Como por certo se recordam, o meu amigo Zeca, solteirão impenitente, alentejano de Beja, economista do Quelhas e protector de donzelas desvalidas, esteve em risco de “ter uma vida boa”, não fora a atracção desmedida pelo sexo fraco, ou talvez mais exactamente, não fora o irresistível fascínio que derrama sobre tudo que é saias. Ironicamente, foram o sapato apertado de uma octogenária senhora e seus sofridos joanetes a causa da sua desgraça, como noutra ocasião vos contei aqui
Posto no “olho da rua” da empresa pública, onde, com rasgada visão de futuro, era assessor da administração, o Zeca teve que se virar... Viveu uns tempos dos rendimentos familiares, mas um homem não pode ficar parado toda a vida. Como bem se sabe, a evolução da espécie humana tem sido caprichosa e injusta: o homo faber acabou por dominar o homo eroticus, até mesmo nas naturezas mais refractárias, como é o caso do meu amigo Zeca...
Enfim, depois de uns tempos “à vara”, que é como quem diz, sem outras responsabilidades que não fosse apascentar suas pulsões predadoras, decidiu o Zeca voltar ao trabalho, agora por conta própria, pois era para meu amigo ponto assente, em laudas de juramento lavrado, que “filho de puta nenhum lhe daria mais ordens, nem teria tomates para o despedir...” (sic).
Foi assim que nasceu a pródiga empresa de consultadoria, de que o meu amigo Zeca é sócio fundador e gerente único e cujo volume de negócios está em proporção inversa à respeitabilidade da barriguinha do meu amigo. Quer dizer, agora com o pendor femeeiro mais amaciado, quando a liquidez da empresa o permite, o Zeca relaxa na culinária e na borga e, então, a barriga entra em espiral inflacionária ou, em momentos de crise, com o stress do trabalho, o arredondado da barriga reduz-se à expressão de normalidade mais simples ...
Foi, num desses momentos de gloriosa euforia, a última vez que estivemos juntos, no seu espaçoso apartamento debruçado sobre o Tejo, com mais um pândegos da trupe da Universidade. À volta da mesa, como se deduz, trucidando uns borrachos, que o Zeca sabe estufar como ninguém...
Então, já na fase dos charutos e do conhaque, o Zeca saiu-se com uma das suas hilariantes “estórias”, de que vos dou conta, bem sabendo eu que a cor e o tom se irão perder no percurso entre viva loquacidade do Zeca e a escrita sensaborona a que me acorrento ...
“Esguardai”, portanto...
Um certo grupo empresarial, a que a empresa do meu amigo Zeca presta apoio na área de auditoria e da fiscalidade, decidiu dedicar-se às energias renováveis, na mira dos propalados apoios comunitários. Feitos os estudos e avaliado o projecto, a que o Zeca esmeradamente se dedicou, foi decido que a fábrica seria instalada no norte do País, por razões óbvias do preço da mão-de-obra e outras vantagens. Escolhido o local, havia que negociar com o Município apoios e contrapartidas. Na data acordada, depois de contactos prévios, luzidia comitiva, ida de Lisboa, deslocou-se ao município em causa, chefiada pelo “chairman” do grupo, um vulto destacado da política e dos negócios...
Dispenso-vos da colorida discrição que o Zeca fez do roliço presidente da Câmara, afiambrado no blazer azul com botões de metal e o inevitável lenço de seda, a aconchegar a dupla papeira. Digo-vos, porém, que antipatia foi fulminante, uma espécie de “coup de feu” invertido, a roçar o verdete da náusea...
Feitas as apresentações, perante o acentuado sotaque alentejano (que aliás o Zeca cultiva com prazer), o Presidente da Câmara, numa prosápia de gelar o amplo salão, fez uma qualquer alusão de mau gosto a moiros e ciganos, que ainda infestam o sul do País. Ora, o Zeca não é homem para se conter, mas não teve tempo para espingardar a resposta adequada. O chairman, com um sorriso felino a rasgar-lhe a face, antecipou-se. Dirigindo-se ao Presidente da Câmara:
- “Mas olhe, senhor Presidente, que aqui, pelo seu Concelho, não faltaram moiros; e, se bem observar, ainda é capaz de encontrar algum por aí disfarçado...”
- “Moiros aqui? No meu concelho? Nunca!... onde raio o senhor foi desencantar semelhante ideia?!"...- apavorou-se o Presidente.
Nessa altura, já o ambiente estava mais distendido. E o chairman, apontado para a bandeira do Município, imponentemente exibida, entre a bandeira da República e a bandeira da União Europeia:
- “Basta olhar para a bandeira do Município...” – sublinhou, alargando o sorriso...
E o outro, a ficar apopléctico:
- “A bandeira do Município? Mas que tem a bandeira?!... “
- “Não tem nada que não deva, senhor Presidente! É aliás – acrescentou diplomático – uma bonita bandeira! Mas não deixa por isso de ostentar, no brasão, o crescente muçulmano!...”
E, com a gargalhada a estender-se pela sala, rematou:
- “Ora se os moiros não andaram por este concelho que faz o crescente muçulmano nas suas nobres insígnias?!"...
Aquilo era demais, convenhamos - virem, assim uns bárbaros sulistas a dar lições de história local!... Suprema humilhação!
O distinto Presidente, como quem apanha um murro no estômago, titubeou, mas não se deu por vencido. Saiu da cadeira, sibilando – “essa agora!... essa agora!” - fez minuciosa análise à bandeira e, perante a contrariedade da evidência, saltou para o telefone e, ante a perplexidade dos circunstantes, exclamou:
- “E eu que nunca tinha dado por isso!...Mas já vou tirar tudo a limpo”...
(continua)
..........................................................
