Ateu e “herético” (graças a Deus!) que
não recusa a sua herança cristã, atrevo-me a afirmar que a mais poderosa
contribuição da Igreja Católica para o avanço da História será ter conseguido
domar a “animalidade” da espécie, mediante a sublimação da sua natureza pelos
“dons” da fé.
Aliás, tenho para mim, que aquilo terá
sido um admirável “feito”, constituirá também um enorme, senão o seu maior
“defeito”. E, talvez por ter sabido ultrapassar essa e outras contradições, a
Igreja Católica, tenha garantido o estatuto, de “especialista em Humanidade”,
como alguns pretendem.
Explico-me melhor. A igreja católica é
uma poderosa instituição de poder. Não enjeita, como se sabe, a inefável
atracção pelas delícias do poder temporal, que aliás ao longo dos séculos lhe
permitiu acumular vastíssimo património. Mas é sobretudo, como “poder
espiritual”, ou seja, como aparelho de dominação ideológica, que a igreja
católica realiza a sua vocação mais visível.
Em termos simples pode dizer-se que uma
qualquer ideologia (religiosa, moral, política, jurídica, etc.) corresponde a
uma determinada “visão do mundo”,
que, no entanto, não têm correspondência com a realidade concreta e a vida real
dos indivíduos.
No dizer dos autores (Althusser) não são
as condições da sua existência real que os homens se representam na ideologia.
Mas esta é antes uma “relação imaginária”
dos indivíduos com a sua vida real concreta; ou seja, as relações sociais que
governam as condições de existência dos homens e a sua vida individual e
colectiva, são “desfocadas” pela mediação da ideologia, que apresenta assim uma
natureza ilusória, para não dizer fantasmagórica.
A ideologia, corpo de representações
imaginárias das relações materiais de existência dos indivíduos, detém, por
isso, força e expressão material, pois que a “ideologia existe sempre num aparelho e na sua prática ou práticas”,
que como se compreende têm natureza material. A ideologia “fala por actos e rituais”...
Vejamos sinteticamente como funciona a ideologia.
Os indivíduos concretos, impregnados de uma ideologia determinada, máxime a
ideologia religiosa, são interpelados como “sujeitos”. Tal significa que,
mediante a ideologia, o indivíduo concreto se eleva à “categoria de sujeito”,
numa dupla acepção – como sujeito titular de direitos de personalidade
(ideologia jurídica) e como sujeito de “reconhecimento ideológico” mediante o
qual toda a ideologia em geral se constitui e o sujeito se faz “evidência” no
reconhecimento pessoal do respectivo nome.
Como é evidente (a função da ideologia é
criar evidências) todos os indivíduos são sempre e agora sujeitos. E
transportam, desde logo, a “marca ideológica” do nome (valores familiares, sociais,
religiosos, políticos, etc.) que os distingue. E, por outro lado,
interruptamente, praticam rituais de reconhecimento (ideológico) que transformam
cada individuo concreto em sujeito inconfundível e insubstituível.
Assim, mediante a impregnação pela
ideologia, os indivíduos concretos, estes agora sujeitos, “caminham sozinhos. livremente...”. No caminho e no sentido que a
ideologia lhes traça, evidentemente...
Importa ainda esclarecer que a multidão
de indivíduos que a ideologia “recruta” para os elevar à categoria de sujeitos,
tem como absoluta condição a existência de um “Outro Sujeito”, um “Sujeito
Absoluto e Único”, que fundamente e escore toda a “maquinaria” do
funcionamento da ideologia, quer esse Sujeito Maior se chame Deus, Estado,
Família, Partido político, Sociedade, Escola, Moda, Desporto, etc.
E era aqui que se pretendia chegar.
