Pois é, Maria Adelaide, no parto da escrita, nem
sempre o óbvio é certeza, nem o percurso das palavras segue o carreiro, antes é
voo desgarrado, despenhadeiro de águas desconhecidas, ou aguilhão inesperado ou
gota de suor a encavalitar-se na fronte, de que não há maneira de fugir. Deixemos,
por isso, que as palavras fluam, sigam seu registo volátil, marcas desamparadas
e ténues que não resistem ao mais leve torpor, e nos encaminhemos, sem
resistência, conforme os desígnios ocultos desta “mão invisível” (não dos
mercados – hélas!) mas a mão que nos guia no entendimento das coisas e nos
desvenda, sob os diáfanos véus da palavra, o mais íntimo de nossas pulsões.
Aceitarás, por isso, embora a contragosto, que, em
vez da anunciada e crepitosa “Papa Alferes” e de sua tia, a narrativa siga seu
desordenado percurso e, em vez da virginal menina e da solicitude extremosa de sua
devota tia, ou de seus “afrontamentos” estampados no rosto, que vinham à
superfície, rompendo os cremes no ímpeto da empolgante missão de defesa do “tesouro”
familiar, trancado no mais intimo e secreto cofre, alvoroçado, porém, tal
tesouro, pelos “calores” húmidos da trigueira menina que, diga-se, o mesmo
secreto “tesouro” ficava um tanto ou quanto desguarnecido pelas suas
curtíssimas mini-saias e os opulentos seios, aceitarás, dizíamos, que em lugar
da menina Gertrudes, famosa “Papa Alferes” e sua tia, a narrativa venha
desembocar no “Bonanza”, cuja presença e desastrado equivoco na pastelaria da Rua
da Escola Politécnica, aliás, ao arrepio de tua nódoa negra e da decisão de teu
divórcio, tanto te perturbaram, bem assim como a familiaridade a que se
permitiu, sabendo nós que as distâncias sociais se medem pela sobranceria e
pela frieza de trato e não por aquele abraço de quebrar ossos de dois velhos
camaradas de armas, ainda que ele Alferes, na disponibilidade militar, e o “outro”
cabo radiotelegrafista “na peluda”, operário e “reguila alfacinha” que, qual
“samurai” dedicado, não apenas baptizou, como “adoptou” o nosso conhecido
“Assobio” e, quotidianamente, perante o mal disfarçado entusiasmo do Alferes,
então ainda “Aspirante”, e o monóculo caído de espanto do capitão Mascarenhas velou,
com desvelo fraterno, pela recuperação, como recruta, do “apoucalhado” amigo, agora irmão de armas.
Sem a resiliente acção do “Bonanza” e de seu grupo de reguilas
alfacinha do Bairro de Alcântara, jamais o “pobre de espírito”, que chegou à
recruta militar, com três dias de atraso, como encomenda extraviada e agora
ostentando o garboso nome de “Assobio” teria alcançado a suprema distinção de
servir na messe de oficiais, emoldurado, como um envelope lacrado, num libré
branca e dragonas vermelhas. Foram eles, o “Bonanza” e seus compinchas, que abriram
a gazua do desabrochar do “Assobio”, numa genuína troca de serviços, resgatada
da fatalidade dos Mercados e na qual a opinião dos economistas nada conta, ele,
pastor de ovelhas desde a mais tenra idade, esmerando-se no melhor de seu
talento de assobiador, imitando a passarada da Serra da Gardunha, na fruste
tentativa de constituir com os seus camaradas um naipe de brilhantes assobios e
eles, grupinho de reguilas alfacinhas, ensinado e treinando, treinado e
repetindo sempre, no tempo livre, ou à noite na caserna, como se a “construção”
do “Assobio” fora minuciosa execução de uma nova “composição tipográfica”,
tentando e repetindo, ensinando a mão esquerda e a mão direita, efectuando
vezes sem conta a “meia volta, volver!”, com toda a “cagança” da Cavalaria, o
“apresentar armas” ou a marcha em “ordem unida”, a aplicação da “solarina” no
brilho dos metais, a limpeza da velha Mauser e o afinar das correias na farda,
o brilho das botas e o uso do pente e do garfo e da colher, pois que militar de
cavalaria pode apresentar-se com mãos sujas, mas as botas e arreios devem
brilhar e cabelo, sem um milímetro que seja, fora do bivaque.
De tal ordem foi
profícua a acção resiliente do grupo de reguilas alfacinhas que, a breve
trecho, o “Assobio” enfileirava no pelotão como peça de um relógio devidamente
afinado.