Declaração de intenções:
1 - Como é notório, cultivo, com prazer, a "pronúncia do norte".
2 - Orgulho-me de, durante cerca de vinte anos, ter desempenhado funções autárquicas relevantes, legitimado por sufrágio eleitoral, num grande Municipio do País.
3 - Considero ainda hoje (apesar de todas as tropelias) o exercício do "Poder Local" como expressão, por excelência. de democraticidade e espaço de cidadania.
terça-feira, agosto 25, 2009
O meu amigo Zeca - empresário!...
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20 comentários:
Não me digas que o homem mandou tirar o crescente muçulmano da bandeira, hehehehehe....
Beijos
(com saudades de como era/foi o grande município onde foste autarca...)
Gosto de te ler. Beijos.
estou a sorrir com o teu texto.
cá voltarei para ler o restante.
beij
Li o texto de fio a pavio em menos de um fósforo. Tu escreves " muita" bem! Que delícia! Quanto à história,lamento que o digníssimo presidente não conhecesse bem a bandeira do município. Lapsos pequenos que outros há muito, muito maiores.
Cá do sul, entre moiros, ciganos e outras estirpes, envio-te um beijinho com amizade.
Um regalo para a vista
a forma e o conteudo
das tuas palavras
De facto o poder local
quando assumido de corpo inteiro
é uma escola de virtudes
Abração
a única parte que me surpreendeu foi a "declaração de intenções"
é que aquilo que não está lá escrito mas quiseste salvaguardar, realmente não precisava ser escrito porque qualquer um que aqui vem o sabe
ai valha-me a "santa", estimado Herético... ainda se muda a bandeira por via de não ostentar o "crescente muçulmano nas suas nobres insígnias"...
Mas já agora, que não se ice a dos outros... seria um "31_desarmado".
E moiras (sou moira com muito orgulho, Lisboeta de gema, da MAC, bem no centro da cidade, pois claro...) dão sempre um ar de mistério às cidades. ehhh...
Belo texto, como sempre.
Fraterno abraço, extensivo ao seu notável amigo Zeca de que já tinha saudades.
Mel
E que te orgulhes também de contar "estórias" com crescentes moiros ... e ciganos, também!
Obrigada pelo conto.
Poderás, sim, acrescentar os meus blogues.
Venho de DMF, por Gimonde e o Sabor (será que o Zéca-empresário-consultor não estará a pensar na barragem alternativa nesse lugar de sonho? para consultadoria e vindo de Lx, parece!) e sempre a rolar pelas palavras. Judeus, mouros, celtas, romanos,cristãos novos? Ele é um ver se te avias: felizmente! O poder local é medido pelas pessoas: se é um pequeno presidente... o difícil é tornar as pessoas em "grandes", na cultura, na abrangência das medidas, no desassombro de fazer melhor, na solidariedade e na humanidade; e esquecendo os benefícios próprios. Aí é que bate o vinte!
Abçs
Magnífico!!! Tanto o conto, como a escrita.
Admiro-te...
Quanto à declaração de intenções, subscrevo a do "Poder Local", só aí se vive cidadania, digo eu...
Beijo e Abraço
não vem nada a propósito (ou talvez sim...)
hoje, para comemorar uma enorme contrariedade e respectivos aborrecimentos, fui jantar ao Le Petit , restaurante antigo em Algés mas que virou pós moderno e, no silêncio circunstante da dita triste comemoração dei por mim a pensar que,
neste momento em Portugal há
4 coisas da moda:
1) - babetes que todos os restaurantes 'a dar o ar' se prezam de ter, para os cavalheiros não sujarem os tais lenços de pescoço enquadrados nos blasers azuis escuros e não só... ;
2) toda a gente 'usa' frasquinhos desinfectantes e esfrega as mãos com eles em lugares públicos;
3) football e mais football;
4) politiquices.
longe vão os tempos doutros lazeres e
eu estou cansada,
cansada dos
babetes,
dos frasquinhos anti-gripe A
do football
e
das
politiquices.
muito, muito cansada.
Nada disto tem a ver com o que contas mas lembrei-me que há minutos esta constatação me tinha vindo à cabeça............
bjnhs herético
Amei !!!!!
O blogue de voce e a sua estória.
Uma prosa gostosíssima...
Aguardo o resto.
Um abraço.
De passagem....
Grande abraço.
Paulo
Ai, as saudades que eu tinha do Zeca!! Não é justo que nos prives dele por tanto tampo...
Como sempre, prosa que delicia cheia de pormenores saborosos. E fica-se com a vontade de ler mais, pelo que a continuação é muito bem vinda. Que irá o homem fazer à bandeira? Eu, como moira assumida, até tenho medo... :))**
E cá fico à espera da continuação. Adorei ler-te.
Jhs mil
Gosto de te ler! Mas hoje já estou ensonada.Voltarei amanhã para te 'saborear' :)
Beijo de boa noite
... que esta menina já devia há muito estar a descansar!
E pode se orgulhar mesmo! O "Poder Local", como diz - especialmente em outras épocas -, é muito mais romântico, autêntico e amistoso. Com a vantagem, ainda, de ser a prova de megalomania. Nenhum "desempenhador" do "Poder Local" tem aspirações, como por exemplo, de tornar-se grande estadista ou um político espetacular, vias naturais para a corrupção, a demagogia e o esfacelamento do caráter.
Gostei da história (desculpe, mas no português do Brasil não existe "estória"; por sinal, sem ressonância no seu amigo Latim) e de algumas terminologias deliciosas e pitorescas, as quais, imagino, serem tipicamente "locais".
Um abraço!
Escrita sensaborona!?
Falsa modéstia não é virtude, é defeito!
Discrição ou descrição?
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