sexta-feira, agosto 19, 2011

DEAMBULAÇÕES DE VERÃO...


Serpenteando a estrada, durante horas, sob o calor tórrido de Agosto, em processo inverso ao de Jacinto, nas “Cidades e as Serras”, a chegada ao restaurante é um momento glorioso e redentor…

Não pela fumegante canja de galinha que, decididamente, tem o amor do viajante, nem muito menos pelo horizonte literário (que bem conhece o viajante seus limites), nem sequer - vejam bem! - pelos cambiantes da paisagem, pois se o Jacinto arrostou seus martírios, trepando de mula, pela famosa serra de Tormes, o viajante, esse, afadigou-se circulando de automóvel (e ar condicionado) pelas fraldas da serra da Estrela, que ao outro dia haveria de subir até a majestade dos seus cumes.

Mas isso serão contas de outro rosário, se a tanto o viajante se dispuser a contá-las!...

No caso, a vaga similitude, que o viajante teima em encontrar, residirá tão-somente na benigna bênção da chegada, no alívio dos ossos doridos e na paz redentora, pois que, digam o que disserem estóicos e moralistas, um bom descanso e uma boa refeição reconfortam a alma.

Assim deveria ter sido, certamente, a beatífica emoção de Jacinto, após a canja!...

Não sabe o viajante se algum dia contou seu gosto por restaurantes. Não que seja expert ou requintado gourmet. Nada disso!... Mas desde que, em tempos idos, se aventurou pelas minudências antropológicas de “O Cru e o Cozido” sabe que a cozinha também “fala”, isto é, revela as idiossincrasias de um povo; e, sobretudo, aviva a memória de sabores e odores antigos, em que o viajante insiste em mergulhar …

Desceu, pois, o viajante as escadas interiores, que idas da recepção do pequeno hotel, levam ao desafogado restaurante, com janelas debruçadas sobre luxuriante paisagem.

O viajante já ali estivera, em época de inverno. Quase deserto então o restaurante - com a lareira ao fundo, o ambiente dir-se-ia a reconstituição da sala de jantar de alguma dessas casas beirãs mais abastadas, que hoje são resquício apenas, submergidas pelo inexorável decurso das mutações sociais.

Mas desta vez não. O restaurante estava repleto. E o viajante, nesse seu jeito de dissolver contrariedades em ironia amarga, resmungou para os seus botões: - “Gosto de restaurantes cheios!...”

Porém, as palavras, que não deveriam extravasar o domínio de um desabafo íntimo, certamente impulsionadas pela veemência do desencanto, foram ecoar nos ouvidos atentos do gerente, que solicito se aproximava de carta em riste: - “Um restaurante cheio é sempre um bom sinal!...”, protestou ele com gentileza.

Mais a mais - acrescentou – “não teria o viajante senão que esperar escassos minutos, pois estava a vagar uma mesa para duas pessoas, lá ou fundo junto à janela”…

Dulcificado um pouco no seu humor, pela sensatez da sentença e pela perspectiva de desfrutar cabrito e paisagem, o viajante amaciou o azedume.

E a impulsiva réplica que, no calor das circunstâncias, procuraria saber se “o bom sinal” seria a benefício dos viajantes famintos ou do nutrido proprietário do hotel, não passou, por isso, de fingida provocação, sabe-se lá se a dissimular uma inquieta busca de cumplicidade…

Diga-se de passagem, que desde uma visita a Cuba, há uns bons anos atrás, o viajante tem excelente imagem da subtileza dos empregados de hotéis e restaurantes e da sua penetrante capacidade de lerem nas entrelinhas de um qualquer discurso.

Por isso, o viajante, carregando a ironia, ciente de que “a crise” seria chave no sentido e no fluir da conversa, atirou: - “Pelo que se vê, por aqui não passa a crise!...”

O homem sorriu, fitando o viajante com seus olhos perspicazes. E bem percebeu então o viajante, que naquele sorriso e no (inter)dito das palavras se filtravam mensagens de (re)conhecimento mútuo, em ideário comum, imune aos percalços da vida,

- “Não se fie nas aparências, amigo!...” – E rematou, enquanto aviava uma conta: - “Hoje é dia de festa, os bárbaros desceram à cidade!”...

De facto, assim parecia. Soube depois o viajante que, de manhã, uma luzidia comitiva ministerial havia percorrido as ruas da simpática cidadezinha...

