domingo, março 27, 2016

FRAGMENTOS XIV - Rua, Disse Ela II


Assim, o País, de sul a norte, ou norte a sul, conforme o ponto em que nos observem, fora então atravessado pela candidatura presidencial do General Humberto Delgado, aqui e agora, nome de aeroporto, como um vendaval esperança que rasgou clareiras e fecundou os caminhos de libertação da Pátria, na madrugada redentora de 25 de Abril.

Essa onda de entusiasmo e esperança atravessou todo o País e atingiu também a capital do distrito, onde, uns quantos “reviralhistas”, reunidos em torno do velho “Centro Republicano” e uns professores do Liceu tresmalhados, desterrados por colocação do atento ministério da Educação, para o “cú de judas” que, por esse tempo, a cidade era, onde, na perspectiva do regime fascista, menos danos poderiam causar à juventude, então, obrigatoriamente, encarneirada na Mocidade Portuguesa.

Antes, porém, o jovem Manuel Caetano e que pequeno herói iria ser, pelo menos, na férrea opinião do Padre Casimiro, a quem a amizade e a provecta idade tudo desculpavam, herói portanto, antes da garbosa figura de Alferes de Cavalaria e do fogo da guerra colonial, terminara o jovem, com fama de excelente aluno, o 2º Ciclo do Ensino Liceal, pelo que com o diploma do 5º ano dos liceu nas mãos, se abria ao jovem a possibilidade de procurar emprego numa qualquer Repartição Pública, hipótese essa logo afastada, já que herdeiro que era do nome de seu avô e seu padrinho, Manoel Caetano, e que para ele, mediante o eloquente simbolismo do baptismo, haviam sido transferidos, o conjunto dos valores éticos, políticos e intelectuais, inscritos no âmago do nome primevo e, se assim fora, isto é, se destino do jovem fosse ser serventuário do regime, os ossos de seu avô erguer-se-iam da tumba e, do alto do seu republicanismo, a ira do octogenário Padre Casimiro fulminaria, como um raio furibundo, toda a família.

Houve, pois, que reunir o “Conselho de Família” para decidir o futuro do jovem, mas de imediato, como sempre acontece nas grandes decisões deliberativas, se verificaram vincadas divergências. As piedosas tias, Maria do Amparo e Teresa de Jesus, ambas solteiras e virgens e zeladoras do Santíssimo Sacramento, que, com a Graça de Deus, aspergiam bênçãos sobre a cabeça do infante e, devotas de Nossa Senhora do Divino Despacho, a Ela se entregavam na apostólica tarefa de lhe encaminhar os passos, defendiam que o rapaz deveria ficar por perto, livre dos perigos do Mundo, que estando perto, nunca bênçãos lhe faltariam e sempre elas poderiam providenciar para que o necessário em bens materiais também não lhe faltasse e que Professor Primário era uma bonita profissão, a Escola do Magistério ficava lado a lado com o Liceu onde fora bom aluno e fizera amigos, por isso, “salvo melhor opinião” – a lançarem de soslaio o olhar para o irmão e cunhado, António Caetano, pai do rapaz - o “menino” devia continuar na mesma cidade e ao fim de dois anos sairia professor acabado, para prestígio da família. 

A mãe, Maria das Neves, inclinada pelo coração a que o filho, que era seu o encanto, ficasse o mais próximo possível de seu regaço, protegido por aquele tão cálido, extremoso e plural gineceu familiar, não podia também esquecer que, além de mãe, era esposa e que respeitar e obedecer à vontade do marido era mandamento de Deus, a que toda a mulher digna desse nome, deve obediência, pelo que a sua vontade estava fundadamente tomada “aquilo que o seu António disser estará bem dito”... Então, o Pai, alargando o passo para além da perna, falou, numa fala digna do Patriarca Abraão “Já que, quando terminou a 4ª Classe, o quisestes tirar da lavoura, onde bom jeito me fazia e bem necessário era, pois então o rapaz vai para Coimbra e será doutor juiz; e, assim, filho meu escusa de aturar os filhos dos outros...”.

E, assim, sem mais quaisquer razões ou assentimentos, o futuro do Rapaz ficou traçado e o assunto ficou definitivamente arrumado, cada uma das dulcíssimas senhoras, sem tugir, nem mugir, rumou aos seus bordados e as suas piedosas orações, a mãe às lides domésticas, donde não devia ter saído para inúteis discussões e o Pai, “padre-padrone”, atarefado, rumou aos seus afazeres, que já estava a fazer-se tarde.

