Não é o caso em si que releva nestas
linhas, embora grave. Nem a circunstância de não ser único, merece
consideração. Longe vão os tempos em que as elites se impunham pelo exemplo de
uma conduta proba.
Obviamente que não me resigno ao
laxismo dos costumes e à corrupção dos valores, mas o que aqui hoje me traz,
não é tanto o percurso da indignação, mas antes “a anatomia” do processo de
desculpabilização social, ou se quiserem a “narrativa de ocultação” de
comportamentos criminosos, julgados e condenados pelos tribunais.
Vejamos.
Um conhecido maestro foi condenado em
Tribunal por uma série de crimes, praticados na instituição, que dirigia,
suportada integralmente pelos impostos dos cidadãos. O auspicioso maestro, em
vez de promover a divulgação musical, como seria seu mister, dedicou-se, ao
longo dos anos, a praticar tropelias administrativas e financeiras.´
Claro que a impunidade tem sempre
limites. E como em alguma qualquer esquina do tempo estará sempre o diabo a tecê-las –
o homem foi para à barra dos tribunais!
Para os mais desatentos, esclarece-se
que o tamanho dos desacatos financeiros, foram avaliados pelo tribunal em 720
mil euros, que o maestro é obrigado a devolver, sob pena de cumprir a pena de prisão
de cinco anos, a que foi condenado.
Louva-se a coragem da juíza, ao condenar
um réu que, no dizer da sentença “se
considera superior a um vulgar cidadão e acima das regras e a quem tudo era
permitido” – nos tempos que vão correndo, de tão vilipendiada justiça, não
será coisa menor.
Enfim, um exemplar ilustre de uma certa
elite (?) cultural, que funda a sua vida e obra directamente no alto dos céus ou
no manto de Apolo. Ou no umbigo de Vénus...
De facto, “o tudo” a que o maestro se permitia engloba uma
vasta panóplia de benefícios pessoais, que vão desde pagamento das rendas de
casa com piscina, automóvel, livros e discos, férias em locais exóticos, como Tailândia,
Quénia ou Ilhas Maurícias, em hotéis de cinco estrelas, até outras “miudezas”
como a compra de lingerie...
E, apesar dos
comprovados crimes, o vitimizado mártir da
justiça tem o topete de reclamar do
Estado a quantia de dois
milhões de euros de indemnização por estar afastado da
instituição, donde foi corrido.
A lingerie,
bem se sabe, é o picante da história, que a sabichona comunicação social, a seu
tempo explorou à exaustão e que, no sorriso tolerante dos espíritos mais dados
à pilhéria, constitui porventura a primeira peça do mecanismo de desculpabilização social. Que
teve outros e mais subtis desenvolvimentos...
Por exemplo, o impoluto Expresso, pouco
antes de a sentença ser conhecida, concedeu amplo espaço ao maestro para escrever um artigo de autojustificação, destinado
a colher a simpatia da opinião pública, onde com o maior desplante escreve que “não se levam maestros a tascas, nem se
hospedam em pensões...”
É evidente que não, tascas e pensões são
coisa rasca...
Mas é caso para perguntar se o Expresso
tem a mesma solicitude e acolhe no seu precioso espaço, não direi a todos os
arguidos (que exagero!), mas a todos aqueles que reclamam justiça por serem vítimas
de decisões iníquas.
E não se fica por aqui esta “narrativa de ocultação”...
O facto de o processo-crime ter sido
instaurado mediante participação por parte de instituições públicas e promovido
pelo Ministério Público, tal não tem obstado a que o distinto maestro seja
ostensivamente conviva de altas figuras do Estado, incluindo ex-ministros da
Finanças, ex-Presidente da República e jornalistas influentes, conforme vejo
assinalado num artigo de uma ex-governante da área da cultura.
Ou que frequente o Parlamento da
República, convidado para a Sala do Senado, a assistir a um concerto, ladeado
pelo Presidente da mais emblemática Comissão Parlamentar da Assembleia da
República.
Ou que uma ex-ministra das Finanças de
um país em profunda recessão económica, não tenha pejo em declarar em tribunal “que os resultados positivos podem ser
obtidos com mais ou menos gastos”, procurando assim descartar as despesas
sumptuárias do célebre “mártir da justiça”. Devendo bem saber a augusta senhora
que os cachets extra, com que o
maestro se fazia pagar por dirigir a orquestra, eram registados numa sociedade
de agenciamento artístico por ele registada no Panamá.
Ou ainda que um maestro conhecido e estimável,
que tem feito umas palhaçadas musicais na televisão, tenha tido tão agudo
ataque de cumplicidade corporativa para declarar em tribunal ser compreensível
que a orquestra pagasse uma casa com piscina ao maestro, para este “poder relaxar depois do seu extenuante
trabalho”.
