Assentemos, pois, que o
autor não existe. Enfim, é possível, porventura, que se apresente, em sua aridez e obscuridade,
como determinante em “última instância”, digamos assim, ou como descarnada infra-estrutura na
construção da narrativa, que em seu equilíbrio instável, uma vez erguida, evacuará todos os resquícios de individualidade para glória de um discurso sem sujeito.
Também o tempo não
existe. É apenas uma tela de luz e de sombra e um jogo pendular de sinais
onde, em desamparada solidão, a escrita se engendra e a leitura (se leitura
houver) será viagem em busca de expressividade e sentido – Infinito-Presente sem horizonte à vista. Nem recuo possível...
E o espaço também não. Enuncia-se tão somente como jangada sem leme, mergulho no caos desordenado da memória,
reminiscências diurnas, subterrâneas pulsões, fantasias e invenções, miasmas
abraçando ainda a noite negra e a tempestade. E o(s) lugar(es) da escrita são cenário
minimalista onde a narrativa se escora, mas dos quais, a final, restará apenas - como do sujeito - tralha descartável.
As personagens, sim.
Acotovelam-se na entrada, exigindo-se, em furor, outras apenas com latência,
envoltas em neblina, tecidas de incerteza, como o rosto das estátuas antes do
primeiro afago do cinzel, sob o olhar atento do artista.
Volto
a ti, Maria Adelaide, como quem, depois da caminhada e da poeira, pretende a
fonte. Sei que abres o regaço e que os teus dedos estão disponíveis para
carícia. Porque venho? Sei que te interrogas. E eu que a ti regresso sempre
como porto antigo que conhece o barco e os ventos e a brisa que em ti
perpassam, como o ponto neutro de que nada se espera. Apenas o vinho que se
(de)gostou e de que se guarda a última garrafa. Que por certo nunca será aberta
- sabe-se lá se vai resistir ao tempo!...
Vejo
o teu sorriso: -“Meu pobre amigo, continuas a acreditar nas tuas fantasias,
como se elas fossem alimento. Sabes que gosto de ti e dos teus poemas, mas a
vida e outra coisa. E tu devias saber que foste o sopro da minha regeneração
como mulher!...”
Atalho
o teu discurso. Antes de falarmos do teu divórcio e do que se seguiu quero-te
ainda assim frágil e disponível. E as palavras que espero...
Sabes? Apetecia-me rever os locais, sentir o
travo das noites quentes de Alfama de que o Stº António é mero pretexto. E que
a atmosfera densa e quente te fazia lembrar tua África natal. Lembras-te? O
João, teu marido, nos seus afazeres, estiveram toda a semana fora. E chamas-te,
em teu capricho: “Quero que esta noite seja nossa!...”.
Subimos Alfama
enlaçados. Misturamos o corpo e os sentidos com multidão. Colhi o cio de teu
corpo de encontro ao meu. E bebeste vinho pela minha mão. E descobriste a
experiência nova do pulsar do Povo reguila e fadista, que, como quem navega “cravo
e canela” de outrora, colhe agora turistas. Sorvi contigo os cheiros de África
da tua meninice, que dizias. Em teus olhos novas descobertas e os meus,
escravos. Mostrei-te o que sabia. E subimos colina acima. E na noite nos
demos...
Horas
antes, porém, na livraria onde nos encontramos e fingimos, como dois estranhos,
os teus braços, inesperados, envolvendo-me pelas costas, teus seios firmes em
arrepio de prazer, a suavidade de teu perfume a inflamar os sentidos, o teu
hálito quente, como um beijo, a espraiar-se na nuca: - “Amas-me?”.
E
perante a incomodidade do meu silêncio, agora de frente, a espicaçar a
perversidade e a transgressão, que tão sabiamente administras: “Não respondas!
E rouba um livro para me ofereceres...”
E
numa doçura murmurada ao ouvido: “Quero um livro roubado!...”
Aqui o Encenador hesita. Pressente-se que Maria Adelaide, abrasiva e solar,
se ensaia como prima-dona, a exigir todo o espaço operático. Há porém que lhe
domar os impulsos para que a representação seja perfeita. E deixar que outras
personagens sejam em seu destino imprevisto...
Antes que Maria Adelaide venha, letra a letra, em seu inefável sortilégio...