Seja como for, também o viajante por momentos esqueceu a crise…

(Continua)











       

14 comentários:

AC disse...

Boa prosa, a deixar adivinhar boa mesa... Fica para a próxima, não é?
(Pelos vistos andou pelas minhas bandas)

Abraço

Licínia Quitério disse...

Delicioso - o relato, que do repasto tu o saberás. Aguardo desenvolvimento. Boas férias.

jrd disse...

Excelente.
Continua a deambular que eu "acompanho-te".
Abraço

São disse...

De viajante a viajante aqui fica a minha expectativa quanto ao resto da estória, com votos de bom fim de semana

bettips disse...

Pensamos ambos, ao mesmo tempo será, num "viajante" que nos deixa saudades.
Mas gosto de encontrar as novas deambulações, onde reencontramos o país que somos.
Fica bem. Come, fala e vê.
Tanto quanto possas.
Abçs

C Valente disse...

UM conto que se lê com agrado
Saudações amigas e bom fim de semana

Anónimo disse...

Olá, desculpe invadir seu espaço assim sem avisar. Meu nome é Fabrício e cheguei até vc através do Blog do São. Bom, tanta ousadia minha é para convidar vc pra seguir meu blog Narroterapia. Sabe como é, né? Quem escreve precisa de outro alguém do outro lado. Além disso, sinceramente gostei do seu comentário e do comentário de outras pessoas. Estou me aprimorando, e com os comentários sinceros posso me nortear melhor. Divulgar não é tb nenhuma heresia, haja vista que no meio literário isso faz diferença na distribuição de um livro. Muitos autores divulgam seu trabalho até na televisão. Escrever é possível, divulgar é preciso! (rs) Dei uma linda no seu texto, vou continuar passando por aqui...rs

Narroterapia:

Uma terapia pra quem gosta de escrever. Assim é a narroterapia. São narrativas de fatos e sentimentos. Palavras sem nome, tímidas, nunca saíram de dentro, sempre morreram na garganta. Palavras com almas de puta que pelo menos enrubescem como as prostitutas de Doistoéviski, certamente um alívio para o pensamento, o mais arisco dos animais.

Espero que vc aceite meu convite e siga meu blog, será um prazer ver seu rosto ali.

Abraços

http://narroterapia.blogspot.com/

lino disse...

O cheiro a boa cozinha faz esquecer a crise, mas por uns momentos apenas.
Abraço

BlueShell disse...

Ainda bem que deu "para, por momentos esquecer a crise"! também gosto de "restaurantes cheios" (nota a ironia)...e gostei da alusão a Eça de Queirós. Vi-te num cometário em que citavas Padre António Vieira, no "sermão aos Peixes" - Ou o sal não salga, ou a TERRA NÂO SE DEIXA SALGAR"! Resolvo vir atrás de ti: aida bem que o fiz: gostei do que vi e li. Aguardo a continuação...sob um sol escaldante de Agosto e os ossos doridos do "raio da cadeira onde me sento para "teclar" estas linhas"!!!
Abraço,
BShell

jawaa disse...

Espero a continuação, viajo contigo pela serra adiante.
Já estou a adivinhar a entrada de presunto, do melhor, que com ministros do reino não se brinca!
Um abraço e... não te desforres em nós do tempo de espera a que te submeteu o dono do resturante...

Virgínia do Carmo disse...

Pena os "bárbaros" passarem pouco. E serem leves os seus passos. E fraca a sua memória.
(os dias de "festa" passam...)

Virgínia do Carmo disse...

Faltou um abraço
:)

Mar Arável disse...

Estimado viajante

Nunca te arrependas dessa paisagem
em todas as estações
com cabrito
porque coelho
é excrecência democrática

Abraço

Jorge Castro (OrCa) disse...

Grande Herético, desarvorado em romeiro de andanças e contradanças. Um sabor apaladado o ter-te em prosa, de olhar arguto e apontamento em riste.

Tão bom e apetecível o sabor dos nossos saberes gastronómicos quanto é verdade isso que dizes sobre o «interlocutor válido» em cada casa de pasto com profissionais com tarimba.

Digo-te, até, que esse é o meu primeiro critério de escolha quando se trata de reincidir nalgum pecado de gula: mais do que o prato, o acolhimento.

E juntos que sejam tais saberes e sabores, há lá refeição mais opípara?

Grande abraço.

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