Entendamo-nos. Tive na infância e na adolescência educação religiosa. Ainda hoje mantenho traços de carácter (que cultivo), que são tributários da minha formação. Oriundo de meio rural, a religião era omnipresente no ciclo da vida e da produção ...
À distância de décadas, recordo o “ora pro nobis” desfiado em procissão, quando de secas prolongadas por ausência de chuva ou, quando no mês de Abril, em acto de “sagração da Primavera”, com os campos em ondas levantadas pelo vento nas searas ainda tenras, o povo da aldeia subia ao monte mais próximo em ladainha e, lá no alto, o sacerdote aspergia, aos quatro ventos, a água benta, exorcizando as pragas nas culturas, em invocação da Providência sobre o trabalho dos homens e o “pão nosso de cada dia ...”.
Cerimónia de um panteísmo comovente, em que o clerical hissope não era mais que gesto de Pã celebrando, em apoteose, a Natureza festiva e o milagre das colheitas ...
Claro que, depois, “perdi-me” do rebanho. “Coimbra perdeu-me! ...”, como dizia o bom do Padre Manuel, em tolerante bonomia, perante os meus arroubos filosóficos e a minha descoberta de novas cartilhas. E, de alguma forma, - hoje o reconheço! - o Padre Manuel teria alguma razão... Até então, sabia bem de meu lugar no microcosmo social a que pertencia. Posteriormente, aconteceu que poderia ter sido quase tudo - porém, sou apenas aquilo que sou, nas minhas poucas certezas ...
Sei, assim, que a “religião é ópio do Povo”. Mas também sei que o ópio pode, se bem administrado, produzir efeitos terapêuticos. Também as religiões poderão desempenhar, individual e colectivamente, uma função de catarse social, quando não mesmo de impulso à transformação da vida... Aliás, numa sociedade de tantas e tão variadas “alienações” (o consumismo, p. ex.) a religião será, porventura, um mal menor...
Vem isto a (des)propósito da polémica sobre recentes declarações do Cardeal Patriarca de Lisboa, em que Sua Eminência, considera poder constituir “um monte de sarilhos” o casamento de mulheres católicas com homens muçulmanos.
Pressente-se, no desabafo, preocupação com os direitos da Mulher. Na minha opinião, contudo, não isenta, porém, de soberba religiosa, de quem se presume detentor da verdade única. Os muçulmanos têm em relação à Mulher concepções religiosas e culturais que entram em choque com a religião católica e a cultura ocidental? É verdade... São fundamentalistas - dir-me-ão - e não admitem outras concepções e modelos exteriores à sua religião. Em algumas variantes, serão de facto...
Porém, que se saiba, não há religião alguma que, para além de se considerar detentora da verdade única, (revelada) não se considere também detentora de toda a verdade. Mesmo a ecuménica religião católica, por louváveis que sejam os seus propósitos de "diálogo inter religioso".
A igreja católica, hábil em seus múltiplos "aggiornamentos", por impulso dos movimentos sociais e tantas vezes contra a própria igreja, reconhece hoje o que ontem condenava. Como sempre foi ao longo da História...
Até ao Concílio de Trento (1543-1563), por exemplo, era lícito aos cristãos ter, ao mesmo tempo, várias mulheres e que, apenas a partir desse acontecimento, tal prática foi banida, quer dizer, objecto de excomunhão. O que não surpreende, pois que, durante muitos séculos de domínio ideológico da igreja católica, as mulheres não tiveram alma... E hoje?!...
Então não é verdade que, na hagiografia católica, a própria mãe de Cristo (mulher, apesar de virgem) é apenas mediadora, mas não fonte de graça? Será que vamos ter, a breve prazo, mulheres a oficiar os sacramentos e a celebrar missa?...
Serão louváveis as preocupações do Patriarca. Mas tenho para mim que o casamento é, por natureza, "um monte de sarilhos" em qualquer sociedade, seja ela qual for. Nem são necessárias práticas religiosas distintas para os sarilhos surgirem... Basta que estejam em causa interesses económicas (tantas vezes de sobrevivência), ou distintas concepções do mundo e da vida.
Atrevo-me até a afirmar (um pouco provocatoriamente) que, hoje em dia, o casamento é um "sarilho" cada vez maior. Mas isso são contas de um outro rosário. A que um dia talvez voltarei, sendo caso disso...
terça-feira, janeiro 20, 2009
Falando de religião e... de sarilhos.
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35 comentários:
"Tenho para mim", mais ou menos, as suspeitas que tu tens, quanto às boas intenções do Cardeal Patriarca de Lisboa [dizia a minha avó que, de boas intenções também está o inferno cheio!...].
.
E, também "comungo" de idêntica opinião quanto ao casamento... :)
.
[Beijo...@]
"um pouco provocatoriamente" é o que foi dito sobre a afirmação feita no último parágrato.
bem, um pouco de provocação pareceu-me ver em outros parágrafos. o que me agradou.
e também em posts anteriores, que até por isso, mas não só, valem a pena.