Foi, assim, neste exemplar e genuíno processo democrático de predestinação, em que, como é da naturezas das coisas, o equilíbrio dos poderes decaiu ligeiramente em favor do poder executivo, que o jovem Manuel Caetano ascendeu ao topo do ensino liceal, que havia transportar o Rapaz para a “galeria das celebridades”, como Padre Casimiro não se cansava de elogiar, sempre que a oportunidade surgia e que haveria ditar, conjuntamente com o lastro de seu nome, Manuel Caetano, inscrito na memória de seu avô e padrinho, que haveriam ditar, dizia-se, a eloquente e peremptória resposta às zelosas preocupações da senhora Dona... ,tia da celebrada menina Gertrudes, mais conhecida por “Papa-Alferes”, quando, escassos anos volvidos, num tempo outro, em que a narrativa é quartel de Cavalaria e em que o jovem, ainda não Alferes era, no entanto, carne para canhão para a guerra colonial, tempo em que o sangue fervia e se fez prova provada, que “lume ao pé da estopa, vem o diabo e assopra”.

A coisa requer ainda uns quantos esclarecimentos complementares. Então o Rapaz, que Alferes ainda não era, mas inscrito, porém, no devir dos acontecimentos e nos liames da história e do tempo longo que detém a chave do futuro dos homens e o haveriam lançar, sem remissão, nem glória, e sem que as orações de devotas tias o pudessem evitar, nas bolanhas da Guiné, frequentava o Rapaz, Manuel Caetano de sua graça, com outros dois bem comportados jovens de sua idade, à volta dos 15/16 anos, qual “camarilha de reguilas alfacinhas”, de passo trocado em desfile do 6ºano do liceu, o Rui Monteiro, filho de médico, porta com porta, com a residência de seus afastados parentes, onde se aboletou durante os sete anos do Liceu, circunstância que os fez amigos desde as incipientes aulas do 1º ano e o Tozé Madureira, filho do juiz corregedor, que naquela cidade fora, nesse mesmo ano colocado, pelo que o Tozé veio acrescentar, de dois para três, o número de alunos do 6º ano, alínea e), destinados prosseguir na Universidade os estudos de Direito, ele, Manuel Caetano, por destinação da família e passada mais larga que a perna de seu pai e eles, o Rui, filho de médico, e o Tozé, filho de juiz corregedor, por estar inscrito na ordem natural das coisas serem juízes ou advogados. De forma que, esta camarilha “avant la lettre”, apascentava os livros, transversalmente, pelas diversas turmas, acrescentando os seus nomes, conforme os horários, às diversas turmas da área de Letras desde, das meninas de Românicas (Latim e Literatura) e às meninas de Germânicas (Alemão), passando pelas turmas mistas de Histórico-Filosóficas (História e Filosofia)

Era então esse tempo, tempo de cerejas e borbulhas, atravessado por um tempo-outro, mais fecundo, onde se jogam os veios da História, em que a campanha eleitoral do General Humberto Delgado para a Presidência da República foi uma insurgência espectacular de entusiasmo e confiança. A pacata cidade, remoendo, em suas entranhas, mesquinhas maledicências e pequenos prestígios, ou moles velhacarias, mas também expressivas generosidades, empolgou-se com a passagem da caravana do General Humberto Delgado em campanha eleitoral e saiu à rua, uns tantos por convicção, certamente, outros mera curiosidade ou levados pelo entusiasmo envolvente e, por entre as filas, excitados e eufóricos com a gritaria, a trupe de futuros doutores em leis, o Rui, o Tozé e o Manuel, como se um “grupo de reguilas alfacinhas” do Bairro da Alcântara fossem, a “pinchar” as ruas de Lisboa com frases revolucionárias, gritando a plenos pulmões Viva o General Humberto Delgado, num entusiasmo desmedido, que transportaram para a sala de aulas.

