Então, passou-se assim...
Montado em sua fogosa égua que, em
escassas duas horas o levava à sede do concelho, o brioso agricultor, herói
desta “estória”, depois de distribuir ordens a familiares e serviçais, rumou cedo
à vila, em vista satisfazer afazeres que administração do casal exigia e,
naturalmente, para “desenferrujar” os sentidos, desfrutando o bulício “urbano”
da feira concelhia.
Ponto obrigatório eram os escritórios do
Grémio da Lavoura, no centro da vila, lugar de ajuntamento dos lavradores,
provenientes das diversas aldeias, das mais distantes às mais próximas, que
depois de fazerem o “manifesto” (registo obrigatório) do trigo ou do vinho, ou
uma compra ou outra de uma qualquer alfaia ou utensílio agrícola, por ali se
ficavam, arredondando conversas, sabendo novidades, falando do estado do tempo
e das colheitas, ou empertigando-se, na sua importância social, ditada pelos
haveres e fazenda de cada um.
Mas todos fazendo parte da mesma “elite
rural”, pois que, naquele clube de “patrícios”, como mutuamente se designavam,
não havia lugar para qualquer um que não se medisse numas boas jeiras de terra,
lavradas por uma, duas ou três juntas de bois. E, naturalmente, que não pudesse
sustentar uma esmerada, vistosa e parideira égua, um must de prestígio, como, por certo, neste momento da
narrativa, os meus leitores já se deram conta.
Assim, nessa tarde em fim de Verão,
distendidos os corpos das tensões do dia e animados os espíritos com uns copos
de vinho a celebrar reencontros e amizades antigas, quando o nosso herói, com a
égua pela brida, se preparava já para regressar a penates (que a distância não
era peca e de um momento para o outro a noite caía), surgiu no grupo, mais um
empertigado conviva, alargando-se a roda.
O protagonista da estória que, desde
tenra idade, frequentava feiras e mercados e por todas as aldeias do concelho tinha
amigos e conhecidos, como era de sua condição. Muitas vezes, aliás, por ocasião
das celebrações festivas, era hóspede e conviva em cada lar, por mais distantes
que fossem os festejos e os convites.
Era por isso quase um escândalo não “frequentar”,
num processo de mútuo reconhecimento, quem, na área de todo o concelho, “merecesse a pena” conhecer. Mas a verdade é que
não conhecia o novo intruso...
O “escândalo” e a angústia existencial
eram tanto maiores quanto é certo que o retardatário estava a ser nomeado, por
um ou outro, como “senhor Zezinho”,
suprema glória de distinção o tratamento em “inho”,
ele que nunca fora “antoninho”, mas
apenas António, a que muitos acrescentavam, com alguma velhacaria, não o
apelido da família, mas a “alcunha” que herdara do honrado nome de seu pai e que,
alcunha essa, haveria de prolongar-se por filhos e netos.
“Quem
seria, pois, o figurão?” – interrogava-se, intimamente, espiando-lhe adames e
trejeito, sorvendo-lhe a verve desenvolta, admirando-lhe os lustrosos
polainitos de cabedal, a prender-lhe, por cima das botas, a perna das calças.
E, sobretudo, o luxo de duas reluzentes
esporas afiveladas, uma em cada pé, ele a quem uma única espora bastava para meter
a trote a garbosa égua, lustrosa de bom trato e de um azeviche negro de causar
inveja ao mais pintado.
“Quem
seria, pois, o finório”?
E, neste diálogo com seus botões, jurou para
si o herói da nossa estória que não acabaria o dia “sem lhe conhecer a montada”, pois que todo aquele aparato lhe
soava um pouco em falso...
Dito e feito. Simulando compras de
última hora, despediu-se, recomendando-se a amigos e familiares distantes e, de
égua pela trela, deu mais uma volta pela feira já prestes a levantar ferro. Sempre,
naturalmente, atento ao grupo de “patrícios”...
