Dizem-me que a luta de classes está de volta. A actual crise do capitalismo e as revoltas que grassam no mundo árabe parecem ser o pretexto que justifica a proclamação. Entre nós, o fenómeno “Deolinda” e a mobilização da “geração à rasca” acentuam a ideia.
Julgo, no entanto, que na bombástica declaração do regresso à luta de classes e a Marx seu fundamental teórico, existem alguns mal entendidos.
Desde logo, a enfática proclamação – como se moda fora! Como se Marx, apesar de afastado de universidades, mestrados e doutoramentos, deixasse de estar vivo nas relações sociais e muitos, que hoje se indignam, afastados que são do processo produtivo e do lugar social para que foram destinados, não constituíssem, porventura sem o saberem, demonstração (dramática) do corpo de ideias, a que se convencionou designar por marxismo.
Um segundo equivoco que parece persistir: não existe luta de classes pela luta de classes, que se esgote em si mesma. A luta de classes é sempre instrumental ao exercício do poder e à transformação da sociedade. Quer dizer, portanto, a luta de classes visa o poder. A luta pelo poder. A conquista do poder. O que significa que, sem perspectiva política, a luta social, por mais veemente que seja, não passará de mera agitação, destinada ao fracasso…
O poder, portanto, no cerne da luta de classes. Poder, porém, que extravasa a concepção clássica do poder de Estado e se dissemina no interior da sociedade em micro poderes, tanto ou mais determinantes que os poderes de soberania.
Daqui decorre, em minha perspectiva, um terceiro equívoco. Tanto quanto me é dado compreender, a tese da luta de classe forjou-se no contexto da afirmação do conceito de soberania e da construção do Estado liberal (burguês) do século XIX e, e nessa justa medida, será tributária das próprias concepções em que se desenvolveu, embora em contestação radical (de raiz) ao poder emergente.
Mas hoje em dia é possível perceber o poder na sua materialidade concreta e não apenas como idealização de poder soberano dos Estados – o poder é essencialmente aquilo que reprime, seja a natureza, os indivíduos, os instintos, ou uma classe social, quer no processo produtivo, quer nas instituições do Estado, quer nos mecanismos de poder político e social.
Nesta perspectiva, mais que sujeitos (na dupla acepção do termo) da vontade soberana da Lei, os indivíduos serão o “corpo de atitudes, comportamentos, falas e desejos”, que materialmente os define, em função do respectivo lugar na “circulação do poder”.
Os homens são livres e iguais, mas alguns são mais livres e iguais que outros, em função do poder social, económico e político que detêm, como bem sabemos…
Em suma, o poder como “uma nova mecânica de poder”, que extravasa os poderes de soberania e se exerce pelos dispositivos sociais de coerção sobre os indivíduos, no seu quotidiano e percurso de vida.
Por isso, talvez se justifique levantar o manto da história e destapar o modelo da guerra, que a construção do Estado liberal e a idealização dos poderes de soberania ilidiram, domesticando a violência e dissolvendo-a no interior das instituições.
De facto, mais que a clássica afirmação de que a “guerra é a política por outros meios”, haverá que inverter a afirmação e considerar, que, pelo contrário, a “política é que é guerra por outros meios”.
A guerra, portanto, como modelo da luta de classes. Na definição de objectivos, na mobilização de vontades, na resistência ou na ofensiva. Nas micro-vitórias contra os poderes estabelecidos e na ousadia dos grandes combates.
Certamente que, na situação histórica presente, sem o fulgor épico de novas Bastilhas ou Palácios de Inverno. Mas na persistência do combate, mais modesto, por uma vida mais digna…
11 comentários:
Hoje, o fermento que vai levedar amanhã.
Abraço
Talvez volte mais tarde a este (oportuno) texto. Para já limito-me a sublinhar: "sem perspectiva política, a luta social, por mais veemente que seja, não passará de mera agitação, destinada ao fracasso…"
(tal como previa,fez bom uso da fotografia...)
Excelente texto.
Abraço
Não foi por acaso que defendemos
o mesmo candidato à presidência da República
Abraço
enquanto se re escreve a HISTÓRIA
com
.
um beijo
A verdade é que já nada é do que era!... Repare, por exemplo, naquele hamburger; basta para dissolver uma qualquer revolta ou uma simples manifestação sorridente!... E a presença da TV é um dissuasor de vontades e a promessa de um futuro reconhecido!...
Pois é; tem sempre o Poder como apelo poderoso que, ao contrário dos estados “virgens” de outros tempos, menos globais e, ainda nesses velhos tempos, fora dos ideais capitalistas que tolhem políticas de estado soberanos! Basta um hamburger!... Claro que esse hamburger acabará, mais dia menos dia e, nos dias que começam a quebrar recordes de velocidade, os vestígios daquela misturada de carnes duvidosas começa a ser o que resta!... Claro, ainda, que o “hamburger”, tem vindo a ser recheado de promessas, nunca concretizadas!... O Poder dos quintais nunca esteve tão fragilizado e a dependência é tal que convidarmos, até, quem nos queira roubar, começa a constituir-se como uma tarefa difícil; talvez porque já pouco ou nada reste desta carcaça verde e encarnada que esvoaça seus buracos de bandeira esfarrapada ao sabor amargo desse vento que dura há uma eternidade!... E olha eles, no poder, todos sorridentes, a apregoar o “hamburger” quentinho e saboroso que as “oposições” têm engolido à mesa da conivência!... Porque o Poder sabe bem e o “hamburger”, vindo lá de longe, lá foi aguentando a obesidade do povo!...
Agora?!.... Que deus nos ajude, porque só ele pode!... Isto vai doer. Ou não; quem sabe, aparece uma D. Isabel e acontece um Milagre das Rosas!!!... Ou a mesma versão, com laranjas! Mais um. Milagre. Alguém quer?
Abraço
o povo está faminto de liberdade, de justiça, e quem está no poder não o quer largar, mesmo nas ditas democracias como a nossa
Saudações amigas
d´ALMA,
no caso, mais me parece salsicha alemã!
abraço
herético
gosto de ler seus tratados e faço cheia de atenção mas logo se dissipa porque quero a alma leve rsrs
Li sobre o poder num poema de Boccage que fala de um leão que se engraçou com um porco dando-lhe regalias e diz assim pra encerrar:
"Não há poder algum que mude a natureza:
Um porco há-de ser porco, inda que o rei dos bichos
O faça cortesão pelos seus vãos caprichos."
acho que passa por aí ...
heretico só tenho mesmo alguma intimidade com o o poder da poesia -
"ela me torna onipotente/eu posso voar e em minuto estar do outro lado do mundo" rsrs
te abraço portando desejando bons dias e prometendo voar um dia desses.rs
"É a trabalhar que a gente paga o jantar,
é a trabalhar que a gente faz a faca para o cortar"
Sim!
Dignamente.
Abçs
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É assim...Desde que o mundo é mundo, alguns se prevalecendo do poder, outros outorgando o poder e depois se arrependendo.
Gostei do seu comentário! Os países mudam, mas os problemas são os mesmos...
Beijos de luz e o meu carinho!
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