Assim, no intervalo da aula de História para a aula de Língua Alemã, impulsionados pelo alarido das ruas, escrevem no quadro, com giz vermelho, a toda a largura “Viva Humberto Delgado, o General sem medo”. Gera-se o natural bulício entre os alunos, quer dizer, entre as alunas, que o curso de língua germânica era coisa de mulheres, umas quantas mais aguerridas, buscando as boas graças dos três rapazes, tidos como excelentes alunos e heróis de momento, num chinfrim de gritinhos e aplausos. E outras, as beatas, encolhidas na carteira escolar, não tugindo, nem mugindo, mas com a perturbação e o medo ruborizados no rosto. O professor de alemão era o saudoso Dr. Eduardo Filomeno, que, como ninguém, declamava, na língua de Goethe, longas estrofes do imortal “Fausto”

“Surgis de novo, figuras fugidias
Que ao curvo olhar vos mostrastes outrora.
Cabem em meu coração tais fantasias?
Serei capaz de vos reter agora?
Quereis entrar! Seja, reinais sem peias,
Vós, que subis das brumas da memória;
A minha alma renasce, emocionada
Pelo sopro mágico de vossa cavalgada”...

 ... e que  nutria com o trio de juristas, armados em camarilha de reguilas alfacinhas, particular simpatia, não pelo interesse que os jovens revelavam pelas declinações gramaticais da língua alemã, para as quais solenemente se borrifavam, mas pela circunstância espúria de encontrar eco naquelas almas virgens para a poesia de Goethe, Shiller, Rilke ou Hölderlin, e – helás! - também, Brecht!

Ora, acontece que depois de largos anos de ostracismo, a que fora votado pela cidade, obrigado a ficar retido em casa e alimentar a numerosa prole com umas esparsas explicações a alunos cábulas, pois que esta coisa de partilhar “ideias subversivas” tinha seu preço para um jovem professor do ensino oficial que se nega a prestar o juramento de fidelidade à ordem estabelecida com o Estado Novo, o Dr. Filomeno ensaiava então a recuperação socioprofissional, primeiro, durante um bom par de anos, como professor contratado no Colégio, propriedade da Diocese, onde, ao que parece terá dado provas de regeneração e, naquele mesmo ano, a que os narrados factos se faz menção, como professor interino do Liceu Nacional.

Ó, vós que passais” julgai vós das razões do Dr. Filomeno!... Que, com a ressurreição dos mortos, “o da Barca” o encaminhe para o reino dos Justos, pois que para o trio de futuros juristas o julgamento ficou desenhado no rosto atónito do Dr. Filomeno, em diversos tons de verde e amarelo e a sua voz cava e trémula, como se, num tempo literário, outro, Fausto se erguesse da tumba e perante o espectro de Margarida declinasse sua traição e sua dor: “Apaguem “aquela frase” no quadro, imediatamente!... Vocês não queiram destruir vossas vidas, nem do vosso professor...”

Não se sabe ao certo qual dos jovens tomara a iniciativa de escrever, no quadro negro “aquela frase”Viva Humberto Delgado, o General Sem Medo! Apenas se conhece que os três jovens, que juristas ainda não eram, se ergueram em uníssono e que eles, Rui, Tozé e Manuel, proclamaram que, por sua iniciativa e convicção o haviam escrito, subscreviam e mantinham e iriam apagar a frase pelo muito respeito que ele, Dr. Filomeno, lhes merecia como professor, mas nunca o fariam por cobardia. E assim o acontecimento desceu à cidade e comentado, acrescentando-se sempre um ponto

Tudo visto e ponderado tanto bastou para que, na amizade sem mácula do bom Padre Casimiro, o Rapaz, que Alferes, anos mais tarde, haveria de ser, num quartel de Cavalaria, onde por um acaso, ditado por desatinado recruta apoucalhado, sob seu comando, haveria conhecer uma tal menina Gertrudes e sua zelosa tia, tanto bastou, dizíamos, para que o Padre Casimiro, unha com carne com seu avô, Manoel Caetano, guindasse o jovem para a “galeria das celebridades”, circunstância essa, conjuntamente com o lastro de seu nome, Manuel Caetano, inscrito na memória de seu avô e padrinho, haveriam ditar, como em breve se irá saber, a eloquente e peremptória resposta às zelosas preocupações da senhora Dona... ,tia da celebrada menina Gertrudes, mais conhecida por “Papa-Alferes”, eloquentemente expressa em carta com registo ao Pároco da freguesia na qual a ilustre senhora impendia a Sua Reverência para que lhe fossem prestadas informações fidedignas sobre o rapaz e sua família, enfim, coisas de pequena monta, que uma tia tem obrigação de conhecer, antes de entregar a sobrinha a um Cavalheiro e Oficial de Cavalaria, tais como o montante dos cabedais, terras, influência social, comportamento respeitador de Deus e do próximo, etc., etc... do jovem oficial e cavaleiro e de sua excelentíssima Família.

