Numa entrevista notável de frescura e inteligência, Manoel de Oliveira afirmou, recentemente, na Televisão, que tem a receita para os males do tempo (sobre o que aliás se propõe fazer um novo filme): bastaria que o dinheiro acabasse e que cada um de nós continuasse a desempenhar as suas tarefas (seu “affair”, no delicioso galicismo do cineasta).
Mediante esse golpe de asa, ninguém consumiria mais do que precisava, nem produziria mais que o necessário...
Claro que é uma utopia, como o cineasta reconhece. Mas a afirmação, significativa em diversos planos, produz um efeito inesperado de inverter os cânones e as propostas da “sociedade do espectáculo”, em que a sociedade de consumo e a ideologia que a molda são “encenadas”.
Tanto mais produtiva a afirmação de Manoel de Oliveira, quando provinda de um homem do cinema, actividade que, desde sempre, tem sido pródiga na criação (e também na denúncia) dos mitos da sociedade de consumo, de que o dinheiro é sangue e seiva...
Entendamo-nos. A alienação do modo de produção capitalista e a ideologia do consumo, que é seu reflexo, não se traduzem, hoje em dia, apenas na degradação do “ser” em “ter”, mas num estádio superior que é a degradação do “ter” em “parecer”, particularmente visível no funcionamento da chamada “sociedade do espectáculo”.
A ideia de “sociedade do espectáculo” está geralmente associada à dominância dos órgãos da comunicação social, em particular a televisão no conjunto da sociedade de consumo. Porém, o conceito espelha uma realidade bem mais complexa. Os meios de comunicação, limitam-se a exprimir e a reproduzir o funcionamento da sociedade em que estão inseridos...
Em síntese: tudo o que falta à vida é “compensado” pelo conjunto de representações independentes que é o espectáculo, formado por “celebridades”, sejam elas actores, políticos, desportistas ou outros, que “representam” o sucesso e a alegria de viver, ausente da vida efectiva dos indivíduos comuns, aprisionados na “miséria” dos respectivos papéis sociais.
A “sociedade do espectáculo” é comunicação unilateral - o espectáculo é aquele que fala e os átomos sociais escutam... E a mensagem é clara e sempre a mesma na multiplicidade das suas formas – a incessante justificação da sociedade existente...
Como o dinheiro, o espectáculo é uma forma totalitária. A actividade social é captada pelo espectáculo para servir os seus próprios fins como impulso sem limites de acumulação de valor (dinheiro) e auto reprodução do sistema.
Nada na esfera social lhe é estranho – do urbanismo, à política, às artes e às ciências, os mais secretos desejos e paixões humanas, em toda a parte, a realidade é substituída pela imagem. E, neste processo, a imagem acaba por se tornar realidade...
A produção não contem o mínimo de valor de uso, passando a ser consumida como mercadoria, simplesmente. Não em função de qualquer utilidade, mas por imposição “do espectáculo”, que assim o requer, e de que ninguém quer ficar fora, exibindo ao menos os seus sinais de consumo... E assim, mediante o desejo de frenético consumo, alcançar a promessa de Felicidade...
A mercadoria e o dinheiro atingem, portanto, na “sociedade do espectáculo” o seu máximo esplendor, onde gloriosamente vão desempenhando a sua vocação - matriz de “acumulação de valor”, por um lado, e “reapropriação da substância social perdida” dos indivíduos, alienados nas respectivas relações de produção. As duas faces de Jano em canto de sereia...
Até que um dia, um velho sábio iconoclasta se propõe dinamitar o sistema e acabar com o dinheiro...
Que nunca o sonho lhe doa! Nem a voz...
segunda-feira, junho 08, 2009
Que nunca o sonho lhe doa...
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27 comentários:
Que nunca lhe doa o sonho.
:))
'Golpe de asa' é o título de um dos meus livros de poesia...
Que o sonho nunca termine e eles não terminam nos artistas! Digo eu...
Beijos.
Foi tão bom ouvir aquele velho sábio falando da utopia como sonho a prosseguir. Faz-nos sentir que não somos assim tão loucos como se esforçam por nos fazer crer.
Um beijinho, Herético.
Também estive a ouvir, foi magnífico.
Beijinho*
Tens toda a razão no conteudo
e na forma como explicitas
Esta sociedade espectáculo
é vendida em prejuizo dos valores
socias e de partilha
fomenta a violência gratuita
e a indiferença dos cidadãos.