Quando percebeu que o grupo se desfizera
e que o regresso a casa se iniciara, também o nosso herói montou e, medindo
tempo e distância, meteu a égua em trote acelerado, bem sabendo ele que, antes
os caminhos bifurcassem, ele para oeste, em direcção à ladeira do rio e o seu
émulo sempre em frente pelo planalto, haveria de alcançar a ranchada que, pelos
caminhos sempre se junta, trocando chistes e gargalhadas e, certamente, no meio
dela, diferenciando-se, o sujeito objecto de suas inquirições íntimas. E a
respectiva montada, está claro...
Desesperava, no entanto, o herói desta
fita. Passara, em trote firme, um e outro grupo barulhento, que saudara como
lhe cumpria, moderando a passada, mas onde
diacho se metera o homem? Não havia maneira de o descobrir por muito que
acelerasse ou moderasse a passada...
Até que, quase a desistir, depois de
vencer uma curva que, por momentos, encobria o seguimento do caminho, lobrigou
a umas dezenas de metros de distância, despernado do grupo que mais à frente se
distanciava, um vulto que se diria quixotesco (enfim, considera agora este vosso
narrador, que de vez em quando gosta de se dar ares de intelectual).
Imaginem assim os meus leitores o porte garboso
e altivo do “cavaleiro da triste figura”,
firme e hirto, a montar, não o estimável e brioso cavalo Rocinante, mas o burro lazarento e mirrado que servia de montada e
apresto ao seu fiel escudeiro, companheiro de aventuras.
Pois, assim, o nosso “senhor Zezinho” para espanto e gozo do protagonista
desta estória. Montando, em pêlo, a lazarenta criatura, com dois sacos presos
um no outro, servindo de alforges, as pernas compridas do cavaleiro atravessavam-se
por baixo da barriga da besta, com o reluzente par de esporas, a bater uma na
outra num tilintar obsessivo, salvando-se assim a azémola das ferroadas dos
espigões que bem lhe bastavam as picadelas de moscas e zangões.
Contido o riso e o gozo, o nosso herói não
resistiu à picardia: “Meta-lhe esporas,
senhor Zezinho, olhe que se faz tarde. E se a noite chega ainda tem que levar a
montada ao colo...”
E, apertando a égua, abalou em galope,
por entre a poeirada dos cascos, que os últimos raios de sol davam tonalidades
doiradas.
..............................................................................
Mais tarde, por mero acaso,
desfez-se o mistério. O “senhor Zezinho” de duas esporas e burro lazarento, passada
a meia-idade, havia regressado à terra natal. Depois da tropa por
lá se ficara, andando por Franças e Araganças e comendo o pão que o diabo
amassou.
Partiu pobre e regressou pobre. E o seu
instinto de sobrevivência, fez dele arquétipo e vítima da funesta fatalidade “que mais vale parecer, do que ser”.
Que hoje se inscreve nos anais da Pátria
como razão de Estado.
Assim, os tempos!...
12 comentários:
Muito Bom!
Muito bem escrito!
Ala que se faz tarde...
Tudo dito, numa leitura social clarividente.
bj
Voltei atrás para ler desde o início e... gostei muito! :)
Abraço!
Supondo que o figurão, esse refinado finório, por força de poupadas compras, não será pelas devidas facturas que alterará o seu "topo de gama"...
Um bom texto, e datado
Extraordinariamente bem escrito, fez-me lembrar os meus tempos de rapaz em que o meu pai, para arranjar mais uns tostões, fazia a escrita de dois lavradores: ia adiantando-lhe dinheiro, ou o que precisavam, e as contas eram feitas pela Feira da Luz, salvo erro, 11 de setembro.
Abraço
Uma deliciosa viagem o teu texto
intemporal
Abraço
Um belo texto!
Abraço
Um texto que pode ser o retrato de hoje.
Gosto das personagens, nomeadamente do António :)
Beijo.
Excelente! De primeira água.
Quem se veste de aparências nem sequer chega ao "dois cavalos" fica-se pelo jerico.
Abraço fraterno
O relato está nos "conformes", muito bem urdido, em país muito mal tecido (de governantes)...
Abraço
Infelizmente assim vai sendo: «vale mais parecê-lo que sê-lo»!
D. Quixote ao contrário... Muito giro!
Muito bom! A fazer-me sorrir e a lembrar-me outros textos seus mais antigos :)
Pbs pela excelente análise.
Beijinhos :)
mariam
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