Manifestamente Passos Coelho anda
deslumbrado. Não apenas porque o País deixou de estar “à beira do abismo”, pois
que, sob a sua batuta, está a dar os fatídicos “dois passos em frente”, mas
porque, embebecido, descobre agora, face à austeridade, “a extrema paciência
dos portugueses”.
Como se sabe, as palavras do
primeiro-ministro têm sido glosadas em diversos tons. Até um distinto clérigo,
bispo da Igreja Católica, despiu seu discurso do peso das sedas e cambraias e,
sem papas na língua, como que expulsando os “vendilhões do templo”, sugeriu aos
portugueses para saírem à rua, não para fazerem desacatos, mas para afirmarem
seu protesto.
No dizer do eminente dignatário da
Igreja Católica, as considerações do primeiro-ministro lhe fazem lembrar os
tempos do fascismo. E, expressivamente, assinalou que o discurso daquele “senhor que pelos vistos ocupa as funções de
primeiro-ministro” lhe parecia ouvir “o
discurso de uma certa pessoa, há cinquenta anos”, numa óbvia aproximação
das palavras de Passos Coelho ao discurso oficial do salazarismo sobre a “mansidão” do Povo português e dos “safanões a tempo”, presume-se...
Houve logo quem quisesse
cruxificar o clérigo, e – ai Jesus! – que Passos Coelho tem legitimidade
democrática e o bispo não tem credibilidade política!...
Como se o problema
fosse a “equipação de legitimidades”, entre ditadura e democracia, e não outro
bem mais subtil, mas nem por isso menos determinante, ou seja, a equipação do
“discurso”, quer dizer, da “ideologia” que, vinda do passado, ainda se mantém
viva (e ao que parece actuante) no pensamento (político) do actual
primeiro-ministro.
Como miasmas que inquinam a corrente da
história...
Do alto do seu discurso do “Dia de
Portugal”, o Presidente da República, num óbvio puxão de orelhas ao
primeiro-ministro, pretende emendar o tiro. E, naquilo que Passos Coelho vê um
povo paciente e resignado, Cavaco Silva encontra a “sabedoria” do (bom povo)
português.
Seja como for, quer o “homem de Massamá”, quer o “homem de Boliqueime”, são expressão da
mesma pulsão ideológica, em que o povo, qualificado de “paciente” ou “sábio”, é
desligado da condição de obreiro da sua própria história.
O povo é, neste
contexto, “mitificado” como corpo social ideal, onde se projectam apenas os
“efeitos da política”, mas cujos desígnios lhe são alienados, ficando
permanentemente reservados a uma restrita casta de “eleitos”.
Como se sabe, foram as concepções
doutrinárias do fascismo que estabeleceram este “desdobramento” da política.
Por um lado, mitificando o Povo inorgânico e afastando-o da participação
política e, por outro lado, erguendo os líderes como os “autênticos intérpretes
da vontade colectiva”.
Logo os consagrados (e exclusivos) intérpretes da acção
política...
Dir-me-ão que, em democracia, as
eleições determinam a formação de maiorias e a formação dos governos. Sem
dúvida. Nem estas linhas pretendem sugerir qualquer iminente “regresso ao
passado”.
Digo apenas, louvando-me nas palavras do
ilustre dignatário da Igreja, que o discurso político dominante, a permanente
“mitificação” do povo, enquanto lhe arrancam coiro e cabelo e uma certa cultura
de casta, a quem tudo é permitido, remetem indiscutivelmente para a matriz
cultural e ideológica do salazarismo.
Como escreveu Augusto da Costa Dias,
noutro contexto: “O passado sofre a mesma
degradação a que se submeteu o quotidiano presente. Desvendou, sob as fraldas
da “aparência”, o maravilhoso oculto. E, mais fácil de mistificar, mais
atraente no seu vago impreciso (...) hipertrofia-se como categoria ideológica e
acaba por sobrepor-se ao presente".
Não desarmemos, pois, perante a luta.
E, assim, saibamos destruir o “ovo da serpente”...
[1]
- Augusto da Costa Dias – in “Crise da Consciência Pequeno-Burguesa – Os Vivos e os Mortos”
Editora Arcádia.
8 comentários:
Dia 16 estou perante um dilema... Terei que mandar uma moeda ao ar.
Entre a manifestação e a reafirmação de seareiro, vejamos o que me acontece...
Parece um despropósito, depois do teu excelente texto, mas não me ocorre outra coisa.
É uma crónica que prima pela lucidez.
Detive-me aqui:
"Como se sabe, foram as concepções doutrinárias do fascismo que estabeleceram este “desdobramento” da política. Por um lado, mitificando o Povo inorgânico e afastando-o da participação política e, por outro lado, erguendo os líderes como os “autênticos intérpretes da vontade colectiva”.
Pois é!
L.B.
Também no tempo do providencial homem de Santa Comba, um Bispo se atreveu a denunciar a situação. Coincidências...
Quanto ao par que agora zela por nós, a "coisa" vê-se:
http://bonstemposhein-jrd.blogspot.pt/2011/12/o-cidadao-xxxvii.html
Abraço
Espero que a acidez provocada pelo brilhante discuso de António Nóvoa( tenho-o no "são"), tenha aberto algum buraco naqueles obtusos crânios e assim se faça luz!
Tem bom dia
Caro heretico
Li e reli o seu excelente post. Faço-o sempre em quase tudo. No caso da bloga também é para encontrar alguma achega para comentar, mas nem um virgula me deixou para acrescentar.
Pronto mais uma vez, Subscrevo.
Abraço
Rodrigo
Sejamos pois uma inumera minoria.
Abraço
As referências são três: o de Massamá, o de Boliqueime e o do Clero (do último fica assim dito, que não sei da terra que lhe deu nota).
Mas, cantava a Amália, os telhados de vidro é coisa que, fatalmente, os une. A estes e a tantos outros que enxameiam as vielas (sempre) obscuras do Paço.
Há muitos séculos que é assim!
abraço.
Não poderia estar mais de acordo. Que o povo colha a lição...E quem exerce o poder o faça pró povo...pois sem País livre e responsável para que queremos a política. Excelente a tua abordagem.
Abraço,
Véu de Maya
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