"O Diario de Noticias, jornal que tem imposto aos seus correspondentes o hábito das informações escrupulosas e sérias, inseria ultimamente uma carta de Gouveia em que era narrado este caso: “Um marido matara sua mulher, partira-a aos pedaços, fora preso e condenado” .
E reparem bem: “É condenado a varrer as ruas de Gouveia!”
De modo nenhum queremos limitar os maridos no direito de decepar suas mulheres. São miudezas domésticas em que não intervimos. Nunca se dirá que as "Farpas" se arrojam indiscretamente sobre o seio das famílias. Que os maridos, quando lhes convenha, para melhor organização do seu interior, partam suas mulheres aos pedaços - coisa é que nem nos escandaliza, nem nos jubila!
Talvez não imitássemos esse exemplo: não por nos parecer fora das atribuições maritais, mas por se nos afigurar excessivamente trabalhoso o partir aos bocadinhos uma consorte estimada! E entendemos que quando um marido se sinta dominado pelo desejo invencível de partir alguma coisa - é mais simples ir à cozinha trinchar o roast-beef do que à alcova retalhar a esposa!
Não nos espanta também o castigo infligido pelo meritíssimo juiz de Gouveia. Nós não temos a honra de conhecer Gouveia. O código, é certo, marca uma pena diversa, não prevendo esse castigo de varrer as ruas de Gouveia - de resto todo local. Mas quem sabe se não será uma tremenda penalidade - o limpar as ruas de Gouveia!
Talvez mesmo o juiz - por lhe parecer insuficiente degredo perpétuo - rompesse no excesso arbitraria de entregar aquele facínora ao suplício imenso de limpar as ruas da sua vila. Bem pode ser que aquele marido esteja cumprindo uma sentença pavorosa, e que o devamos lastimar mais que os infelizes que S.M. Alexandre II da Rússia (que Deus guarde e muitos anos conserve em prosperidade e gloria) manda trabalhar, ao estalo do chicote, nas minas de Orilieff! A imundice da província tem mistérios.
Limpar as ruas de Gouveia será talvez a pena que de futuro adoptem, em substituição da pena morte, os códigos da Europa. Que grande honra, meus amigos, para a sujidade nacional!
Mas uma coisa nos ocorre: - e é que, d'ora em diante, varrer as ruas deixa de ser um emprego municipal, e começa a considerar-se uma pena infamante. E pode acontecer que os Srs. varredores de Lisboa - não querendo, por uma susceptibilidade exagerada, passar por terem assassinado suas esposas, deponham com gesto de desdém o cabo das suas vassouras nas mãos atarantadas da câmara municipal!
Por outro lado, dada esta greve, nenhum cidadão se quererá incumbir de limpar as ruas. Há gente tão meticulosa, tão escrupulosa, que embirraria que os vizinhos a suspeitassem de ter empregado o trinchante na pessoa da sua consorte. A única pessoa que afoitamente ousaria varrer as ruas seria aquela de quem se não pudesse suspeitar um crime, aquela que fosse pela lei do Reino declarada irresponsável.
Ora há só uma neste caso. É o chefe do Estado! Esse é o único que poderia varrer as ruas sem que ninguém se lembrasse de pensar que elas andavam ali, ás vassouradas, por sentença de um tribunal. Esse é irresponsável: não comete crimes, nem sofre penas.
Mas seria realmente atroz que S. Exª. se visse obrigado, depois do teatro, a ir, por essas vielas, melancolicamente seguido da sua corte, levando, de vassoura em punho, adiante de si, em nuvens de poeira, a imundície dos seus vassalos!
Que a justiça pois nos esclareça sobre estes pontos: se limpar as ruas é uma penalidade nova, e se, a troco de quatro vassouradas, qualquer cidadão pode ter a vantagem de espatifar sua esposa: se a imundice especial e pavorosa das ruas de Gouveia torna realmente essa pena igual à de degredo: ou se o sr. Juiz de Gouveia entende que matar a esposa é acto tão meritório que merece um emprego remunerado pela câmara.
Esperamos, modestos e respeitosos, as respostas dos poderes públicos"
Eça de Queiroz – “Uma campanha alegre” – in “As Farpas”
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Não há dúvida que a nossa Justiça tem tradições de vanguarda! Hoje, nossos doutíssimos juízes já não condenam ninguém a varrer ruas. Mas nas mais altas instâncias judiciais, ao que parece, defende-se a anulação das provas do crime. Sempre é mais eficaz. E higiénico, convenhamos...
