José Madrazo - "A Morte de Viriato"
copiado da NET
Haja Deus e promessas cumpridas!... Ainda os “escassos minutos” não haviam decorrido já o viajante estava sentado à mesa, no outro extremo da sala, que o seu ocasional amigo, despindo-se de cerimónias e salamaleques, que por bem achou dispensáveis, lhe apontou com o dedo, à distância.
A localização da mesa era de facto excelente, junto a uma janela rasgada, donde se alcançava todo o vale. E, do outro lado, toda a extensão do restaurante e seu infatigável borborinho. Tudo pois sinais promissores, tanto mais que a mesa fora coberta com imaculada toalha de linho, que sua Mulher percorreu com os dedos, deliciada, na busca da textura do tecido e da delicadeza dos acabamentos…
Absorto na abordagem da ementa, entre um relance distraído pela sala e atracção da paisagem, o viajante não se dera ainda bem conta dos circunstantes comensais. Percebeu apenas que estava suficientemente afastado “dos bárbaros” para não ser confundido. E isso lhe bastou, de momento, perante a instância do estômago em protestos.
Acordou, pois, para a realidade circundante, apenas com o discreto murmúrio de sua Mulher: - “Aquela não é a Cremilde, ali na mesa ao lado?”. Entre o incrédulo e o irónico, o viajante girou meio corpo na cadeira, enquanto resmungava: “Que ideia! Isso é obsessão tua. Em cada mulher com bigode tu vês a Cremilde!”.
Verdade, verdadinha, a última coisa que o viajante desejaria era encontrar, naquelas paragens, a vizinha do 5º Direito (quem disse que o “pecado mora ao lado”?) do prédio onde habitam, nas proximidades de Lisboa.
Devo esclarecer que a Cremilde é viúva de um tipo da marinha, morenaça, sempre a explodir em seus tailleurs coleantes, que o viajante jurou um dia apresentar a seu amigo Zeca, (esse tal – lembram-se? - o alentejano de Beja, solteirão impenitente e protector de donzelas desvalidas) mas que, vá lá saber-se a razão, sua Mulher detesta cordialmente, no que, advinha-se, é mutuamente correspondida…
Não era, pois, a Cremilde na vizinhança, o que foi um alívio… No entanto, poderia sê-lo, tais as semelhanças dos traços fisionómicos, que remetiam de uma para a outra e que assumiam, na réplica rural, exageros de caricatura da Cremilde suburbana. E, não apenas no bigode, mas também na verruga do rosto, na expressão desconfiada do olhar, ou no porte avantajado de legionária …
O equívoco teve, pois, o condão de despertar o viajante de seu torpor. E, a partir dai, passou a prestar atenção aos comensais mais próximos, distribuídos por extensa mesa, a toda a largura do restaurante. Manifesto era terem descido da serra para os eufóricos festejos cívico-religiosos, certamente enfileirando nos arrebanhados (e por certo assanhados) aplausos à da comitiva oficial…
Eram para cima de dezena e meia naquela mesa, se contarmos as irrequietas crianças, que exibiam o troféu das bandeirinhas, com que haviam, momentos antes, acenado, lá fora, à luzidia comitiva…No topo, com o marido à ilharga, a “legionária Cremilde”, a quem nada escapava no horizonte do repasto - nem reclamações aos empregados, nem escolha dos pratos, nem recriminações às criancinhas, nem sequer a sequência das conversas e gargalhadas.
Luzia, pois, como um farol naquele mar de contentamento, em seu redor!... Uma vera e fera matriarca beirã, em seu esplendor de apascentar seu clã, sem fissuras aparentes, em sua heteróclita composição...
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Chegado a este momento da narrativa, não sabe muito bem o viajante como prosseguir. E quando assim acontece, o viajante em vez de se calar, como o bom senso impõe, dá-lhe para transfigurar a realidade ao sabor da fantasia. Como caçador de imagens que acrescenta um ponto ao conto…
E é assim que o viajante, arrastado pela fibra e imponência da “Cremilde”, se vê impulsionado para os Montes Hermínios e, num lance digno Asterix, reconhece a bravíssima heroína, nas hordas de Viriato, a desancar os “bárbaros do Império”, aqueles ignaros romanos, que sustentam sermos “um povo que não se governa, nem se deixa governar…”
Verdade ou mentira?! ... Certo, certo é que o Céu teima “em cair sobre a nossa cabeça!...”
13 comentários:
rrss rrsss é terrívell essa sina de encontrar pessoas conhecidas em 8quase) todos os sítios!!
Tudo de bom
repetirão os imperiais representantes dos credores o que em época tão distante terão dito os “bárbaros do Império”?
Viriato sou eu ressuscitado e não lhe sei responder mais do que este ver povo tão cabisbaixo. Se o céu cair será nessa posição que lhe encontrará a cabeça? Farei tudo para que tal não aconteça!
NOTA: O ano passado também andei por esses lados
Deambulei nas tuas deambulaçoes e gostei.
UaU, divinal!!!
:)))
Gosto destas suas deambulações de verão que nos mostram a sua brilhante imaginação.
Um beijo, amigo.
Numa situação dessas, só resta deixar a condução à mulher e emborcar uns canecos.
Abraço
Aprendo muitas palavras novas nessas "deambulações " heretico
as vezes até esqueço que falamos o mesmo idioma - tens sempre uns passeios literários gostosos de ler.
Aguardo a III parte.
E volto. Sempre volto rs
Excelente...a escrita, a ironia, tudo: e ainda ben que a Cremilde, NÃO ERA A Cremilde, apesar da verruga...
Também já tinha saudades de te ler. Obrigada por teres feito uma visita, Voltarei. BJ
Uma escrita que bem poderia dar origem a um sketch humorístico. mulheres de verruga e bigodes são já raras :)
Gostei muito, caríssimo.
Um fraterno abraço
Mel
Boa apresentação
Saudações amigas e bom fim de semana
Excelente inspiração que me fez deliciar na leitura.
Beijo e Bom fim de semana.
Maria
Confundir a vizinha coleante com a matriarca de bigode e, quem sabe, carrapito, faz sorrir e abre o apetite. :)
Abraço
... tenho que vir com calma e sem cansaços ler estas tuas deambulações de verão!
De volta, ainda me sinto um pouco 'lenta' :)
Beijo
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