“A ameaça do inferno e o aceno do céu são um dos temas mais frequentes na literatura religiosa medieval. Um “Tratado de Devoção” existente em Alcobaça insiste particularmente nos castigos e descreve de maneira patética a hora pavorosa do “Juízo Final” e lembra, para concretizar a ideia da vida para lá da morte, uma visão de um cavaleiro chamado Túndalo ou Túngulo, a quem fora dado o privilégio de visitar o céu e o inferno e regressar à vida para contar o que por lá vira:
- Um cavaleiro pecador morreu. E enquanto a alma era levada por muitos lugares o seu corpo esteve aguardando o enterro por causa de algum calor que ainda conservava no lado esquerdo. Mas ao terceiro dia o corpo começou a suspirar.
(...)
Vamos ouvir o que entretanto lhe acontecera. Naquela hora em que saiu do corpo começou a Alma a sentir grande medo e a querer voltar para a carne, sem poder. Desamparada, chorando e gemendo ao lembrar-se dos pecados, viu vir uma multidão de demónios que enchiam não só a câmara mortuária, mas as ruas e praças.
Assim falaram eles para a Alma: - “Porque não és já soberbo como eras, e porque não fazes fornicação, nem adultério, nem causas escândalos? Onde estão as tuas virtudes? Onde está a tua vã glória? A tua vã alegria onde está? O teu vão rir onde está? O comer e o beber em que te deleitavas, e de que tão pouco davas aos pobres, onde estão? As loucuras que fazias onde estão? Tudo é já passado, e por tudo isso sofrerás".
Encontrando-se assim aturdida e sem saber que fazer, a pobrezinha viu chegar um anjo. - "Ai meu senhor e meu pai, disse chorando, dores do inferno que me cercaram, e fui em grande temor". - Era o Anjo da guarda, que logo a repreendeu porque agora lhe chamava pai, quando dantes nem o conhecia. E estendendo a mão para agarrar um dos diabos mais escarnecedores, o Anjo mostrou à Alma o mau conselheiro que ela seguira: "Mas Deus teve piedade de ti..."
Quando isto ouviram, os diabos começaram a dizer mal de Deus, porque entendiam que aquela alma era deles de direito, e que Deus não procedia direitamente tirando-lha. Mas o Anjo ordenou à Alma que o seguisse, e a Alma caminhou na escuridão alumiada só pela claridade do Anjo.
Passaram por um vale de trevas, coberto por um tampo de ferro incandescente sobre o qual as almas se derretiam e ferviam como azeite escoando-se para os carvões abrasados do fundo. Era o castigo dos matadores. Subiram a uma montanha por um caminho estreito, batido pelo frio e pelo vento, donde os diabos tiravam as almas com gadanhos para as mergulhar no fogo e depois na água gelada...
Prosseguiram por um caminho torto e mau, envolvido na escuridão. A Alma, quebrantada, só via diante de si a claridade do Anjo. E pararam diante de uma besta, maior que todas as montanhas que até então tinham visto, tão forte e feroz que nenhum homem vivo a poderia imaginar...
Os seus olhos eram como colinas acesas. Pela sua boca cabia um exército de nove mil homens armados. Saíam dela labaredas de envolta com os gritos das almas que se consumiam no ventre da fera. A Alma queria fugir desta visão espantosa, mas o Anjo abandonou-a aos diabos. Os tormentos que ela passou no ventre da besta não há homem vivo que possa conhecê-los...
Sem saber como, a Alma achou-se de novo na presença do Anjo. Outra vez recomeçou a caminhada da alma lacerada e quebrantada. Deparou-se-lhe um mar bravo de ondas tão altas, que tapavam o céu, sobre o qual se estendia uma tábua a servir de ponte, longa de dez mil côvados, estreita como a palma da mão, eriçada de bicos de pregos.
(...)
Ela mostrou os pés chagados, que a não deixavam andar. - «Devias-te lembrar, respondeu o Anjo, de como os tinhas ligeiros para os prazeres do mundo». E caminhando na escuridão chegaram a um forno grande como um monte, por cuja boca saía uma labareda altíssima. A entrada demónios com aparência de carniceiros, com grandes cutelos esfolavam as almas e cortavam-nas em postas, que atiravam para dentro do lume.
Era o castigo dos gulosos e luxuriosos.
A Alma não conseguiu fugir ao suplício. Retalhada sofreu dentro do forno o fumo, frio, calor, fedor e açoites, muito mais do que se pode contar. Dali saiu para a escuridão, até que veio a claridade do Anjo. "Ai senhor, queixou-se ela, onde está aquela misericórdia que nos dizem que há em Deus, pois que já tantas penas e tantos tormentos passei?"
Respondeu o Anjo e disse: - "Ó filha minha quantos se enganam com essa confiança que têm que Deus faz misericórdia. Porque bem que Deus seja misericordioso não deixa por isso de fazer justiça a cada um como merece".
