(...)
Diz o Porteiro a Ana Dias, que vem à audiência:
“Venhais embora, Ana Dias.
Em demanda andais cá?”
Ana: - “Sempre o diabo me dá
com que tenha negros dias”.
Porteiro: - “É feito crime ou que é?”
Ana: - “Não sei s´é crime, se que
"minha filha é violada,
"e houveram-ma forçada:
"vou-me ao Juiz”.
Porteiro: - “Esse é;
"mas tanto vale como nada”.
Ana: - “Querelo-me, senhor Juiz,
"do filho de Pêro Amado
"que o achei emburilhado
"com a minha Beatriz”.
Juiz: - “E onde?”
Ana: - “No seu cerrado”.
Juiz: - “E que ia ela lá catar?"
Ana: - “Foram ambos a mondar,
que o trigo era creçudo"
“E foi-se a ela...”
Juiz: - “"Coma sesudo,
"pois que tinha bô lugar”.
Ana: - “Olhai vós como ele gosta!...
Juiz, fazei-me dereito”.
Juiz: - “Digo que pois já é feito,
"venha ele com sua resposta,
"ou lhe faça bom proveito,
"e venha a moça citada”.
Ana: - "A cachopa é prenhada".
Juiz: - “Assi se faz..."
Ana: - “Não há hi mais?
“Esse é remédio que dais?
“Ora estou bem aviada”
“Mãe! mãe! eu não sei que diga...”
Juiz: - “Pai! pai! venha a rapariga,
“e veremos que ela diz:
“e como diz a cantiga,
“traga as testemunhas cá,
“sete ou oito abastarão...”
Ana: - “Senhor, se não for per rezão,
“nunca s'isso provará:
“Que era o pão onde os achei
“mais alto do qu' é essa vara”...
(...)
Ana: - “Deixara-a ele mondar:
“que olho mau se meta nele,
“e muito de mau pesar.
“Maus exemplos, maus ensinos;
“um moço já homem barbado,
“emancipado
“ir fazer tais desatinos!...”
Juiz :-“São cousas de moços...”
Ana : - “Assi,
"boa concrusão trazeis”...
Juiz: - “Que é o que vós quereis?!...”
Ana : - “Que o mandeis vir aqui preso,
“e que o castigueis”.
Juiz : - “Já eu estive cuidando nisso,
“porque eu não sou abantesma.
“Mas que sei eu s´ ela mesma
“deu casião pera isso?!...”
“E perem tudo assi visto
“eu mando per meu mandado
“que até esse pão ser segado
“que se não fale mais nisso.
“E aquele mesmo pão
“eu e estes homens bõs
“iremos lá e veremos nós
“se houve per força ou não:
“que se ela não queria
“estará o pão derramado,
“e há mister bem olhado
“ela se se defendia...”(...)
Gil Vicente – in Farsa “O Juiz da Beira” – Ed. “Clássicos Sá da Costa”
........................................
E que o Juiz da Beira não ressuscite para julgar o caso Freeport. E os restantes que andam por aí badalados...
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27 comentários:
Um dia destes vamos ouvir dizer "caso arquivado" (ou coisa parecida). Digo eu...
Beijos
Bem apropriado o que aqui publicas. E como em muitos casos o arquivo é o destino. Triste sina! Beijos.
oh Heretico, nunca imaginei Gil Vicente a arrancar-me uma gargalhada pela manhã
essa última frase está demais
bem, tal e qual
completamente actual
embora capaz de fazer rir
[ coisa que fomos
perdendo
passando aos poucos
a riso
amarelo,,,
beijo
~
Ah pois é, caro Herético ... grande Gil Vicente, que tão actual se mantém...
A questão é quão mais simples que aquela que ele tão sabiamente satirizava no Auto da Índia: procura longínqua de "dinheiros fáceis": Ei-los aqui, aqui ao lado... Freeport [(porta livre, tradução livre), oh pá... 'tá-se mesmo a ver :)...]rsrs
... para a raia miúda que se meteu ao barulho, talvez sobrem sentenças, que lucros, esses, só migalhas. Tivessem lido o Auto da Índia e aprendido a lição. Ou não andaram na escola? Será?...uhmm!!!
"Se não fôra o capitão,
Eu trouxera, a meu quinhão,
Hum milhão vos certifico." in Auto da Índia
Belo post, estimado Herético. Por estes e por outros, volto sempre!
Fraterno abraço
Mel
mestre Gil, sempre zurzindo com a arma do riso. e tu, a ajudar... :)
beijos
....Desde mis HORAS ROTAS,
y AULA DE PAZ
un afectuoso abrazo y
cariño compartido
siempre desde el alma
saludos
de amistad:
---Jose Ramon---
haja quem sabe "adaptar" Gil Vicente....no melhor.
beijo.
Herético
Gil Vicente está sempre actual e os "sucessos" portugueses muito adequados às suas sátiras.
Vi num blogue amigo a esperança de que é possível a justiça funcionar tomando como referência a condenação de Madoff.
Porém o amigo esqueceu-se, como eu fiz questão de fazer notar, que Madoff não foi julgado em Portugal.
Em Portugal vigoram ainda os Juízes da Beira.
Abraço
Silêncio Culpado,
em Portugal, minha amiga, é tudo "pequenino". até os crimes e... e os castigos.
beijo
Vai correr tudo bem.
Grande sentido de opprtunidade do excerto
:)))
o nosso GV sempre tão actual!
que assim seja!
desculpa ter apagado o comentário anterior estava com uma gralha
Para te dizer que já há fotos nos "Desalinhos" do lançamento do meu livro "In-Finitos Sentires"
beijo
Que venha
de vergasta
justamente ...
:))
(e o pêndulo marca a hora)
um beijo Herético
iv
Só o nosso Gil Vicente nas tuas mãos para arrasar a corja dos políticos...
Querido H...perdoe-me mas em Portugal é mesmo tudo ou quase "pikenino"...
salva-se a delicadeza de alguns....:)
e o talento de outros.
abraço.
Perturba-me a «actualidade» de Gil Vicente.
Quem diria, hem, passados tantos anos, manter-se assim o bom povo português? E que volta lhe havemos nós de dar?
Sim, que isto precisa, mesmo, de levar uma grande volta.
Abraço, caro Herético, com desculpas pela minha falta de assiduidade... que sabes motivada pelo meu pequeno esforço em contribuir para essa tal volta.
Antes de o pão ser segado? Não acredito. Tudo isto leva o seu tempo (deles...).
Mestre Gil sabia "da rezão das cousas"!!
Sempre oportuno, caro Herético.
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...bem, mesmo sem muito conhecimento da causa...Gostei! Achei o texto bem engraçado...Obrigada por me dar a conhecer o autor!
Beijos de luz e o meu carinho...
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Com esta linguagem não me entendo muito bem. É vernáculo?
Gil Vicente, sempre actual, a poder aplicar-se a inúmeros casos da justiça.
Um abraço.
Concordo com o comentário da Maria, assim vai ser...
Beijinho*
Herético,
actualíssimo...chiça, brandos costumes... mesmo.
um sorriso :)
mariam
Mas este juiz da BEira é imortal?!...
Bom fim de semana.
Que espanto! o cereal já estava alto...e a tentação falou mais alto...caso fácil para a jurisprud~encia nacional...se a nossa taxa de fertilidade daqui a uma década...a comunidade europeia será mais uma comunidade mulçumana...pois estes sim têm uma taxa de fertilidade abastada...
belíssima narrativa...risos.
abraços,
Véu de Maya
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