Ou um pianista, não menos conhecido, também
no tribunal, ter tido o aristocrático desabafo de que “é habitual os músicos receberem um tratamento especial e diferenciado”...
Então não?! ... Quod erat demonstrandum...
Entretanto, sob a majestosa e
majestática gestão do mártir da Justiça, os direitos dos trabalhadores da
instituição sofriam tratos de polé...
Enfim, uma inquietante “rasquice” ... De alto, a
baixo! ...
Apesar das lantejoulas sociais...
07-02-2013
Manuel Veiga
22 comentários:
Se me permites, junto à tua , a minha assinatura!
Portugal tornou.se uma perfeita anedota, mas de muito mau gosto. Infelizmente para nós, que pagamos todos os desvarios destes intelectuais que nem sequer de meia tigela chegam a ser.
Fica bem.
Herético, o que são 700 mil euros comparados com os milhões que os outros roubaram, com a cumplicidade dos poderosos, e que estamos também todos a pagar?
Este ainda nos 'dava música'. Já os outros...
:))))))))))
Beijos.
De tudo o que o texto fala com tanta oportunidade, o que gosto mais é da lingerie quando tem consistência de mulher por baixo, em corpo e mente.
Quanto ao resto...fora com a mediocridade em todas as suas formas. quando ela se infiltra nas instituições ou as pessoas.
Um grande abraço, meu caro.
Véu de Maya
Que a voz nunca te doa, caro amigo!
Cambada! Corja! Canalha! Estes os amigos dos amigos dos amigos do amiguismo nacional.
Tem de haver um dia de redenção. Tem de haver!
Abraço.
Amigo! Grande poste.
Vou linkar em jeito de "short and Sharp".
Abraço
...só me ocorre uma palavra para lhe deixar, caríssimo Herético: EXCELENTE post.
Na oportunidade, faço minhas as palavras do Orca:
"Cambada! Corja! Canalha! Estes os amigos dos amigos dos amigos do amiguismo nacional."
assim vai este País!!!
bem haja, pois, e que a voz nunca lhe doa e os denuncie, sempre!
Mel
Sim, sim Maria - eu sei!
este dava-nos(?) música em palco de "culto" para muita gente simples e boa - o que deveria aumentar a sua responsabilidade...
e a nossa também...
beijo
Então se no forrobódó que por aqui vai à beira mar, temos gente de todas as artes, padres, banqueiros, economistas, engenheiros, médicos, palhaços, universitários sem curso, eu sei lá... porque diabo não havíamos de ter também um maestro!?
Só me espanta se entre esta gente um dia aparecer um operário!
Um abraço sem batuta
Se se encontrassem todos os que fazem estas avarias e os obrigassem a indminizar o Estado, a nossa dívida desaparecia.
É a nossa democracia...
beijo
Mais um abutre.
Abraço
Este é o texto de todos nós, os que dizemos NÃO!
Obrigada!
Beijinho e bom fim de semana.
Laura
Magistralmente orquestrado este grito de revolta que é de todos nós.
Bravo.
Excelente! (não sei se o texto não merecia todos os nomes, pois alguns são de espanto...)
Bem, se não fosse a grave 'questão' que abordas, ver-me-ias sorrindo, enquanto te lia no arguto e sarcástico humor com que nos delicias.
Até sei de quem falas! E achei por demais 'admirável' chamares 'tropelias administrativas e financeiras' a tanta... melhor não acrescentar nada.
Foste perfeito! Adoro a tua crítica de costumes!
Beijo, 'Herético'
Rogério, meu caro Amigo
este blog critica factos, porventura com alguma veemência.
mas não é justiceiro, nem moralista - não julga pessoas, nem muito menos faz linchamentos morais...
abraço
Excelente sério e competente o teu grito de revolta
que tambem é meu
O cavalheiro manipulava bem as notas
Abraço
Pois, Herético, pois...
Beijos.
É caso para se dizer que uma crise nunca vem só.
Esta, que vivemos, quase sempre olhada pelo lado económico, arrasta atrás de si, outra mais difícil de resolver - a crise dos valores mais elementares da vida em comunidade.
Que fazer?
Lídia
O homem usa o charme, os faróis do carro, brilhantes como sóis. Assim o vi. Rege com elegância, fala bem. Esqueceu-se talvez da falta de pagamentos aos músicos, dos ordenados irrisórios. Deslumbrou-se. Nós pagámos. Mais um. Este deu demasiado nas vistas, mas não vai pagar tanto como quem rouba 100 gramas de carne num supermercado. Nem pensar. Ele tem o charme pouco discreto desta nova burguesia.
Excelente!
Junto a minha à tua indignação.
Beijinho
Descaramento, é o que alguns têm. Bastantes, sem dúvida, e bastante.
Muito bom o teu texto.
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