Ao ritmo do tempo, que da imundície faz lucrativa sucata...
quinta-feira, novembro 19, 2009
"Alegre" Justiça a do País...
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24 comentários:
Hoje nem o Chefe de Estado poderia varrer as ruas.
Abraço
se Vara tiver culpas no cartório
poderá regressar ao balcão
do banco com ordenado de gerente
Hoje não temos o Eça mas temos o Miguel Sousa Tavares...
Abraço companheiro.
P. S. Não se esqueça que agora para estas coisas da violência doméstica temos a Elza Pais.
Hoje, em vez de se varrer "aspira-se" para não deixar vestígios.
a justiça pr cá não passa de um epifenómeno bacoco ___________é uma desolação não termos crescido!
belíssimoPost!
mesmo!
abraço M.
(piano)
Na mouche, Herético!!!
Bem escolhido, o texto do Eça para as conclusões da higiénica varredura de hoje.
Beijo de bom fim de semana
já conhecia este texto. de grande pertinência na actualidade da nossa justiça, infelizmente.
abraço.
O economista Eugénio Rosa, publicou no número de Outono da revista SEARA NOVA um interessante artigo, do qual tomei a liberdade de publicar um excerto.
Não tem nada a ver com o texto que publicaste, mas devia-te uma explicação.
Bom fds
excelente post...
como comentar?
(tocaste bem nas 'feridas' ...)
excelente post como sempre!
tem bom fim de semana.
beij
Mais que actual Eça!
Beijos.
continuamos um país muito agarrado à tradição...
Um atoleiro de sucata e outras imundícies. Destrua-se, publique-se, arquive-se, a saga continua.
Porque raio é que o Eça é tão a propósito?! Atavismos...
Abraço.
o nosso eça sempre me dia! as "histórias" que se repetem mais ainda, actualizadas... já não há condenações nem para varrer o chão!
beijinhos
O Eça:é sempre bom lê-lo. E era bom que varressem a sucata toda deste país...
Um abraço.
Meu Deus, que me assustei : pensei ser agora a sentença!
Mas também pouco distantes andamos, realmente...
Por aluguma razão estamos imitando a Espanha e cinco mulheres foram assassinadas em dez dias pelos homens da sua vida.
pelos vistos, a tradição ainda é o que era
Abraços.
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Excelente o seu texto!
Há coisas que nem mesmo Deus entende...
É um prazer quando encontro páginas como as suas!
Beijos de luz e o meu carinho...
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))...
obrigada!
E, infelizmente, a procissão ainda vai no adro.
Este Natal há-de ficar na história...
Abraço
Paulo
Em verdade te digo: só ao fim me dei conta "do passado" desta sentença.
Sim, que as de agora são "presumíveis" e, portanto, não passíveis de condenação.
Continuamos à espera do "encoberto".
(mas verdade que mete nojo, tanta indiciação, tanta prosápia, é preciso não terem vergonha nem carácter, os juízes, os advogados, as leis e os técnicos delas, enredados. Em vez de "operação mãos limpas" talvez chamar-lhe "mãos sujas" e alguém quisesse mesmo sujar as mãos em tanta porcaria. E dar a face oculta, a leprosa).
Abç
Provavelmente, a notícia omite parte da verdade.
Ainda assim, será que a dita varredura não é feita com vassoura mas antes com a língua?
Aí, sim... era uma pena exemplar...
Ou será que entre os juízes também campeia a corrupção? São portugueses...
Abraço.
... ontem subiu para 26 o número de mulheres portuguesas mortas por crime, dito 'passional'... só este ano :(
Finalmente uma escrita no masculino pronunciando-se abertamente sobre o assunto.
Um beijo,
Ai! Que arrepios...o que se salva é o texto do Eça...certeira sobre a mediocridade...antiga e moderna.
Abraços
Data venia, nobre amigo, aqui, há cerca de dez anos, um juiz de uma pequena cidade do interior da Bahia condenou um homem a olhar diretamente para o sol, por uma hora, todos os dias, até completar o período de um mês. Felizmente, decorrido uma semana, uma corte superior anulou a sentença.
A mordacidade do velho escritor é genial, aliás, o livro citado deveria intitular-se: "Todas as ferramentas de Jack, o estripador". "Farpa", é pouco para tamanha corrosão.
Um abraço e bom fim de semana!
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