sexta-feira, abril 06, 2018

A Merência


Recordo-me da Merência, espigadota, de cabelos ruivos e sardas dispersas pelo rosto leitoso e bem desenhado. Um pouco misteriosa nos seus silêncios, arredia às brincadeiras mais ousadas dos rapazes que, com ela e outras rapariguinhas se juntavam no adro da Igreja, depois das aulas, como potros selvagens, nos fins de tarde daqueles longínquos anos de Primavera. E quando algum, mais afoito, lhe levantava a ponta da saia ou, no pretexto das brincadeiras, atrevia a mão aos seios púberes e, ela soltava, numa indignada recusa:

- “Vê lá se apanhas um estalo!...”

Junto ao adro, descaindo um pouco para oeste, rematando o pequeno largo, como vértice da rua da Igreja e a rua mais estreita da Calheta, era a forja do Ti´ Alípio. De essencial direi apenas que o “Tio” Alípio, viúvo, criava dois filhos ainda tenros, à força de marteladas na forja e do esgravatar de uns alqueires de centeio, em terras arrendadas, nas ladeiras íngremes dos rios da minha infância.

O Manuel, o mais velho, - em estrita divisão social do trabalho (isto sou eu agora a falar...) - fora destinado às agruras do centeio inóspito e ao cultivo de uma pequena horta a uns escassos quilómetros da povoação, a qual, por razões que não antecipo, irá ser o mítico lugar do desenlace desta “estória”.

Para o filho mais novo, o Tio Alípio havia decidido que seria ferreiro e continuar assim a tradição da forja, apontando relhas e aguçando enxadas ou, quando necessário, ajustar as ferraduras de alguma besta. Pensaria o bom do “Tio” Alípio, que reservar para o seu benjamim a tradição da forja seria, certamente, a maneira certa de homenagear a mulher, falecida no momento do parto, de cuja família recebera a oficina.

Acontece, porém, que o Zé - é esta a sua graça, embora mais conhecido por Zé “Sugão”, já que em criança compensou, durante largo tempo, a carência de afectos maternais com o “sugar” dos dedos na boca, hábito que pela adolescência se prolongou, mediante a substituição dos dedos pelo permanente sugar de figos secos – acontece, dizia, que o Zé não tinha nem físico, nem vontade para a violência da forja, a que fora acorrentado...

Era, pois, com manifesto regozijo que, espreitando pela fresta da porta da forja, acompanhava as nossas brincadeiras no adro. Uma ou outra vez, quando o pai, por qualquer outro afazer, se ausentava, era certo que Zé, a quem a vida reservara mais agreste passatempo, subia a curta distância das nossas correrias.

Quando assim acontecia, a Merência de olhar fixo no chão, sentava-se no muro do adro, ajeitava a saia, esticando o tecido até à extensão das pernas, cobrindo a penugem incipiente que as adornava e que os últimos raios do sol, descendo no horizonte, davam tonalidades delicadas.

O Zé, a uns palmos de distância, encostado ao muro, sem uma palavra, olhava-a de soslaio, mal disfarçando o pudor do êxtase num pontapé ou outro, como quem enxota visita indesejada, quando inadvertidamente a bola lhe chegava aos pés...

E assim ficavam aquelas duas alminhas, mirando-se, sabe-se lá a que alturas transportados, até que o adro da igreja ficava deserto ou, antes disso, o Ti´ Alípio, qual trombeta do juízo final, reclamava a presença do filho, bem sabendo então o Zé que o deleite do paraíso iria decair no ardor infernal de um bom par de estalos na cara. É que Ti´ Alípio, rigoroso “padre padrone”, não admitia transgressões na ordem familiar e, muito menos que o filho, herdeiro designado de seu brioso ofício, andasse “metido” com a “galdéria” da Merência...

Importa esclarecer que o Ti´ Alípio, ainda que vagamente aparentados, não falava com a família da Merência. Uma antiga rixa sobre partilha de águas com a propriedade confinante à horta que o filho mais velho, o Manuel, zelosamente granjeava, alimentava entre eles um verdete de ódio, que nem festa ou morte, alguma vez haveria de limpar. Toda a aldeia o sabia. E respeitava aquela funesta zanga na profundeza (ou insensatez) da sua autenticidade...

Passaram anos. A infância esgotou-se como um suspiro. Com o alvor dos anos sessenta a aldeia despovoou-se com emigração para França e outras araganças. Entretanto, o Ti´ Alípio falecera. O Manuel largou a junta das escanzeladas mulas e as agruras da horta e do centeio e enfileirou na emigração a salto. O Zé, porém, por lá se deixou ficar, acantonado ao fervor da sua devoção maior...