Amigo Herético,
Assino por cima!...
Alvarez
O que eu fixei dos excertos que ouvi foi "cuidado com os amores". E não gostei. Entendi qualquer coisa como "amores inconvenientes".
De resto, estou em "quase" tudo de acordo contigo.
:) sendo caso disso....
resta-nos o "ópio"...:)
.pois.
Por vezes, as "boas" intenções produzem perversos efeitos. Sobretudo quando o espelho em que nos olhamos é um tanto fosco... como me parece ser o caso. Isto tudo para dizer que concordo contigo.
Quanto ao casamento, o mau é quando passa de jogo de amor a jogo de poder(es) e controle... seja ele inter religiões ou não.
Beijos
Inteligente e serena abordagem. Uma outra leitura,mais exaustiva, que não hesito em subscrever.
Abraço
Contas de vários rosários que se fôssemos desfiando os blogues reduzir-se-iam a 1 post ;)
... o despropósito, o alheamento, foi não falar nas dezenas de mulheres portuguesas que morreram em 2008 por violência doméstica, de portugueses daqui, deste quintal.
A Igreja sempre esteve, maioritariamente, um século - se não mais - atrás do tempo.
E deveria ocupar-se do que nos pode UNIR;
e de tantas tarefas inadiáveis: uma cultura de sacristia não serve nenhum propósito!
Abç
Herético
O Cardeal Patriarca de Lisboa, D.José Policarpo, perdeu uma óptima ocasião para estar calado. Isto apesar de eu gostar de ouvir o senhor embora não pratique qualquer religião nem seja propriamente crente.
Então as mulheres portuguesas devem pensar bem antes de contrair matrimónio com um muçulmano... E com um português, não? Só no ano transacto 46 mulheres foram assassinadas pelos companheiros ou ex-companheiros. Isto para não falar das que deram entrada nos hospitais, ou fizeram queixas na polícia, vítimas de violência doméstica.
Com estes não é preciso ter cuidado?
Quando é que aprendemos a ser dialogantes e a tentar compreender as diferenças?
Abraço
Na verdade acho que as duas comentadoras anteriores disseram quase tudo o que eu diria. Talvez o senhor tivesse boa intenção (quem sabe?) mas foi um daqueles deslizes que não se podem deixar passar em vão. **
Que dizer mais! acertaste com a seta na mouche...certezas e dúvidas do casamento...faz tanta falta o amor...não apenas o dos bjinhos e abraços mas o do amor á justiça e aos direitos da vida...Sem esperança nem desespero.com a alta qualidade que te caracteriza.
abraços
véu de maya
Lúcida como sempre a tua análise
Par ler várias vezes
os pormenores
Embora baptizada, tenho uma opinião muito própria sobre religião. Acredito que todos os Deuses são apenas um e que só os homens, na sua teimosia de dividir para reinar, é que lhe deram nomes diferentes.
O Exmº Cardeal Patriarca sem o imaginar, veio deitar para esta minha fogueira espiritual, mais uma acha...
:)
Perdoai-lhes Senhor que eles...
Beijo
Quando comecei a lê-lo até pensei que estava a ler o Torga...
O Cardeal Patriarca alertou... Terá feito bem?
Um abraço.
Partilho na íntegra das tuas suspeitas quer quanto ao casamento que quanto à dissertaçãoq ue fzes sobre a religião...todas elas (em maior ou menor escala)aparecem como detentoras da verdade e assumem um fundamentalismo assustador.
Paralelamente a isso não precisamos de ir procurar sarilhos apenas onde a religião muçulmana os cria (e é verdade que isso acontece, até pelo choque cultura existente) aqui entre portas a violência contra as mulheres continua a atingir proporções cada vez mais assutadoras.
Um post mais do que perfeito
beijos
Eu creio na existência de uma Entidade criadora, mas recuso-me a pertencer a seja qual for a religião.
Não necessito mediação entre mim e essa Entidade.
Quanto a casamento é, como dizes, ele próprio um grande sarilho!
Não acredito que nenhuma hierarquia religiosa tenha a humildade e a sabedoria necessárias para dialogar, pelo que será melhor ficarem-se pela aceitação sem mais.
E parabéns pela lucidez!
Fica bem!
ppois eu naturalmente ligava as duas coisas:
religião institucionalizada
e
sarilhos....
liguei ligava li-go,
ai, mas ai mesmo!!
~
Desta vez concordo contigo.
Até com o ópio...
A primeira parte do post poderia ter sido escrita por mim.
Acrescento que, há custa de sarilhos a todos os títulos execráveis, morrem cerca de 500 mulheres em Portugal, vítimas de mãos de um país quase todo ele (dizem, mas eu naõ acredito) católico.
E ainda que há casamentos que não são sarilho nenhum.
