sexta-feira, junho 23, 2006

Uma questão de ser ou não ser...

George Soros é um financeiro internacional que acumulou, durante as décadas de oitenta e noventa do século passado, uma fortuna fabulosa com a especulação bolsista. Nos anos mais recentes, em situação de “reforma”, vestiu a pele de filantropo. Criou a “Soros Fund Management” e uma rede mundial de fundações associadas e, como hobby, dedica-se agora a apoiar o que designa como “sociedades abertas”, em especial, as mudanças económicas e políticas no leste europeu...

No finais da década de noventa escreveu – “A Crise do Capitalismo Global – A sociedade aberta ameaçada“ - no qual faz uma crítica impiedosa e insuspeita ao sistema capitalista. Que não haja ilusões! O autor mantém, assumidamente, que não quer acabar com o capitalismo. Porém, considera – e é esta a tese central do livro - que o “capitalismo global, com a sua confiança exclusiva nas forças de mercado, oferece (...) um perigo para as sociedades abertas” (leia-se a democracia e o Estado de direito) e acrescenta que (...) “o fundamentalismo de mercado é, hoje em dia, uma ameaça maior à sociedade aberta do que qualquer tipo ideologia totalitária...”

Não é minha intenção fazer a apologia do livro ou do seu autor, embora reconheça que são esclarecedores, a diversos títulos, pois que, com inegável conhecimento de causa, desmontam os mecanismos da acumulação capitalista, de que “Marx e Engels, nos forneceram uma excelente análise, há 150 anos, melhor em certos aspectos, devo confessar, do que a clássica teoria económica do equilíbrio” (sic).

Se este assunto vem à colação é porque, no quadro do nosso País, é cada vez mais insistente e atrevida a arrogância com que os chefes dos grandes grupos económicos se abalançam contra o regime democrático, saído da Revolução de Abril. Um desses empresários, “com currículo e obra feita”, comprovados na excelsa circunstância de ser “o homem mais rico do País”, pretende até “promover um movimento de 20 ou 30 empresários”, visando a mudança da Constituição, de forma a permitir ao Estado “fazer coisas difíceis”.

Belmiro de Azevedo, pois é dele que se trata, considera existir uma “conjugação favorável dos astros” para tal mudança, uma vez que “temos um Parlamento, um Presidente da República e um Governo em sintonia sobre o que se deve fazer”. E acrescenta, paternal, que o chefe do maior partido da oposição, “ficaria muito mal na fotografia, se não der um contributo positivo”...

E qual o sentido da mudança? O magnata nacional é claro nos seus objectivos. Quer uma Constituição nova, que termine de vez com essa espúria ideia de que “o poder económico dever submeter-se ao poder político” e que, em Portugal, haja apenas uma estrutura de poder de Estado, composta por “um primeiro ministro, dez ministros e cem deputados”, se possível – não o diz, mas advinha-se – saídos do “partido único” do bloco central de interesses.

Compreende-se! O capitalismo caseiro, vociferando contra o Estado, não enjeita pretender moldar o regime político aos seus desígnios, de forma a colocar, sem rebuço, nem disfarce, o poder político na dependência do poder económico, com um sistema de governo fiel, venerando e obrigado aos seus interesses.

Entretanto, há mais de uma década, capitalistas da estirpe de George Soros não hesitam em denunciar que “o fundamentalismo de mercado procura abolir o processo de tomadas de decisão colectivas (e como tal políticas) e impor a supremacia dos valores de mercado sobre todos os valores sociais e políticos”.

Na perspectiva do autor, o desenvolvimento económico exige a acumulação de capital que, por sua vez obriga a existência de baixos salários e de elevadas taxas de poupança. E isso consegue-se mais facilmente com um governo autocrático, capaz de impor a sua vontade, do que com um governo democrático, sensível aos desejos do eleitorado.

“Aliás – esclarece, de forma crítica, G. Soros – há quem afirme que é necessária uma certa forma de ditadura para que o desenvolvimento económico se desencadeie...” É, seguramente, nessa onda do “Governo forte” que os nossos capitalistas “com currículo e obra feita”, se revêem...

Uma questão de escala, - dir-me-ão os mais optimistas - no cotejo dos nossos capitalistas com outros bem mais lúcidos e... ricos! Uma questão de dimensão cultural e humana – acrescentarei por minha conta!...

10 comentários:

Nilson Barcelli disse...

Não li o livro mas, se não estou em erro, o George Soros disse antecipadamente quais eram as fragilidades do sistema bolsista e explicou até como se poderia ganhar muito dinheiro com a especulação.
Algum tempo depois fez mesmo o que disse e fez a fortuna que se conhece.
Considero que o Capitalismo actual é mais ou menos selvagem e que já dita a sua lei perante a maioria dos governos dos países, principalmente dos mais desenvolvidos (com os EUA à cabeça), sendo os seus líderes marionetas ao serviço dos seus interesses.
No essencial, olham para os países como se fossem empresas com fins lucrativos, onde as pessoas (habitantes) são tratados como uma ferramenta do negócio (produzem, compram, são úteis ou inúteis, e neste último caso são descartáveis, etc.) e onde tudo que não produza a mais valia pretendida (tudo que é social, por exemplo) deve ser eliminado.
Mas só muito parcialmente é que têm razão.