Que nunca te doa o sonho
nem a voz
também a ti
Abraço
conheço alguém que dizia que o sonho vale sempre a pena, mesmo quando nunca chegue a ser realidade porque pelo menos consegue ser algo, nem que seja em sonho
e eu ainda hoje gosto dessa forma peculiar que ele tinha de sonhar
Caro Herético,
Começa por dizer
"Numa entrevista notável de frescura e inteligência, Manoel de Oliveira afirmou, recentemente, na Televisão, que tem a receita para os males do tempo (sobre o que aliás se propõe fazer um novo filme): bastaria que o dinheiro acabasse e que cada um de nós continuasse a desempenhar as suas tarefas"
e foi o que eu fiz!
Mas...
saiu-me o tiro pela culatra!!!
Um abração
Nini
Prefiro dizer que nunca te doa a ti, herético, a voz.
Um abraço
Também ouvi o Manoel de Oliveira como se estivesse a ouvir alguém com sabedoria...
Que nunca o sonho nos doa...
Bons feriados e um abraço.
que nunca lhe doa mesmo...
dá-nos esperança ouvir alguém com um tão longo percurso de vida a falar de uma utopia tão libertadora. uma lição e tanto...
beijos
Herético,
também ouvi..
notável entrevista, e este post, não menos! Pena que esse 'golpe d'asa' se fique p'la utopia.. Parabéns e que nunca a voz lhe doa...
um abraço e o meu sorriso :)
mariam
adorei ler este texto!
adoro Manoel de Oliveira!
adoraria, aos 100 anos, subir escadas como ele :)
o.b.r.i.g.a.d.a.
beijo.
imf
Receita para os males do tempo procura-se. Agarre-se este sonhador.
Bjos
Herético
Que interessa o consumo ao ser humano se com ele não é feliz? Se satisfeitas umas necessidades outras são geradas pela extrema insatisfação do Homem trabalhada por sistemas perversos?
Sem afectos, nem expírito de partilha, alienado das suas raízes e do gosto pelas coisas simples este homem/marioneta, presa dum consumismo desenfreado, procura no individualismo e na solidão compensações para os seus dias amargos.
Que nunca a voz de doa para escreveres textos como estes.
Abraço
Gostei, particularmente, dessa parte: "dinamitar o sistema". Afinal, desde a invenção da pólvora, a nitroglicerina se faz presente em muitos eventos históricos.
Um abraço!
Gostei de o ouvir ante o ar vagamente "vigilante de idosos" da entrevistadora. Um "must" de humanismo. Ainda por cima, bem criado na aristocracia do Porto, dela se desprendeu, independente de olhar. Fica o documento que ninguém quis fazer, do cinzento antigo e das cores do Douro.
Utopia nos leva nas asas. Contínua, a luta de voar.
Bjinho
não vi.
mas aqui o post é excelente.
Que nunca o sonho se esfume. Sem ele, a vida ainda é mais penosa.
Beijinhos
Vi parte da entrevista.
Raciocínios tão claros naquela idade não é uma coisa normal...
Quanto ao dinheiro, etc., que muito bem desenvolves neste post, direi apenas que cada vez tenho menos certezas.
Abraço.
pois, também ouvi.
este teu texto está excelente.
beij
Também o ouvi e fiquei a pensar no que ele disse.
Por mim cada vez me satisfaço mais com o que os meus olhos são capazes de ver - seja a cor do céu no crepúsculo, seja uma flor minúscula do monte, seja uma onda gigante do mar - do que aquilo que o meu - pouco - dinheiro me permite comprar.
Bj
:)
Ouvi a entrevista.
Mas, claro,
lirismo é como a água benta:
cada um toma a que quer!
Um abraço
e mesmo sabendo que o sonho comanda a vida...a verdade é que esta "Sociedade espectáculo" vai continuar a fazer prevalecer o "parecer" sobre o "ser"
obrigada pelos votos de sucesso para o meu livo
beijo e bom fds
Aprendi a gostar de Manoel de Oliveira com a idade...
.
Nem sei, se com a minha... se com a dele!...
.
[Beijo...@]
Que seria de nós sem sonhos e utopias?
Gostava tanto de ver este posto para o plano real, para o palco das vaidades superficiais e tolas!
Abraço
Que linda utopia a do Manuel de Oliveira e que excelente análise a tua...Mas quem proclama a morte do dinheiro...muitas outras já foram proclamadas, até a morte de Deus...mas e esta? Mas da sua mensagem algo ficará...tenho a certeza.
abraços
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