“Em
nome do Pai”
que a todos interpela como filhos, a ideologia cristã, na herança aliás da
cultura greco-romana, elevou o individuo gregário à dignidade de pessoa (“à
imagem de Deus”), com as inquestionáveis consequências no domínio das
ideologias jurídicas (lembremos da ideologia “direitos do homem”) e políticas. E,
neste aspecto, a Igreja Católica trouxe um inestimável contributo à emancipação
da humanidade.
Sendo assim, onde então “o fumo negro”?
Na natureza opressiva, para não dizer
repressiva, da ideologia religiosa. A ideologia religiosa é totalitária –
envolve os sujeitos do nascimento até à morte. E mesmo depois dela... A
liturgia religiosa, com seus rituais e práticas, vivifica a consciência do
sujeito religioso, interpelando-o permanentemente, sem espaço para qualquer
“desvio”. E ainda que provisoriamente se afaste, o sujeito religioso volta “ao
redil” mediante a prática da confissão e do arrependimento...
Mas não é tudo. A Igreja Católica é uma
Monarquia teocêntrica. Passou ao lado do século das Luzes e dos
desenvolvimentos posteriores de conquistas sociais e políticas - basta
recordar, por exemplo, a marginalização da Mulher, impedida de ascender ao
mister sacerdotal.
A organização e funcionamento e toda a
parafernália dos seus ritos e práticas da Igreja Católica obedecem, como se
compreende, ao desígnio de auto-reprodução das suas condições de existência, afirmação
e engrandecimento, numa lógica de conservação do status quo social. Isto é, funcionam no sentido de perpetuar as
condições materiais de existência dos homens e a sua vida individual e
colectiva, mediante a ideologia religiosa, que perante a infelicidade terrena
promete a “salvação eterna”.
No outro mundo, naturalmente...
Seja como for, a Igreja Católica é uma
poderosa instituição de poder ideológico. Tão poderosa que o Papa, chefe da
Igreja Católica, se nomeia a si próprio – isto é, escolhe o nome pelo qual quer
ser reconhecido pelo Mundo e pelos fiéis.
E, assim, num prodigioso efeito ideológico,
o Sumo-Sacerdote coloca-se acima, ou fora, da ideologia religiosa para se revestir
da natureza de Deus, “aquele que é”
sem nome, mas todos os sujeitos (católicos) nomeiam, invocando-o. Daí toda a submissão
à vontade de Deus pela voz Papa, quer dizer, o reconhecimento dos fiéis na infalível
Palavra (ideologia) ministrada.
Como estranhar, pois, que perante a palavra do Papa e seus gestos os homens se verguem e ajoelhem? Livremente...
Que outro poder no Mundo?
Como estranhar, pois, que perante a palavra do Papa e seus gestos os homens se verguem e ajoelhem? Livremente...
Que outro poder no Mundo?
Manuel Veiga
14 comentários:
Moral da história!
Por entre "feitos" e defeitos-a religião é um fenómeno de massas...
E quem não mete a mão na massa fica solitário-status invejável.
Boa Páscoa e um abraço,
Véu de Maya
Não sei se sou ateu - porque sempre recusei discutir a existência de um qualquer deus.Sempre disse que negar era aceitara negação.
Seja como for considero que todos somos eminentemente políticos sociais e religiosos - mesmo sem partidos políticos,solidários,sem um deus.
As religiões existem nos que creem e nos que querem ou descreem e não querem.
Sou dos que acreditam que é possível amar uma pedra e assim se tiver condições em pensamento palavras e gestos congregar mais uns tantos - mais de dois é comício - teríamos uma tribo a que poderíamos chamar religião,ideologia,pensamento,poesia,idolatria - rebanho partido igreja,seita,grupo filarmónico,gangue - conforme o destino da pedra.
Na verdade relativa de todas as coisas- não simpatizo com o Estado do Vaticano,muito menos com a sua bolha financeira- nem com preces nem vozes meladas a esmagar corações.