Foi por determinação divina que a carta da augusta senhora caiu nas mãos do Padre Casimiro, que amigo da família, nos termos sobejamente conhecidos e que nutria pelo jovem esmerada afeição. Do alto dos seus 80 anos, zeloso do nome e da memória de seu amigo, Manoel Caetano, avó e padrinho do rapaz e fiel guardião dos princípios, valores e regras que vigoravam naquelas paragens e assim seria, enquanto a saúde e força dele, Padre Casimiro, o permitissem,  continuariam a vigorar naquelas terras, sobre a quais, depois de Deus, ele decidia, compreendeu de imediato os danos que tal carta poderia provocar na ordem estabelecida da pequena comunidade rural e, sobretudo, no futuro do Rapaz, neto e afilhado de seu dilecto amigo, Manoel Caetano, e que, o Rapaz, ele próprio, por "feitos valorosos" se guindava, tão novo, à fama dos predestinados. 

E, então, se bem o pensou, melhor o fez e, depois de consultar secretamente os santos da sua devoção, o bom do Padre Casimiro, conhecedor do mundo e das armadilhas da vida, respondeu à esforçada senhora, tia da menina Gertrudes, a consagrada “Papa-alferes” que a família do rapaz, Oficial e Cavalheiro, num Quartel de Cavalaria, algures no País, além de ferozmente ateia, estava falida (o que não andava longe de ser verdade) e acrescentou ainda o glorioso Padre Casimiro um conjunto de outras indignidades que o decoro não permite referir (o que era manifestamente um exagero).

Que pode então uma tia fazer que não seja gritar: “Rua, ponha-se na rua, seu estafermo!...

E um Alferes, que ainda não era, encolhendo os ombros rumo ao quartel - “sic transit gloria mundi!...”
..............................................................

Maria Adelaide bate o pé de impaciência - vamos fazer-lhe a vontade, antes do regresso à Tabanca, onde, pacientemente, outros personagens nos aguardam .... 


7 comentários:

Graça Pires disse...

És um excelente narrador. Misturas a realidade com a ficção o que desperta nos teus textos a imensa curiosidade de quem os lê... Gostei muito e confesso que já ando com saudades da Maria Adelaide.
Um beijo, meu Amigo.

Ana Tapadas disse...

Concordo com a Graça em cada palavra!
Saudades tuas.
Bjs

Mar Arável disse...

Estimado amigo Manuel
tudo bem na tua excelente caminhada
desde que não "mates" a dona Adelaide
Se ousares terás o meu Assobio

Abraço sempre

Manuel Veiga disse...

oh... oh, meu caro MarArável.

não confundas, peço-te, a "minha" Maria Adelaide, licenciada em Línguas e Literatura Moderna, com uma qualquer "dona", Sereia lá da tua escarpa... rss

a Maria Adelaide não responde a "assobios", nem corre atrás do "estalar dos dedos" ... rss

abraço fraterno, meu caro Eufrázio.

Genny Xavier disse...

Caríssimo,
Boas narrativas saciam a sede do leitor... de sorver com gosto na fonte das histórias...

Beijo,
Genny

José María Souza Costa disse...


Tenho uma janela por onde vara cores de momentos
E uma eterna mania de sonhar.

Suzete Brainer disse...

Uma narrativa na excelência (assim sempre é...rss),
com a citação de Goethe e todo o trabalho literário oculto,
na certeza da história com suas ramificações narrativas
serem o centro do olhar do leitor, a ficar na memória,
ocupando um espaço afetivo à espera da continuidade
desta viagem, que passa a ser nossa, quando entramos
com este olhar; esta afetividade e os detalhes das
cenas,a gritar a volta da querida Maria Adalaíde
(sou íntima já...rss).
Ela é uma personagem feminina que brilha com todos
os belos paradoxos tão bem escrito por ti!
Meu passaporte carimbado para a continuidade
desta viagem!...rss

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