“Era uma vez um urso, desconfiado e casmurro por fora, mas por dentro pobre diabo inofensivo, bonacheirão e palerma. Chamava-se Público (diria, Povo), e tinha por comadre uma raposa, das três que sucessivamente se revezam no governo da cousa pública e que ele convidava a jantar. A raposa vinha, contava histórias ao urso, fazia-lhe festas, anediava-lhe o pêlo, trazia-lhe o “Diário do Governo” e dizia-lhe, piscando o olho:
-“ Lê isso que aí vem se te queres rir”!...
O urso punha-se a ler e adormecia. A raposa comia as papas que estavam para ela e mais as que estavam para ele, lambia os beiços, palitava os dentes, lavava as mãos, acordava o urso, retirava-lhe o “Diário do Governo” e dizia-lhe terna:
- “ Não comas mais que te pode fazer mal ao ventre. Vamos dar agora um passeio para esmoer”...
E, montando o urso, raposa ia passear, cantarolando-lhe de cima:
“Raposinha gaiteira
farta de papas
vai à cavaleira...”
O urso, desgostoso e, além disso, magro, queixou-se a outra raposa governante, igualmente sua conhecida, dizendo-lhe que sua amiga, a quem ele dava papas não lhe dava senão portarias e decretos a ele, e que esse alimento continuado lhe cavava o estômago e lhe fazia cair a espinhela.
Respondeu-lhe a segunda raposa:
- “Manda à fava essa impostora! Eu jantarei contigo e te darei papa fina!”...
Foi a segunda raposa jantar com o urso. Muita festa para festa e, ao ir para a mesa, deu-lhe o “Diário do Governo”:
- “Lê isso que aí vem hoje, se queres tirar esse ventre de misérias!”...
- “É decreto”?... perguntou o urso desconfiado.
- “Qual decreto, nem meio decreto! Decretos prestam lá para nada. O que aí vem hoje é uma sindicância. Chuchurrubia-me isso e provarás o que é bom...”
O urso pôs-se a ler e dormiu. A raposa, depois de lhe ter comido as papas, acordou-o com uma palmadinha no abdómen:
- “Ah, seu urso! Então consolou-se ou não se consolou essa barriguinha?... Ora vamos lá agora dar o nosso giro!”
E, de passeio, em cima do urso, a segunda raposa ia cantando pelos caminhos fora:
“Raposinha gaiteira
farta de papas
vai à cavaleira...”
Mestre urso desconfiado de que começava a digerir-se a si próprio, porque da goela para baixo é que não havia passar-lhe papas de qualidade nenhuma, fez queixa à terceira raposa das velhacarias que lhe pregara a segunda.
- “Olha a grande ladra!... – disse a terceira raposa – põe-a no meio da rua, que eu lá vou logo jantar contigo e verás o pitéu que te levo”...
Foi a terceira raposa jantar com o urso:
- “Ora viva o nosso ursozinho, cada vez mais bonito e mais bom urso”... E, dando-lhe o “Diário do Governo”:
- “Aí tens o pitéu que eu te disse!...”
- “Mau... – murmurou o urso pegando no “Diário do Governo” – parece que me está a querer advinhar o coração que temos mais palhada...”
- “Palhada, meu grande bruto?!... - pois tu chamas palhada a isso que aí vem, que são graças e mercês referendadas pelo próprio príncipe e assinadas pelo seu real punho?!...”
- “E essa cousa enche a barriga? – perguntou o urso duvidoso, pelo muito escamado que já estava das outras partidas que lhe tinham feito.
- “Saboreia e me dirás” – respondeu a raposa, estendendo a destra intimativa e solene.
Daí a nada o urso roncava como um porco e a raposa, tendo comido muito bem comidas as papas, dizia-lhe:
- “ Logo há-de-se jogar um voltaretezinho para entreter a noite, mas antes disso pedem as praxes que dêmos uma passeata para arejar as graças que a régia munificiência houve por bem e lhe aprouve derramar sobre nós”...
E escaranchada no urso, a raposa saiu a arejar, dizendo pela via pública:
“Raposinha gaiteira
farta de papas
vai à cavaleira...”
(....)
Ramalho Ortigão – in “As Farpas” – IV volume.
(Estarei ausente do vosso convívio durante uns breves dias! Até lá, dêem um abanão no urso para vez se acorda ...)
quinta-feira, novembro 02, 2006
Outras Leitura VIII - (Era Uma Vez Um Urso...)