A forja morreu de estertor natural. O estiolamento, por falta de braços, da produção agrícola tornou-a supérflua. Nem o Zé com isso se importou. Respeitava o nome do pai, mas odiava o seu ofício... E a Merência lá continuava, firme, como estrela polar, marcando-lhe o rumo e a vida...

Por essa ocasião, nas minhas subidas à aldeia, em tempo de férias, ia sabendo de Zé, por quem tinha sincera amizade, caldeada (no mais lídimo sentido da palavra) nas minhas escapadelas para à oficina de Ti´ Alípio, onde, deslumbrado, acompanhava o contorcer do ferro em brasa e a metamorfose de sons na bigorna sob a força do martelo, donde saltavam fagulhas patéticas, que a meus olhos eram fadas ou estrelas caídas de um céu por mim inventado...

Sabia, por isso, que o Zé ia sobrevivendo, jeira aqui ou ali, ou como criado de lavoura por um período mais ou menos longo, de algum lavrador mais teimoso, resistente aos caminhos da emigração, para quem o cuidado das terras não lhe permitia partir, nem o fruto do trabalho lhe permitia ficar.

Tempos negros, esses!...

Em minha ânsia de por em dia o balanço de meus afectos, perguntava, então, também pela Merência. Todos os irmãos haviam emigrado, mas ela ficara e era o amparo da mãe, cuja doença prendera, sem remédio, à enxerga.

E, entre sorrisos mais ou menos explícitos e insinuações picarescas ia então eu cimentando a suspeita que a Merência e o Zé se encontravam, pela calada da noite, no recato dos lençóis, de que o Zé se escapulia, lesto, já quando a alva brotava no último canto dos galos e horizonte se tingia das tímidas cores da manhã.

Contava-se até, que um dia, surpreendidos, entre estevas e giestas, em parte do termo mais distante, o Zé obrigara o incauto pastor a ficar calado, mediante promessa de lhe guardar as ovelhas, no dia da festa do Verão, em honra do santo padroeiro da freguesia, quando os jovens da terra, de fatiota nova, se revolvem em bailaricos e, quando Deus quer e a ocasião surge, nalgum canto mais esconso, os corpos suados na dança, se soltam no frémito dos sentidos.

Contava-se, pois, na aldeia, os encontros clandestinos dos dois amantes, sendo que as más-línguas logo acrescentavam versão mais picante, posta a circular pelo lesto pastor: ou seja, que o Zé, fazendo jus à sua alcunha de “sugão”, estaria a amestrar a língua nas mais íntimas impudicícias da Merência.

Tal era o falatório e a risada pública que, pelo Entrudo, entre os gritos e esgares, os “caretos” e os galfarros da terra, mimavam o Zé, declamando, em coro: - “Haja decência, Zé  Sugão e a Merência!”...

Enfim, uma orgia de gritos e gestos, com laivos de crueldade...

O picaresco episódio acentuou o divórcio com o povo da aldeia. Em olímpico desprezo, porém. Raramente se viam juntos durante o dia, mas pela calada da noite encontravam sempre engenho e arte de se amarem, quando a mãe da Merência dormia ou, quando já mais débil na doença, não podia atazanar a filha, “que era a sua desgraça”...

Assim, por anos a fio. Claro que a lei da vida, por vezes, é justa. A mãe da Merência acabou por falecer e, com seu óbito, foram removidos os últimos obstáculos à felicidade daquele perene noivado. Sem encargos familiares, eram ambos livres de se “juntarem” e o povo da aldeia que se danasse...

À Merência coubera em partilhas o terreno confinante à horta do tio Alípio centro das desavenças antigas entre as duas famílias, que constituem, por assim dizer, os liames ignorados desta história. Assim, à margem das regras, subvertendo a ordem social, juntaram os trapinhos e os escassos atavios, que as vidas, essas, há muito haviam sido fundidas numa única órbita, como os deuses costumam desenhar para os amantes predestinados.

A horta, que de bom grado o Zé trocara pela forja, em ajuste amigável com o irmão, agora um pouco mais alargada com herança da Merência, era uma espécie de jardim das delícias. Reconstruíram o casebre que lhes servia de guarida, à força de braços e teimosia, dando ao escasso cubículo condições mínimas de dignidade e esmerada limpeza que a Merência nessas coisas não transigia. O Zé, com ajuda de uma junta de bestas tratava da vinha, da meia dúzia de oliveiras e de algum cereal. Ela, a Merência tratava do “seu” Zé e da horta e dos primores, quando chegava o tempo.

Arredados assim do mundo e do destino da aldeia, onde raramente desciam...