Excelente post, pela visão acertada e justa das declarações proferidas pelo D. Policarpo (que eu sinto terem sido intencionais e inseridas no contexto do conflito entre israelitas e palestinianos).
Abraço.
Errata:
morrem cerca de 500 mulheres por ano em Portugal
um texto a requerer uma reflexão profunda.
pertinente e interessante.
beij
Olha, olha, a quem o senhor o diz. (estou a falar dos sarilhos...)
Posso assinar por baixo?
JIn hos mil
Concordo, sarilhos grandes
Gostei muito deste teu post que aborda assuntos vários interligados, só que do discurso do cardeal só ouvi excertos fora do contexto e, pelo que já dele tenho ouvido, custa-me muito a acreditar que não tenha sido mal interpretado (ou por distracção ou por intenção dos jornalistas que, como sabemos, são especialistas em coisas destas). Considero-o um homem inteligente e sensato, por isso só ouvindo tudo. O que não invalida os assuntos interessantes de que aqui falas.
Li com atenção... E estou sem saber em que ponto ficamos!
:)))
Um chorilho de asneiras disse o Sr Patriarca.
Está gaga é o que é.
Boa noite e abraço
gostei imenso de te ler, aliás como sempre..........
embora tantas vezes de ti distinta..
mas, querido herético, devo confessar-te que a minha origem foi semelhante à tua, católica portanto.
E, agora,
ainda, muito ainda
me considero católica e me sabe bem, muito bem...
e a religião não tem a ver com as pessoas da instituição.........
graças a Deus que me sinto leve, muito leve quando de lá venho.............
um grd bjnh para ti...
Pois, muito bom fim de semana para ti também!(sendo caso disso...)
«O casamento é uma fortaleza: quem está fora, desejoso de entrar; quem está dentro, ansioso por sair...!» dizia, com um sorriso de bem-casado, um estimado professor dos tempos de liceu.
Estou contigo também na ideia sobre religião: na dose certa, é necessária, por isso a inventaram; em excesso, é o mal do mundo.
O nosso cardeal é um bom homem (conheço-o bem, é natural de uma freguesia perto da vila onde trabalhei mais de 30 anos) e falou devendo estar calado, é católico-apostólico-romano, não o esqueçamos.
Um abraço
"a “religião é ópio do Povo”. Mas também sei que o ópio pode, se bem administrado, produzir efeitos terapêuticos"
o problema é que na maioria das vezes é usado para fins que nada têm de terapeuticos.
quanto ao casamento... como costumo dizer: é bom que pensei 2, 3, 4, 5, 1000 vezes porque aquilo não é propriamente o mar de rosas dos contos de fadas que ouvimos na infância. mas vejam lá, também não pensem demais, porque aquilo afinal também não é o inferno que alguns quadros de autores duvidosos pintam.
no fundo é como todos os contratos: ou ambos querem e trabalham para o lucro ou o contrato vai à vidinha dele
silêncio de salamanca.
maçã da guarda,
? antena parda
*
Olá Herético!
Achei curioso o ponto de vista da religião enquanto "moralizador social", é uma consideração que também tenho e que raramente vejo presente, nomeadamente quando oiço as mesmas opiniões preconceituosas e desinformadas sobre o papel da igreja.
Compreendo as motivações do Cardeal. Apesar de o casamento ser um sarilho, quando as divergências são de base, mais impossível será.
No caso dos muçulmanos, mesmo os não fundamentalistas (que os há), têm uma concepção diferente do papel da mulher na sociedade, porque a religião incute-o. Muitas mulheres muçulmanas vivem na observância desse papel, e sentem-se bem com isso. Foi a sua educação. Obviamente tem fundamentos diferentes dos do papel da mulher ocidental, cristã ou não.
Curiosamente não vi a notícia, apenas os rodapés, e nem preciso de a ver para compreender a mensagem.
Mais politicamente correcto teria sido para o cardeal ficar calado, nomeadamente quando é uma questão tão melindrosa e tão susceptível de ser mal interpretada. Mas o Cardeal cumpriu o que a sua consciência lhe ditou, no cumprimento da missão de Cristo na terra.
Bom Domingo!
Stella
Oh, meu caro!
Quem foi esse malfadado Papa do tal Concílio de Trento de (1543-1563)?
É ele o verdadeiro culpado por aquilo que agora diz o nosso Patriarca, pelo menos no que respeita ao respeitoso costume muçulmano de casar com duas ou três... ou mais... (rs)
Um forte abraço.
As palavras do Cardeal Patriarca de Lisboa foram inegavelmente infelizes...
Apesar de católica concordo em quase tudo com as tuas palavras. Apenas tenho a acrescentar que se o casamento (cada vez menos utilizado) é um sarilho, o divórcio (cada vez mais em voga) é outro... Sempre há valores materiais em jogo, há sarilho...
Beijo
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