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22 comentários:
Não tenho todas as Farpas do Ramalho e, da meia dúzia de volumes, não estão todas lidas.
Esta é uma delas.
Completamente inédita para mim.
Porém, não deixarei de star de acordo contigo: a revisão nos críticos dos finais do Sec. XIX é-nos muito agradável e muito próxima, por ser generalizado o sentimento de que as escolhas de políticos sucessivamente sufragadas em votos se revelaram frustrantes, sem valor, sem correspondência às expectativas.
O outro factor a preponderar é a contundência da crítica que deixa a kms de distância os frouxos exercícios daquela que nos é contemporânea.
Como a oposição está fragilizada e o desinteresse grassa...Resta-nos Ramalho.
Um abraço
É o fungágá da bicharada!
:)=
1975
Hawkwind-The Golden Void Part II
http://download.yousendit.com/8A4D0D16368597F3
Hawkwind-The Wizard Blew Is Horn
http://download.yousendit.com/177781D1433A8755
Hawkwind-Magnu
http://download.yousendit.com/60DEFDD92D7BA90A
Hawkwind-Standing At The Edge
http://download.yousendit.com/967871131A545197
Hawkwind-Warriors
http://download.yousendit.com/345E79256CC80746
1997
Hawkwind-(live)-Wheels
http://download.yousendit.com/0EEBF6350A568B1F
NOTA: SÓ DISPONÍVEL NOS PRÓXIMOS 7 DIAS.
Blogue duma estética irrepreensível, comprometido com a beleza da vida, a merecer mais e constantes visitas no futuro. Gostei imenso desta página elegante. Bom fim-de-semana.
Pois, é do Ramalho, mas podia muito bem ser do RuiZink, ou deou de um outro escritor com a sua verve, tão actual a fábula se mantém. Bom perisco este
Um babrço e bom descanso
O meu comentário anterior tem tantas gralhas que o torna uma anedota e pode levar a pensar que quem o fez é tolinho de todo - o que, asseguro-vos é manifestamente exagerado. Cegueta, cegueta é que eu sou. "Hélas"!
Repito pois o comentário
Pois, é do Ramalho, mas podia muito bem ser de um Rui Zink,ou de um outro escritor actual com a sua verve, tão actual a fábula se mantém.
Um abraço e bom descanso
AntóniMelenas
E não é que o urso está cada vez mais magro mas nem por isso deixa de adormecer quando era mais necessário estar acordado?
Espantoso é como tudo isto se mantém tão actual! Volta breve que fazem falta as tuas palavras. **
Tão actual que parece ter sido escrito à instantes:-)
Volta breve:-)
Um abraço
Passei para te deixar um beijinho e desejar um bom fim de semana.
Ah isso era no tempo do Senhor Ramalho. Se ele cá voltasse, veria como tudo melhorou.
As Raposas estão feias de gordas e o Urso é hoje um invejável anorético.
Bom regresso.
Passei neste domingo chuvoso, para te deixar uma saudação com amizade.
Beijos
passa o tempo, mas as atitudes...
E que é que mudou num século?!
Ou Ramalho é actual ou o país permanece atrasado??!!
O Ramalho era um mal agradecido, toda a gente sabe!
ps: vais estar ausente? Não me digas que vais passear a raposa! :))
Este urso, para além de ser urso é desconfiado! Quando se sente abanado pensa que estar a ser embalado.
Vá e volte com Deus, amigo!
Grande Ramalho!!
(País de «ursos»!)
Abraço.
Hibernaste como o Urso?
Há muito que não lia Ramalho Ortigão. Foi bom recordá-lo ;)
Um abraço e volta depressa. Fazem falta as tuas palavras..
Abraço ;)
Falando em singularidades... Sabias que vai ser lançado um ketchup «Saddam»? :)
“Raposinha gaiteira
farta de papas
vai à cavaleira...”
... eu sorri... quantas vezes não cantarolei isto... ;)
Ainda não é tempo de hibernar... urso... eheh (gostei deste termo)
Neijo ;)
Hibernaste mesmo? Neste Outono quente?
Ai que as raposas confundiram o urso...
Pois que ele há ursos e raposas, ainda. Dou com elas a cada passo. Já para não falar em Diários do Governo. Mas a falta que nos faz um Ramalho!... Não te candidatas?
Um abraço.
Claro que dou com elas e com eles, pois que os ursos também estão para lavar e durar... ;-)
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