Quis o acaso (ou a estranha razão dos afectos) que numa tarde de fim de Verão, quando o narrador percorria veredas e memórias, em viagem circular de um tempo sem regresso, fosse desembocar ao mítico lugar, onde o Zé e a Merência, havia construído o seu destino - o seu porto de abrigo e o seu mar.

Devo esclarecer que, embora sabendo das suas vidas, como ficou referido, haviam passado mais de vinte anos, desde a última vez que o narrador falara com o casal. Receava, por isso, não ser reconhecido e, em última análise, até que a sua vista pudesse ser entendida como intromissão abusiva. Como bem se sabe, existem universos assim, em que uma qualquer vibração exterior, por breve que seja, é bastante para os perturbar.

Estava, por isso, receoso o narrador e hesitou por uns breves segundos. Mas afoitou-se, movido não tanto pela antiga amizade, mas sobretudo – sabe-o agora – pela busca dele próprio, no registo de outras vidas...

Apareceu a Merência ao sinal discreto no portão. Acompanhada de belo exemplar de um cão malhado, que foi esfregar-se às suas pernas e prontamente afastado pelo zelo da anfitriã.

- “Ah, és tu!...” – exclamou sem qualquer surpresa, como se fosse ontem o último dia, em que se tivessem visto, ou se como a visita tivesse sido previamente anunciada. Limpou as mãos no avental e apertou a minha, com um vago sorriso de acolhimento. E, sem mais, apontando uns metros mais abaixo:

- “O Zé está lá em baixo, junto à figueira tentando arranjar a parede do poço!...”

Desceu o curto espaço, evocando memórias vagas, que o local lhe despertava e deparou o narrador com Zé, absorto no seu trabalho.

Foi, portanto, o visitante quem quebrou o enguiço do tempo e do lugar. E num vago sorriso, ensaiado nas lides citadinas, em ironia que não passou despercebida, exclamou, prazenteiro, mal o Zé levantou os olhos, incrédulo:

- “Escusas mostrar essa cara, a Merência abriu-me o portão e eu entrei...”
- “Pois é, a Merência é assim: abre a porta ao primeiro vagabundo que passa” - ripostou em sorriso aberto.

Acolheu-me com um forte abraço. E, depois de algumas palavras de circunstância, cada um de nós tentando fazer prognóstico da última vez que estivéramos juntos, com ar sério e formal, o Zé disparou:

- “E eu p´ra aqui a tratar-te por tu e não devia. Ouvir dizer que eras “doutor de leis”...
- "Pois sou Zé, mas não te embaraces... Para dizer a verdade, sou mais uma espécie de ferreiro sem forja – ripostou o narrador numa gargalhada, mal sabendo do que ria, se da frustre memória dos tempos de infância, se da finíssima dor da actualidade.

O olhar do Zé, como aço, procurou então o olhar do narrador e assim ficou, por momentos, devassando-lhe as entranhas da alma. E, depois, desta nesga de silêncio, em que cada um se perdeu, o Zé alargou o olhar à Merência e aos dois palmos de terra que eram seus e ripostou:

- “A minha forja agora é esta. Espero que sejas tão feliz quanto eu sou...”

Insistiu ainda o Zé num copo de vinho branco, “como não se bebe em Lisboa”, fresco, retirado com esmero das águas frias do poço. E beberam numa partilha genuína, com a brisa da tarde a escoar-se por entre os dedos...

A saída, a Merência surpreendeu-o com um ramo de inesperados lírios:

- “São para a tua mulher, que adivinho merecer-te...”

Tanto quanto pode, disfarçou o narrador a pontinha de emoção que a delicadeza do gesto desencadeara e, no seu jeito de camuflar-se em palavras desajeitadas, exclamou em arroubo de sinceridade:

- “Mas, Merência, como eu não sou digno das tuas flores, porque não vais tu entregá-las? E assim ficavas a conhecer a família toda...”

Que não, que não iria!... Havia meses que não descia à aldeia e não tencionava ir lá tão cedo...

E assim se despediram. O narrador com um ramo de flores debaixo do braço. Sabendo uns e outros que passaria tempo sem mais se verem. E que vida, em seus caminhos cruzados, dura apenas o perfume de uns lírios...

……………………………………………………………………
Soube, agora, que o Zé e a Merência foram encontrados mortos e abraçados, por um pastor que por ali passava, atraído pelo latir magoado do velho Piloto malhado.


Manuel Veiga


Nota:
Afinal, penitencio-me
Ainda há cães que sabem latir...

M. V.

12 comentários:

Larissa Santos disse...

Um texto muito bom. :))
Boa tarde

Hoje:- "Caminhada, entre sentidos e rimas"
-
Bjos
Votos de uma feliz Sexta-Feita

Boop disse...