Cada macaco no seu galho respeitável
um dia serei cremado com as minhas ideias - livre de ter ajudado a criar um deus- menos a aceitar que fui criado - por mais alguém a não ser o meu excelente pai e a minha princesa mãe
Perdoa o desaforo
Hoje saíu assim
Abraço sempre e fraterno
Meu caro Puma,
grato pela atenção que o meu texto te mereceu...
... e apreciei o comentário, no teu dizer "desaforado" - um privilégio, eu sei.
abraço
Interessante termos falado tu e eu sobre a Igreja de Roma, rrss
Sou crente , mas nunca percebi nem senti a necessidade de intermediários.
Além disso, o deus que por aí vendem não é , de certeza, o meu!
Bons sonhos
Gosto de acompanhar o teu raciocínio, lúcido como sempre.
Como tu, cristã, nada mais do que isso, mas respeito os crentes, ainda que tenha de fazer um grande esforço para compreendê-los, se forem pessoas informadas.
Do grande papel das religiões na contenção do espírito do Homem, no Cristianismo em particular, restam os heréticos:).
Os que se assumem como deuses na terra e habitam o pequeno país no centro de Roma, não passam de vespas no ninho, de lobos esfomeados pelo poder, esquecidos totalmente do seu juramento de Pobreza, Castidade e Obediência.
Restam alguns homens de boa vontade, acredito piamente. Pobres deles, que em breve se lhes apaga o sorriso!
Procura entrar neste lugar deprimente:
http://youtu.be/_eJcKr6W7pk
Eu pedia que houvesse simplesmente Educação...!
Li, com toda a atenção o texto e percebo bem onde está o fumo negro.
Tudo o que reduz a capacidade do Homem pensar e agir por si mesmo, sem o auxílio divino que as religiões dizem fornecer, é fumo negro.
Por isso me confesso,(que heresia gostosa!), não crente em nenhum Deus.
Um abraço.
Li e reli o texto. Não encontrei heresias.:)
Jesus!
Beijo
Laura
Muitas vezes a fé é importante para não perdermos a esperança na humanidade, eu não vejo fé em um representante ou numa organização mas sim como algo intimo e pessoal. Que só diz respeito a mim e ao "meu" Deus.
:)
Um texto magnifico. O Negro no branco!
Sabes, a qualidade do passado que trazemos connosco, define a essência dos valores que defendemos e permite-nos delimitar os espaços em que nos movimentamos e analisar com lucidez e coerência o tempo que vivemos.
Um abraço
Texto óptimo e bem fundamentado.
Já fui católica (mais ou menos) e conheço a hierarquia e esse poder que testemunhas e é real, pelo menos no ocidente...
Curiosamente, comecei ontem a ler um livro sobre a heresia cátara. Estive quase a escrever sobre isso, mas como cheguei cansada de Lisboa fica para depois...
Boa noite, herético!
Oi heretico
Um tema oportuno em época de renúncia e reinados.rs
Não sou herética(graças a Deus) ,e também não reconheço o Papa como sucessor de Cristo.
É bem mais fácil só acreditar na Ciência e no que se pode comprovar e Deus não é captado por aparelhos e não se pode experimentar de forma palpável.
Daí ... não ser para todos,mesmo sendo possível acreditar usando a razão_ sem emoção.
Li um artigo que fala que se considerarmos os documentos do Novo Testamento como fontes da História antiga, — historiadores gregos Tácito, Heródoto e outros — o evangelho aparece como uma fonte histórica muito confiável para a vida de Jesus de Nazaré. E a maioria dos historiadores concordam com os fatos fundamentais que balizam a verdade sobre a ressurreição de Cristo.Há mais evidências que negação,mas prefiro
ficar com os versos de Clarice Lispector:
"Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido..."
e quero sim uma ideologia prá viver...
abraços meu doce heretico
Um texto de Páscoa...
Um excelente texto, completamente adequado à época, digo eu, seguramente ateia.
Deixo um abraço e acrescento o seu blog à minha lista.
um poder vertical que vai submetendo vontades através dos séculos, mas as raízes são influenciadoras.
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