O Eng.º Belmiro de Azevedo, que também começou a acumular riqueza por um processo pouco claro, no essencial à custa da família Pinto de Magalhães, lê pela mesma cartilha do capitalismo politicamente correcto em curso à escala mundial e, por isso, está só a tentar fazer aquilo que os outros já fazem há muito tempo noutros países, com o resultado que está à vista de todos. Às vezes também tem razão mas, na globalidade, as suas ideias não fazem sentido para uma correcta gestão de um país.

Gostei da tua análise. Há gente a escrever crónicas em jornais e revistas que não chega aos teus calcanhares.

Abraço e bom fim-de-semana.

Maria P. disse...

Excelente prosa. Mas penso que o que se escreve nos jornais hoje em dia, salvo raros casos, não serve de bitola para comparação, por lá o nível é baixo.
As badaladas deste Relógio tem sem dúvida um nível superior, incomparável.

Licínia Quitério disse...

Na "mouche"! A dimensão humana onde fica? Reduzida à ínfima espécie. Escondida por debaixo do tapete dos despedimentos, do "já não é preciso", do trabalho "a prazo", da vergonha de ser "a looser". Continuando: "the winner takes it all", que é como quem diz "o capital acabará por te tirar a alegria de seres gente". Estou assim, resingona, mas o assunto que tão bem apresentaste revolve-me os maus humores. Ainda bem. É que ainda não me tiraram tudo. Nem a ti.
Bom fim de semana, Amigo.
Licínia

Lord of Erewhon disse...

Vou ler.

P. S. Não achas, Herético, que o maior dos dramas humanos... é aquela funda fome da alma pela beleza, o bem e a eternidade... que a leva a não poder e não querer aceitar as limitações da sua própria carne?

Claro... quando formos tão velhos como o Livro... restar-nos-á sempre a sabedoria, a coragem intelectual e a verdade... quando a alquimia branca tiver já transformado o nosso desejo... numa espécie de amor fraternal e com-paixonado pelas meninas que levamos para a cama.

Abraço.

Sentires Cruzados disse...

Li o teu texto de um modo faseado:
-Sistema de Economia de Mercado, versus Sistema de Economia Planificada, versus Sistema de Economia Mista.

Não conheço o livro do George Soros mas, pelo que escreves, ele acaba por vir dar razão à análise feita por Marx no Capital.Isto é:
Marx formulou uma lei geral absoluta da acumulação capitalista, segundo a qual «se concentra, num pólo, a massa cada vez maior de riquezas à disposição do capital, enquanto, no pólo oposto, aumenta a miséria das massas trabalhadoras».

-Possibilidade (assustadora) de vermos invertidos os Principios de um qualquer Estado de Direito Democrático.


Excelente post!

Um beijo e um sorriso*

lique disse...

Pois, meu caro, eu de economia não percebo mesmo nada. Para economia já me chega a do bolso e olha lá... :)
Provavelmente, desde que o sistema capitalista impera (de império, pois claro) existe esta "interacção preversa" entre os donos do capital e os governos. Novidade não será portanto. Espantosa é a desfaçatez com que tudo isso é, hoje em dia, assumido e espalhado assim aos quatro ventos. Choca-me, mesmo não sendo ingénua, que um lider de um grande grupo económico assuma assim a pressão sobre os istema político e social. Porque que ela existe, nós sabemos. Que seja tão calmamente assumida, é sinal de que algo está muito podre e não é no reino da Dinamarca.
Beijos

Anónimo disse...

Mais um artigo primoroso. Parabéns, amigo.
O curioso é saber que a terra-mãe não terá uma deferência maior por conta do saldo bancário do falecido... mas um dia a gente aprende!
Um abraço.

Jorge Castro (OrCa) disse...

Começo por deixar o aplauso ao articulista, cuja serena, esclarecida e abrangente análise não cessa de me espantar.

Não comentarei mais nada para além de dizer que tenho de criar o hábito de passar por aqui no sentido de obter ajuda na arrumação das ideias.

Excelente visão, meu caro... Se puderes dar um saltinho lá pela minha fluida geografia, verás qual o resultado prático destas congeminações no espírito e atitudes comportamentais deste tipo de gentinha.

Um abraço

JPD disse...

Está excelente o teu texto.
O que o Soros revela é uma atitude meio estranha: a de abandonar a tentativa insaciável de aumentar a riqueza, deixando de apostar na bolsa para, amenizando a carga fiscal e a consciencia, fazer filantropia e escrever sobre os valores que radicalmente arredados da onda liberal, promovem a sociedade aberta, a sociedade de valores aquela onde ainda se pode falar de humanidade e apelar à preservação da dignidade humana. Como para os capitalistas, a política será instrumental e deverá ser secundarizada, restar-lhes-á satisfazer as necessidades do capital e resignar.
Acontece que esse desiderato deve ser combatido e terá de ser provado e reiterado que sem política e a cultura de valores a selva ameaçará tudos e todos.
Um abraço

eli disse...

esta tua errática amiga não leu (ainda) o livro - leio-te, a ti sempre, com inefável prazer.

beijo meu.

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