“A recente passagem do Papa romano por terras de Portugal no meio da crise em que se debatem as nações europeias foi um acto simbólico premonitório de uma nova ordem mundial (económica, política, social, cultural e militar).
Não o de uma era que assiste ao fim da história, ou ao fim do mundo, como muitos profetas apregoaram, nem mesmo (pasme-se!) ao fim da ciência; mas sim o de uma época onde não há mais lugar para o predomínio das grandes religiões(...)
O incumprimento das promessas de uma vida melhor e mais justa, a incerteza que gera angústia sobre a falta de controlo do futuro, as crises estruturais do sistema mundo (que não se resolvem orando) tornam as pessoas mais vulneráveis a qualquer mensagem de esperança e de proximidade.
É esta a explicação para a profusão de seitas e de grupos de confissão religiosa diversa, de gurus e de videntes, a par com as representações locais das grandes religiões de outros continentes. (...)
As grandes religiões monoteístas e as respectivas visões do mundo são um produto histórico que se constitui sobre os mitos, as explicações e as representações anteriores do mundo, muitos de índole mágica (embora criassem imagens coerentes das comunidades e das suas relações com a natureza e servissem para a previsão e a tomada de decisões).
As grandes religiões excomungaram e proscreveram quaisquer crenças em poderes anímicos, considerando-as como explicitações do mal, como magia negra ou obra do diabo.
O monoteísmo sempre conviveu mal com a sexualidade (desaparecem as deusas da face da Terra). A sua índole reguladora, majestática, faz com que exista sempre uma explicação ou um princípio divino para garantir a ordem das coisas.
Centradas sobre a posse de território e dos seus recursos, as grandes religiões dividiram o mundo, guerreando-se com frequência, tentando impor os seus credos sobre os das outras. Mas foram elas o esteio moral que permitiu o estabelecimento das grandes civilizações. Bem como a sua capacidade de transformação da natureza. (...)
O último século presenciou um crescimento da população humana como nunca antes se vira. Novas desigualdades surgiram e as grandes aglomerações urbanas tornaram-se agressores primários do ambiente. A exclusão social e a luta pela posse dos recursos naturais estão na ordem do dia. (...)
Como conseguir transcender - através do mundo - valores não compatíveis, todos eles “universais”, todos eles baseados na revelação, no costume, na autoridade? De facto, todos declaram querer cooperar, mas têm por base nações divididas e catequizadas segundo percepções dificilmente harmonizáveis sem uma brutal alteração das relações sociais.
E todas as grandes religiões afirmam explicitamente sermos iguais, mas todas acreditam intimamente serem uns mais iguais do que outros, pela graça de uma escolha divina...
Naturalmente, nem a religiosidade (etimologicamente, a “ligação” ao outro, à terra ou ao cosmos) nem a importância do transcendente diminuiu nos nossos dias. Ambas residem e muito bem no foro íntimo de cada um e no equilíbrio que cada qual estabelece entre emoção e razão.
Como sabemos, a experiência individual transforma-se de acordo com o sistema técnico que sustenta a sociedade (...). Só uma visão do mundo que reconheça a igualdade de todos os seres humanos e o valor moral da sua participação na construção de um futuro para a nossa espécie estará adaptada a garantir as condições de sustentabilidade das sociedades humanas neste século.
Foi a ciência moderna - o grande suporte da competência técnica, da modernidade até hoje - que demonstrou inequivocamente a unidade profunda de todos os seres vivos no “seu” cosmos, baseada na sua estrutura atómica e molecular. A linguagem da ciência é a única que é verdadeiramente universal, que é falada e entendida do mesmo modo em qualquer lugar do espaço e do tempo.
É sobre ela que se podem hoje aproximar os povos, propondo soluções para as questões formuladas em conjunto. Apenas através da ciência se podem encontrar as formas mais adequadas de cooperação entre as diversas populações do globo.
É que nada é permanente. Estamos todos de passagem...”
João Caraça - Professor universitário. Director do Serviço de Ciência da Fundação Calouste Gulbenkian - in “Público” de 23.05.10
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Uns breves dias ausente...
Nada têm a perder. Deixo-vos com um excelente artigo do Prof. João Caraça.
Beijos e abraços.
5 comentários:
tão lúcido o texto.religiões sem vida ficam anémicas. que elas sirvam pra ligar as pessoas em torno de causas nobres...e que não sejam apenas um opiáceo...Boa pausa.Volta logo.
Abraços
Um rápido regresso.
Abraço
E que artigo... Que tema...
Deu-me imenso prazer ler.
Um beijo.
Não me dão "o tempo": eu roubo-o, aos bocados, na feitura da minha vida.
Por isso me vou repetir sem vos ler como vos gosto. Deixo abraços porque me sois belos.
Várias setas certeiramente dirigidas aos alvos do nosso descontentamento. A lucidez de um espírito científico, quando tem artes para contornar a aridez possível da erudição, redime-nos e clarifica.
Boa escolha e grande abraço.
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