Porém, não há “bela sem senão”! E em toda a humana
criação há sempre um “quid”, um quase-nada, um grão de areia, um sopro maligno,
um inesperado movimento, um capricho de Deus omnipresente e criador de todas as
coisas, uma falha da Natureza ou um amuo na fermentação do barro de que somos
feitos e o esplendor da obra perfeita decai no absurdo da mácula e da impureza
das formas! Que o diga o grupo de reguilas recrutas de Alcântara, com o "Bonanza" à cabeça, que na
realização da sua obra-prima e a fecunda transformação de um “apoucalhado”
pastor de ovelhas da Serra da Gardunha, que chegou ao quartel com três dias de
atraso como encomenda extraviada, claudicou como uma estátua sem forma. Para
que serve um soldado, carne para canhão na guerra colonial, se não consegue dar
um tiro?...
Assim o “Assobio”!... Finalmente, tão bom como os melhores, por obra
e graça do “Bonanza” e de seu séquito, na marcha, na parada, ou na ginástica de
“aplicação militar”, ou em quaisquer outras performances militares, o “Assobio”
revelou-se um colossal desastre na carreira de tiro. A cada “coice” da velha
Mausar no ombro, o “Assobio”, em cada disparo, largava a arma para tapar, com
as mãos, os ouvidos e, em cada estampido de bala, a espingarda para um lado e ele,
“apoucalhado” arvorado em “Assobio”, tombava para o outro, a tremer e espumar
como um danado, acometido de inesperada agitação física.
De nada valia, nem os
apelos angustiados do “Bonanza” e sua camarilha de reguilas, nem as palavras de
estímulo do Alferes, “aspirante” a oficial que então era, nem a infinita
solicitude dos “cabos milicianos”, futuros “furriéis”, posto em que seriam arvorados,
a dois dias de embarcarem para a Guiné, nem o monóculo caído e as sobrancelhas franzidas,
de dúvida, do capitão Mascarenhas, comandante da Companhia. Nada, absolutamente
nada, nem ameaças, nem promessas conseguiram resolver o conflito íntimo e
visceral do “Assobio” com as armas de fogo!
O “Assobio” era verdadeiramente incapaz de dar um
tiro!...
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Mas que as Barcas façam seu curso! Deixemos o “Assobio” e sua saga. E regressemos a África.
Breve que seja!...
9 comentários:
Ah, a saga do Assobio parece fadada em encontrar obstáculos, que nem mesmo um Bonanza parece resolver...
(Já tinha saudades do Assobio, confesso. A personagem está muito bem construída)
Forte abraço
Começo a temer pela vida do Assobio. Lançado, desse modo ingrato, aos leões.
Veremos como descalça a bota.
Bj.
Nesta África branca das Europas
que nas próximas urnas tudo fique mais claro
Abraço e venha o livro
Pois é, Maria Adelaide, desta vez tiveste de estar calada para que pudéssemos saber que o "Assobio" era incapaz de dar um tiro, o que eu pessoalmente achei uma qualidade... E concordo que "no parto da escrita, nem sempre o óbvio é certeza, nem o percurso das palavras segue o carreiro, antes é voo desgarrado"...
Um beijo, meu Amigo.
Uma história deliciosa, num narrativa soberba.
Excelente, meu amigo.
Boa semana.
Abraço.
Objector ou pastor de rebanhos?
Onde irá parar o assobio? Desconfio que ainda irá "disparar" uns tiros com precisão. Depende da pena e da tinta que lá puser a Maria Adelaide que irá exigir tudo tim por timtim.
A coisa promete...
Abraço
O mundo é grande, meu caro! como tu bem sabes...
sabe-se lá, por isso, até onde poderá chegar o "Assobio"!...
porventura até alcançar o invejado status de "blogueiro" afamado!...
abraço
O início é a pura poesia descrita sobre
"no parto da escrita":
"Nem o percurso das palavras segue o carreiro,
antes é voo desgarrado, ou despenhadeiro de águas
desconhecidas, ou aguilhão inesperado ou gota de
suor a encalvitar-se na fronte, de que não há
maneira de fugir."
A Maria Adelaide como espelho da crítica,
reivindica o poeta na veia do escritor e
levando a narrativa para os caminhos dos sentires...
Ela é muito importante, serei uma defensora feminina
da sua voz feminina na viagem!...rss
O "Assobio" com certeza era o mais especial
da tropa, nesta sua incapacidade de dar um tiro,
existia toda uma singularidade e humanidade no
seu gesto de incompatibilidade com a violência!...
Meu passaporte carimbado para a viagem, Escritor (dos
Grandes) que se diz que não é escritor!...rss
beijo.
Olá... há um discurso espiralado a recordar-me alguém... ainda que o «Assobio» se manifeste autónomo e bem pintado; um «Assobio» que se atira mas não atira tem de ser um ser de complexas vivências... ;-)»
Abraço.
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