Gosto de histórias
Gostei desta história!
E de como com traços simples de vidas simples se abarca a complexidade universal de percursos interrompidos, de ligações duradouras, de heranças indesejadas, de mundo diferentes que encontram pontos de contacto.
O que as palavras nos dizem e os mundos que evocam.
:)

Emília Pinto disse...

Mas que bela história, Manuel! À medida que a lia, viajava à aldeia onde nasci e vivi até casar e recordadva casos como os que aqui retratas; familias zangadas por disputa de águas, brincadeiras no adro da igreja depois da missa ou depois da catequese onde se iam imaginando " namoricos " que, na sua maioria não deram em nada; quando volto a essa minha aldeia encontro pessoas que fizeram parte de tudo isso e ainda há pouco tempo, depois de um funeral, encontrei amigas minhas e estivemos a recordar esses tempos, esses pretensos namorados e foi, sinceramente um momento especial. Como é bom rever os lugares, as pessoas e as brincadeiras da nossa meninece!!! Fiquei triste no final da história, pois não esperava a morte deles, mas, pelo menos partiram abraçados. Gostei muito, Manuel! Obrigada por me permitires esta viagem a um tempo distante e dificil, mas ao mesmo tempo feliz pela liberdade que tinhamos de correr livres pelos campos e caminhos da nossa aldeia. Um beijinho e um bom fim de semana
Emilia

José Carlos Sant Anna disse...

Bom narrador, muito bom, este narrador, meu caro Manuel. E que belo pretexto você achou para devolver os "latidos" aos cães. Já não preciso preocupar-me com as mudanças. Que bela semântica! Que bela forja!
Forte abraço, amigo!

Olinda Melo disse...

Caro Manuel

Fiquei presa nos fios destas vidas tecidos por este Narrador. Para mim, uma história de amor com um fim trágico. E sem uma razão plausível, posto que se tratará de um conto, fiquei com uma dorzinha no coração. E não culpo por isso o Narrador. As coisas são como são. Vejo nesse desfecho uma lição cruel da vida: é quase impossível fugirmos do mundo, vivermos foragidos dele. Há um tributo incontornável que terá de ser pago.

Abraço

Olinda

_ Gil António _ disse...

Mais um conto que gostei de ler.
.
* Amor: Súplicas do meu sonho *
.
Fim de semana feliz.

Teresa Almeida disse...

Nada surge ao acaso. Não faltam nesta trama sinais de ausência, de crueldade e solidão. Não faltam bálsamos de amizade e amor. Ah! e o perfume dos lírios!
Um conto que é uma reflexão, uma radiografia social e política de uma região votada ao abandono.
Tempos duros aqueles em que o autor se encontra a si próprio.

Parabéns, meu amigo Manuel.
Forte abraço.

Odete Ferreira disse...

É irrelevante, para mim, se a história está alocada em referências reais. Importa-me a condição humana e as circunstâncias de espaço e tempo que retratas. Importa-me o olhar dos outros sobre a Merência e o Zé e, claro, o olhar do narrador que, apesar de não poder alterar o estado de coisas, sabe interpretar as dores e com elas se solidarizar.
Como calculas, doeu-me a leitura (as dores também são minhas), mas tentei minimizá-las com o prazer de ler um texto desta qualidade literária.
Bjo, amigo Manuel

José Carlos Sant Anna disse...

Caro amigo,

Aproveitei para curtir um pouco mais a história desses dois "caipiras". É assim que o chamamos por aqui. Vim esmiuçar esse trabalho de linguagem.
Forte abraço,

Agostinho disse...

Muito mais que a narrativa irrepreensível que me deu prazer ler e apreciar, foi a revelação dos contornos de alma dos simples, com as verdades que as enformam, que me elevaram o sentir.
Por isso, obrigado MV.

Suzete Brainer disse...

Esta leitura é irrecusável, mergulhar num
universo da recriação do autor, com uma
narrativa impecável na excelência literária
e evocativa de uma humanidade comovente
em todos os sentidos!...

Parabéns por este conto, uma obra literária
de alto nível, meu querido amigo.

Bjos.

Ana Freire disse...

Felizes para sempre... no mundo, para o qual a vida os conduziu... e escolheram continuar... há mundos assim... perfeitos... para quem neles escolhe viver!
Noutro qualquer universo... talvez cada um tivesse morrido solitário... e nunca soubesse o que era o amor, a felicidade... ou a beleza e a efemeridade de um lírio...
Noutro qualquer universo... teriam morrido dentro da pressa dos dias... sem nunca ter vivido de verdade!
Magnifico texto, Manuel, deste Portugal profundo... que foi uma delícia, por aqui percorrer, e apreciar, em cada palavra!...
Beijinho
Ana

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