Não há Entrudo sem tropelias. Em Podence, aldeia do concelho de Macedo de Cavaleiros, nada, ou quase nada, detém os bandos de Caretos que todos os anos saem para as ruas em desenfreadas correrias, perseguindo as moçoilas para as “chocalhar”.
Nos dias grandes da festa — Domingo Gordo e Terça-feira de Carnaval — os Caretos só param para se dessedentar ou para combinarem mais uma investida sobre o Largo da Capela, a pequena praça da aldeia onde a gente do lugar e um punhado de forasteiros curiosos se juntam para assistir ao ritual.
E como em todas as culturas e latitudes onde se celebra a funçanata, o mote da agitação está impregnado de um desígnio de licenciosidade, feição que tem pai e mãe na dualidade profana e religiosa da tradição: tanto desvario serve para despedida do Inverno e para anunciar a chegada da Primavera (...) e para marcar (em excessos que supostamente se filiam nas antigas saturnais romanas, festas de homenagem a Saturno, deus das sementeiras) ...
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Nas festas do Entrudo, é a máscara que confere todo o poder. Às iras dos Caretos endiabrados ninguém se atreve a opôr-se. Apenas as Matrafonas (raparigas disfarçadas de homens, ou vice-versa) são poupadas à sumária justiça carnavalesca: os demónios mascarados lançam-se ao assalto das moças e, encostando-se a elas, ensaiam uma dança um tanto erótica, agitando a cintura e fazendo embater os chocalhos que trazem pendurados contra as ancas das vítimas.
Rápido se aprende o que há a fazer: não resistir e deixar o corpo ser levado no balanço do ritual, a única forma de amenizar as nódoas negras. E como a violência de outrora apenas sobrevive nas histórias que os mais velhos gostam de contar (...)
Antigamente, era outra louça. As raparigas apenas saiam à rua furtivamente, já que a punição era brava. O chocalhar ritual, ainda que mais apurado, era só uma parte da pena. Havia também a chuva de cinzas e de outros objectos e dejectos menos nobres, ou ainda a fustigação com uma pele de coelho seca ou uma bexiga de porco previamente “colocada no fumeiro como os salpicões”.
Particularmente cruel era o banho de formigas bravas que os Caretos recolhiam em sacos de formigueiros que iam identificando meticulosamente nos campos próximos meses antes. Este costume bárbaro — mas seguramente muito divertido a avaliar pelas gargalhadas prazeirentas dos Caretos que o descrevem (...)
Outras tropelias caídas em desuso incluíam invasões intempestivas das casas e o consequente destempero da paz doméstica, incluindo o virar dos potes que ao lume ferviam o manjar: ficavam os da casa sem comer e partiam os demónios aos gritos em busca de mais vítimas.
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Na investida bárbara que faz ecoar por toda a aldeia o alarido dos chocalhos e o tropel surdos dos passos, os Caretos levam tudo pela frente, indistintamente. É um modo de dizer: por detrás da máscara de latão os olhos em fogo procuram muitas vezes, confessam, “as moças mais apetecidas”, as da terra ou as que de fora vêm — ainda que inadvertidamente — para o sacrifício.
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Outras vítimas conformadas destas tropelias são os possidentes das adegas da terra. Reconhecidos pelo bando alucinado, são feitos reféns e arrastados para as ditas onde não lhes é deixada outra alternativa senão a de aliviar a sede aos seus luciferianos raptores...
Humberto Lopes
Texto publicado na revista "Tempo Livre" nº92- Fev.99 aqui
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Belos roncos do Diabo, não?
11 comentários:
Sabias que há poucos, poucos anos um padre pagou para se queimar uma destas máscaras-careto?
E , depois, dizem que já não há Inquisição!!
Diverte-te!
Excelente! O que tu nos trazes.
Um abraço
soube, pela primeira vez, as características do carnaval de Podence por uma revista, que penso, já não existe. : A "Descobrir". depois disso já vi outras reportagens sobre o mesmo e apesar das particularidades singulares, gostaria de estar por dentro, vivenciando-o. é a cultura de um povo. a sua identidade.
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um beijo. obrigado
desconhecia completamente.
interessante!
beij
Parece ser uma festividade cheia de simbolismo, remetendo para antigos rituais pagãos. Ouvi dizer que a máscara do diabo é leiloada e chega a atingir valores exorbitantes com que o licitador compra o poder, efémero como sempre, mas real porque exercido.
Gostei destas notícias do país profundo.
Abraço.
Costume um tanto esotérico, o dos Caretos!
Abraço
recentemente, talvez há duas semanas, na RTP2 (Câmara Clara, que recomendo) estiveram presentes uma antropóloga e um actor/encenador, ambos mt conhecidos da nossa praça, a falar do Carnaval em Podence. Por acaso (ou por formação...) já conhecia, e que, pela forma brilhante como o apresentaram, dignificando, fiquei cheia de pena de ser em "cascos", pese embora ter lá uma amiga...
um dia, quem sabe, irei ver de perto.
Estimado Herético há que "chocalhar" as inteligências citadinas e intelectualizadas para respeitar e zelar pela manutenção do que nos diferencia. Como o fez a "Câmara Clara" e o TLivre.
E o senhor, obviamente.
Fraterno abraço
Mel
chocalhar é um verbo assaz interessante, caro herético. conheço podence, tenho uma costela transmontana e adoro macedo de cavaleiros e a sua bela posta :) mas desconhecia a tradição dos caretos. gostei de ler. um grande beijinho.
Ainda bem que despertas tradições
A partir de hoje o carnaval
é desinteressante todo o ano
Abraço amigo
gostei , gostei muito..................
e acabei de o ler já
na
4a feira de ciinzas....................................................
bjnhs p ti
a lembrar coisas...mil
heranças
incontornáveis
espalhadas de vida :)
[ mais um beijo vai
~
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