terça-feira, setembro 10, 2019

A CARTA QUE NUNCA TE ESCREVEREI - Take 19


Naquele tempo de cerzir fios e de lançar caboucos da escrita, chegou, pois, àquelas paragens Dona Camila Simone de Bernardette e Malafaya, contrariando a ordem das coisas e as leis Natureza, pois bem se sabe, através de um Zé Ninguém que, por esses dias, também ali chegado, àquelas Terras do Demo e logo ali alcunhado de Zé Canhoto por quem, sendo senhor e dono, tudo decide e tem o poder para nomear, seja ele Zé Ninguém, que não tem onde cair morto, seja ela fidalga, ali chegada para contrair matrimónio e – quiçá – inaugurar nova linhagem, no cruzamento do sangue e dos patrimónios de duas distintas famílias beirãs, cujos avoengos antepassados se perdem nas brumas da história, famílias, por vezes inimigas e rivais, mas naqueles tempos de trevas e misérias várias, ambas confluentes no mesmo desígnio de poder e sustentáculo do regime do Estado Novo, fidalga, pois, àquelas terras chegada, em contramão, que é como quem diz, ao arrepio das águas, pois bem se sabe, no dizer de um Zé ninguém, também, nesse tempo de caboucos, àquelas terras chegado, que as águas correm de norte para sul e não o contrário, sendo, pois, bem claro, na caligrafia da natureza que, se as águas são a correr de norte para sul, poderosas hão-de ser as razões para que uma jovem e distinta senhora, contrariando o normal percurso das águas, venha de sul para norte, das terras úberes de Lafões, fazendo o percurso inverso das serranias despidas da Beira Alta, a abrirem-se, de norte para sul, em estreitos vales, a desdobrarem-se umas nas outras até às terras baixas do concelho de Águeda, onde as águas se fundem e o rio Vouga perde le petit nom de “vouguinha” para se assumir, finalmente, nome de rio e espraiar-se, qual lençol, ou xaile bordado e, pouco depois, mais adiante, em Aveiro, entrar Atlântico adentro, como se nada fora.

Vinda, pois de sul para norte, num tempo de prelúdios desta escrita, que se diz literária, chegava, então, a Terras do Demo, Dona Camila Simone de Bernardette e Malafaya, acompanhada, qual peça de enxoval, pela graciosa e rosada Violante, filha de um dos caseiros da Casa Malafaya, que desde tenra idade lhe aparava os humores e caprichos de fidalga e, na adolescência, amiga e confidente de derriços e fervilhantes paixões, tão próprios da idade e, agora, dama de companhia na Casa Grande, onde as suas vidas, Senhora e aia, se haverão, em seu tempo próprio, que há-de chegar, confundir-se, como dupla do Destino, à qual, sem o saberem ainda, estavam amarradas.

Não apressemos, porém, os passos, que mais do que a vontade dos homens e os ditames da natureza, prevalecem os desígnios de Deus, que tudo pode e manda, de tal forma que se uma senhora, da alta estirpe, se propõe percorrer os caminhos da vida em contramão, com tudo que isso implica em sacrifícios, altos serão, certamente, os desígnios divinos, que tudo determinam, para que tal aconteça e não de outra maneira, não competido ao escrevente mais que registar os acontecimentos, sem a presunção de neles interferir e, se deles é privilegiado observador, compete-lhe apenas decifrá-los, quer dizer, perscrutar-lhes as causas, pois que “felix qui potuit rerum cognoscere causas” – como já anteriormente o dissemos em romba tradução – para que todos os possam entender para maior glória de Deus, sendo, porém, que outros dirão, em chã linguagem e fundado entendimento, que tais altos desígnios divinos não serão mais do que os caprichos da escrita e os humores do escriba.

Desta sorte, cumpre prosseguir este ofício de escrever, qual "escravo preso às galés", como diria Manuel Maria, se Manuel Maria então houvera e não apenas latência,  para decretar que, em tempos outros, que não neste tempo narrado, chegara, finalmente, à Casa Grande, Dona Camila Simone de Bernadette e Malafaya, senhora de nobre estirpe, já o dissemos, montada, com grande aparato, em soberba égua, arreada (a dita égua) com sela debruada a prata, acolchoada de veludos e sedas, como se fora um trono, sentada, pois, a ilustre senhora, em altivo porte, como se a sela, sobre o lombo da besta, fosse um trono e as augustas pernas, pudicamente juntas, a baloiçarem, para o mesmo lado da montada, pois que não é digno de dama ilustre e temente a Deus, abrir, literalmente, as pernas para criados e subalternos e cavalgar, como amazona desenfreada, com as pernas abertas, cada uma a balançar para seu lado, mais a mais, sendo a viagem longa e ondulante movimento do senhoril corpo, a acompanhar o balanço do trotar da égua, inevitavelmente, as partes íntimas, sendo as feminis pernas abertas, forçosamente, iriam roçar no rijo cabedal da sela e, assim, causar à distinta menina sabe-se lá que ardores, ou cândidos (ou viciosos) estremecimentos, ou pensamentos bem pouco dignos, em qualquer caso, de uma noiva, casta e imaculada, prestes a consagrar-se nos deveres do sagrado matrimónio.

Não constam, porém, das crónicas, os termos e o modo como a jovem e crepitosa Violante, companheira e cúmplice das brincadeiras de infância e dos jogos da adolescência da noiva-fidalga, fez tão longa viagem sobre o lombo da poderosa azémola, que teve o privilégio de arcar com suas rijas e bem nutridas carnes.

É, no entanto, bem possível, como decorre do normal entendimento das coisas e acontecimentos, que se ainda não conhecidos, em breve, no tempo narrado desta escrita, conhecidos irão ser, é muito bem provável, dizíamos, que a jovem e crepitosa Violante, tenha viajado de pernas abertas, pois que, como saberemos, durante a sua permanência na Casa Grande, amiga e aia de sua Senhora, Dona Camila Simone de Bernardette e Malafaya, lhe foi, à Violante, difícil mantê-las cerradas.

Manuel Veiga





4 comentários:

Larissa Santos disse...

Lindo de se ler:))

Hoje: “Para além do infinito”, aqui»» https://brincandocomaspalavrass.blogspot.com/

Bjos
Votos de uma óptima Quarta - Feira

Elvira Carvalho disse...

A leitura continua muito interessante.
Abraço

Olinda Melo disse...


Veremos que papéis essas duas mulheres, de condição social muito diferente, desempenharão no desenrolar dos acontecimentos. Sabe-se que a sua análise e perscrutação (passe a redundância) das causas caberão ao competente escriba e dele esperamos um claro e urgente esclarecimento dos factos, de conformidade com o seu talento.

E agora, caro escrevente, o que virá a seguir? Um pouco de pressão: Já temos saudade do Manuel Maria. :)

Abraço.

Olinda

Teresa Almeida disse...

Cada carta espicaça o apetite para novos acontecimentos. E que recheadas e diversas são estas missivas! Acabam de chegar novas personagens e, pela forma como são apresentadas, o leitor já não quer perder-lhes o rasto. Está aqui a argúcia e o engenho de quem escreve.

Beijos e continuação de belos takes, caro amigo Manuel.

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