo com una Cuba Libre de capitalismos, Comandante :)


Não há pior grilheta que a da sobrevivência emprestada.
Uma sábia lição retirada de um peixe-balão que tive, há muitos, muitos anos...

Beijo

Germano Viana Xavier disse...

Passando e registrando minha presença.

Abraço.

Leonor disse...

venho agradecer-te o comentario simpatico.
quanto ao teu post.dá vontade de chorar pela verdade que encerra.
é impressionante como meia duzia controla uma massa tao grande e como essa massa se deixa controlar.
beijinhos

Maria Clarinda disse...

Pois...obrigada por o teres dado a conhecer!
Jinhos mil

São disse...

De pé, aplaudo!
Que o teu 2009 seja o que sonhas!

Stella Nijinsky disse...

Olá Herético!

Pra me sentir cubana seria preciso muito mais.

Remeto este problema, como quase todos, à lei do mais forte.

é assim a hUMANIDADE

Beijos e bom 2009!

Stella

Stella Nijinsky disse...

quer dizer, isto já é suficiente,

mas cubana nem pensar.

Stella

Mel de Carvalho disse...

Caríssimo Herético,

Ausente dos blogs, onde quase não vou, por “n” razões a que o vector tempo não é alheio, mas não exclusivo, venho em dias de Reis a esta casa desejar-lhe que o Ano de 2009 seja profícuo em cimentar o que mais deseja.

Como já em outras ocasiões lhe deixei aqui patente, gosto do que escreve. Uma escrita lúcida que comporta sabedoria e valores. Um posicionamento vertical em defesa do que acha por bem. Seja o registo de base política, seja económico, como é o caso deste excelente post, ou de matriz poética, e, não querendo ser critica literária, obviamente (não tenho competências para isso, nem sequer ousadia a tanto), o que escreve, digo, é, a meu ver “rimbaudiano” no sentido canónico de "liberdade livre". De quem não teme "briga" e opta pela denuncia. Claramente. "Barbárie capitalista..." ... "E, neste tempo de crises várias, singelamente, me declaro: “yó soy cubano...” (pese embora, e eu já visitei Cuba, por lá nem tudo ser exactamente o que se diz, longe disso, caríssimo ... a miséria existe, e como existe...).

Mas sim, há que denunciar, há que repensar. há que exercer a cidadania todos os dias.

Posto isto, deixo-o então com uma frase que durante muito tempo me acompanhou no meu anterior blog www.maresiademel.blogs.sapo.pt Tomas Tranströmer, in: Das große Rätsel

"grande e vagaroso vento da biblioteca do mar. Aqui posso descansar."

E, vagarosamente, vou ler e reflector um pouco do muito que escreve.

Grata pela partilha.
Permita-me um beijo. Feliz 2009

~pi disse...

estamos muito perdidos

esbracejamos globalmente

enfim, lá vamos encontrando

uma jangada de consolo (nas palavras,



beijo



~

luis lourenço disse...

hipocrisia a mais, ética a menos!
como sempre a tua análise revela uma lucidez arrepiante...que futuro? Com esta trapalhada...

abraços

véu de Maya

Oliver Pickwick disse...

También soy loco por ti, Cuba! Mas, a Cuba de uns vinte anos para trás, antes da fadiga geral do velho Fidel. Apesar de tudo, diante das atuais circunstâncias, pelo menos lá em Cuba não há sem tetos.
Resolvi presentear-me com alguns poucos dias de férias, depois de meses de trabalho contínuo e extenuante. Viajo por alguns lugares da Bahia, e levo um laptop comigo. Porém, não dou muita atenção para ele. Lá pelo dia 12, retorno oficialmente à Blogosfera.
Um feliz 2009!

vieira calado disse...

Yó, tambien, amigo!

Menina Marota disse...

O sonho americano... onde anda?

Excelente post...


"E, neste tempo de crises várias, singelamente, me declaro: “yó soy cubano...”."

Nunca julguei dizer isto... mas concordo contigo!

Talvez por isso a minha filhota levante amanhã de manhã voo para lá... ;)


Beijo e grata pelo teu excelente discernimento.

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