Como por certo terão presente, a
democracia representativa, oriunda da Revolução Francesa é enformada,
fundamentalmente, por dois objectivos fundamentais. Por um lado, a consagração
do direito dos povos a escolher o tipo de sociedade em que pretendem viver e,
por outro lado, dotar os povos de uma forma de autogoverno que administre os
bens comuns e o interesse colectivo (os “negócios
públicos”) de acordo com a vontade maioritária.
Para tanto, os povos europeus
continentais estabeleceram o modelo jurídico das constituições escritas, onde
são vertidos os direitos e garantias individuais dos cidadãos e que,
posteriormente, no decurso do seculo XX, mediante a luta dos povos, foram
alargados aos direitos económicos e sociais.
No estrito plano do autogoverno da
sociedade, as constituições prevêem os princípios da separação de poderes, (poder
legislativo, poder judicial e poder executivo) e o sufrágio popular como método
de legitimação do poder. A emanação do poder executivo (governo) provém da
assembleia legislativa, que perante ela responde politicamente, uma vez que as
assembleias se constituem como fonte de legitimidade do poder executivo.
Importa ainda considerar que o poder
orçamental, tão relevante na actualidade, é nas constituições modernas reserva
das assembleias legislativas. De facto, a matéria de lançamento e cobrança de
impostos e outras obrigações fiscais, inscreve-se no âmago da tensão
democrática, pois que a insurgência da revolução liberal foi em boa parte
determinada pelas arbitrariedades do poder régio no lançamento e arrecadação de
impostos.
Compreende-se assim que os legisladores
da primeira assembleia constituinte, após o triunfo da revolução, não tenham
alienado esse poder, como forma de manter o controlo dos cidadãos sobre a
cobrança de receitas e realização de despesas por parte do poder executivo.
Assim, a questão da aprovação do
Orçamento do Estado é uma questão nuclear ao regime democrático. Não uma questão técnica que, a retalho, se
limite a produzir cortes cegos nas despesas e onerar sempre os mais fracos e
que uma qualquer maioria parlamentar acéfala poderá sempre carimbar. Pelo
contrário, trata-se antes de uma questão essencialmente política, pois que
envolve, como dizem os estudiosos destes assuntos, uma “decisão sobre fins” e não uma “mera
decisão técnica sobre meios”.
Aliás, vem a talhe de foice lembrar aos
deuses da hora presente – os mercados - e seus sacerdotes internos e externos
que, nesta secular nação europeia, já nas cortes de Coimbra de 1385, se fixava
o prévio conhecimento dos povos ao lançamento de impostos, pois que “é direito que às coisas que a todos pertencem
e de que todos tenham carrego seja a elo chamados”, como então foi
proclamado.
Distantes são esses tempos matinais. E o
fervor democrático de “velhas” revoluções...
Hoje, face as peripécias do Orçamento de
Estado 2014, ficamos sem saber o que mais nos deve indignar: se a iniquidade
das suas propostas ou se a arbitrariedade de seu método. O resultado, em
qualquer dos casos, bem se sabe, é o doloroso sacrifício de muitos para
enriquecimento de uns quantos...
O orçamento será formalmente aprovado em
breve na Assembleia da República, com toda a certeza. Porém, a discussão e toda
a tramitação do processo legislativo não passará de uma verdadeira
mistificação. Os deputados da maioria defenderão sua dama. Os deputados da
oposição, com mais ou menos convicção, conforme o arco parlamentar, denunciarão
atropelos e iniquidades e votarão contra.
O presidente da República, como é seu
timbre, “fará de conta”...
Mas todos sabem, (como nós sabemos que
eles sabem) que o Orçamento de Estado 2014 está pré-determinado e que a
discussão à sua volta não passa de um mero “jogo
de sombras”. O governo jurará pela alma dos seus defuntos, que este
orçamento é obra sua – o que não deixa de ser verdade, mas traçado, em seus
contornos e pormenores, pela mão zelosa da tróica.
E pela vigilância atenta da Comissão
Europeia, que confisca a soberania do País e impõe, através dos seus
regulamentos (Reg/EU/nº473/2013) que o orçamento do Estado, tendo em vista a
sua “validação”, seja conhecido pela
burocracia comunitária, antes de ser conhecido na Assembleia da República pelos
representantes eleitos do povo português.
Quod
vadis
Europa, quo vadis Democracia?
Nesta Europa da “austeridade”, súbditos de uma tirania sem rosto nos querem
transformar.
Se os deixarmos...
11 comentários:
Gostei do que li!
"Quod vadis?" As interrogações acumulam-se.
Beijo
Laura
Não gosto apenas desse final
tão condicional
NÃO DEIXAREMOS!, vale?
é bom ter amigos que fundamentam o que afirmam com memórias factuais e ainda têm paciência para a sátira saudável em torno de questões concretas
na verdade os tipos que fingem ser governantes mas são tão só mandaretes os tipos que nos meteram nesta coisa e fingem querer regressar e nós os tipos que sempre combateram as canalhas
estamos num barco sem fundo
a menos que um dia
ai nesse dia
se faça luz
Não vamos deixar!
Abraço
Uma esmagadora maioria para obedecer, vivendo no limbo, uma minoria para mandar, vivendo no olimpo.
É um problema à escala planetária, não é só nosso. E eles, os sem rosto, são os donos do dinheiro.
Excelente post!
Abraço
Aí está uma questão pertinente!
Lembrar-se-ão os responsáveis pelo destino das nossas vidas, de todos os pontos/evoluções que refere?!
Caro Amigo, não me parece!
Abraço.
Gostei muito deste texto.
ah, meu caro!
Quem nos põe assim a jeito pra deixar o povo desfeito?
Se temos a honra do trabalho e da união europeia, porquê, sermos tratados deste jeito?
Acho que merecemos mais...é para isso que Trabalhamos...Por isso os nossos governantes que puxem pelo povo e pelos galões...que os sacrifícios não sejam em vão.
Muito bem escrito!
Claro que os deixamos! pelo menos nós, portugueses, que tudo permitimos, que tudo aguentamos, que a tudo baixamos a cabeça subservientes. Um desânimo!
Já cá tinha estado mas não consegui comentar.
Um texto brilhante.
Uma constatação e uma alerta.
Abraço fraterno
Vivemos uma ditadura
mas gostamos de dizer
Democracia...
Nos enganamos!...
Maria luísa
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