E o Anjo apressou a Alma porque ainda tinham muito que ver. Era agora uma besta com um par de asas e dois pés, boca chamejante, posta sobre um lago gelado. Engolia as almas para dentro da fornalha do seu ventre, e deitava-as depois, pelo traseiro, no gelo do lago. Quando aqui caíam, todos, homens e mulheres, pariam pelos braços, pelo peito, por todo o corpo, no meio de dores sem nome, serpentes inumeráveis, que logo lhes cravavam os dentes de ferro até ao tutano dos ossos.
Este era o castigo dos sabedores, que mal usavam da sua ciência e da sua língua.
A Alma não escapou ao espantoso castigo...”
(...)
“
História da Cultura em Portugal” – António José Saraiva – Edição de “Jornal do Foro” – 1950.
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É o que espera a José Saramago na outra vida, estou certo disso. Rebolo-me de gozo a imaginar a sua alma a ser cuspida em fogo pelo traseiro da besta...
O que é muito bem feito! Quem o manda ser sabedor, usar mal sua ciência e a sua língua?!...
quarta-feira, outubro 21, 2009
" A outra vida..."
(...)
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19 comentários:
:))))
Beijos. E mais beijos
Confesso a minha ignorância sobre Saramago. Tenho vários livros dele, que ia acumulando quando era sócio do Círculo de Leitores, mas nunca consegui ler nenhum até ao fim e, por estranho que pareça, aquele que mais li foi "O Evangelho segundo Jesus Cristo".
Mas como já me pesam os anos, vivi intensamente Abril 74 e os tempos que se seguiram.
A passagem de Saramago pela direcção do “Diário de Notícias” não deixou saudades. Ficou a imagem de perseguidor feroz dos adversários, numa passagem tristemente marcada pelo saneamento político de dezenas de jornalistas.
Tem Saramago direito a propagar o seu jacobinismo e dizer o que pensa. Até de declarar guerra a Deus e às religiões, embora o respeito pela liberdade dos outros aconselhasse, aqui como em tudo, a dispensa do insulto fácil.
Aos crentes, resta não comprar o "Caim".
eheheh o que me ri com a tua observação...mesmo eu descrente convicta
b eijos
Meu amigo, Saramago adora protagonismo e comigo está mal já percebi e estou cansada e olhe que sou agnóstica. Um abraço
Eu penso que somos livres de expressar as nossas ideias...beijos.
sorri...ao imaginar o citado a rebolar...
lol
:) gostei
bjo
Muito sinceramente, Saramago "baralha-me" ... desconhecimento meu, talvez
Beijo
Devo dizer que a visão dantesca que o texto que escolheste descreve me fez sorrir mais que Saramago. Sou o mais crítica possível do que as igrejas fazem de algo que todos nós trazemos connosco, um sentimento de divino inexplicável. Mas o que ele disse da Bíblia é bastante primário, religião à parte. **
Cada poder se preserva como pode. Nesse tempo, aristocracia e teocracia eram mais menos condimentos do mesmo caldeirão. O mais difícil para mim foi a compreensão de "esfolar uma alma". Difícil até para Búfalo Bill. :)
Um abraço!
ora, ora........
e
mando-te bjs !
Que crueldade...
Eu vou ler Caim.
Um abraço.
Meu caro!
Muito elucidativo o seu texto.
Aliás, eu nem sabia que nesse tempo, as almas sofriam muito mais que às mãos da Pide!
Safa!...
E digo-lhe que foi um prazer conhecê-lo pessoalmente.
O meu obrigado por ter estado na apresentação do meu livro.
Um forte abraço
Depois de uma longa ausência...
Beijos
:)))
O que p'ra aí mais há, são bestas a cuspir(-se) pelo traseiro, nesta vida...
Embarcamos nos sonhos,
atracamos na Vida,
pela mão de um(a) Amigo(a)!
Assim me sinto quando te leio.
BELO FINAL DE TEXTO. ADOREI.
Esta noite podemos dormir mais uma hora, com a mudança da hora;
pois aproveito essa hora a mais, para visitar os meus amigos da blogosfera, que ando em falha.
MUITO OBRIGADO PELAS SIMPÁTICAS PALAVRAS NO MEU BLOG.
Beijinhos.
Li muito Saramago, creio numa Entidade suprema, não sei como há ainda quem creia no deus do Velho Testamento e penso que toda a gente tem direito a dizer o seu pensamento
E não acredito que seja cuspida pelo traseiro da besta por isto!
Quanto ao post achei-o uma delícia do principio ao fim
Boa semana, companheiro.
Será que Saramago não teme o "Juízo Final"?! Ele que se cuide que a besta não é de modas. Anda por aí de dente arreganhado e a farejar iconoclastas.
Um tratado de Tratado o que nos revelas...
Abraço.
Um susto, esta descrição...
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